Eleições de 2022: para onde vai o estado dos direitos no Brasil?

Por Maria Paula Dallari Bucci, professora da Faculdade de Direito (FD) da USP

 06/10/2022 - Publicado há 2 anos

A defesa do Estado de direito foi um momento crucial no período que antecedeu as eleições de 2022, desarmando a ameaça de golpe que então se desenhava. A posse da Presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) na semana seguinte, com o presidente da República contido, se não acuado, nas agressões à institucionalidade e às urnas eletrônicas, foi a demonstração disso. O impressionante desempenho da Justiça Eleitoral, divulgando em cinco horas o resultado das muitas eleições simultâneas no País, exibiu um quadro de civilidade democrática. Ambos, a normalidade e os resultados, silenciaram as críticas – pelo menos até o momento. As urnas eletrônicas se legitimaram mais uma vez como ativo da democracia brasileira.

Se desse ponto de vista o Estado de direito foi vitorioso, o abuso do poder econômico e político, com a aprovação do Auxílio Brasil às vésperas das eleições, e o orçamento secreto turbinando o poder local já não deixam a mesma certeza. Mais um lance dessa estratégia governista vem com o anúncio de antecipação do pagamento do 13º às beneficiárias do auxílio e outros riscos do uso eleitoral das máquinas de governo. Alguém vai investigar? Vai punir? Ou tudo vai se acomodar, sob o beneplácito de um Legislativo agora integrado pelos “magistrados-políticos” Moro e Dallagnol? Este último, é bom lembrar, incorporou a delinquência anti-institucional em sua campanha, referindo-se ao STF como “casa da mãe joana”.

Este não parece ser um problema restrito ao momento eleitoral. Mesmo que não acreditemos em teorias da conspiração que sugerem a possibilidade de impeachment dos ministros do STF, em tese facilitada com a nova configuração do Senado pós-eleições – entre outras coisas porque o pacto conservador passa a atuar mais por dentro do sistema, portanto, sem necessidade de medidas espetaculares com alto custo político –, as perspectivas das instituições jurídicas que garantem os direitos no País podem ser afetadas na sombra de ameaças persistentes à democracia. Esse problema vai além da renovação de cadeiras nos tribunais; no Supremo Tribunal Federal (STF) serão duas vagas em 2023. Também não se limita a questionar a postura de alguns ministros, como a ausência dos dois novatos no acompanhamento eleitoral do tribunal no dia 2 de outubro.

Ultrapassando as questões institucionais, há um problema especificamente jurídico, relativo à atuação do Poder Judiciário com margem ampla de interpretação da lei, em nome da efetivação da Constituição, especialmente em matéria de direitos fundamentais, que parece estar em xeque. O neoconstitucionalismo, movimento surgido no contexto europeu do pós-Segunda Guerra, reservou aos tribunais um papel contramajoritário, isto é, para prevenir os riscos de decisões de maiorias sem freios, como havia acontecido na Alemanha sob o nazismo, produziu-se em resposta a ideia de uma Corte capaz de fazer da Constituição verdadeira norma, cujo cumprimento poderia ser garantido juridicamente. Isso deixava para trás a condição de mero documento político típica do constitucionalismo do século 19. O objetivo da atuação ampliada dos tribunais não é dar a juízes não eleitos o poder de sobrepujar legisladores, mas criar instrumentos para realizar plenamente as finalidades da Constituição e das leis, sua racionalidade substantiva, em lugar do formalismo típico da ordem liberal burguesa do século 19. O “ativismo judicial” é o desvirtuamento dessa construção com a invasão da seara política pelos tribunais, como há muitos exemplos.

Mas, como demonstra o livro Supremos Acertos, organizado pelos professores da Faculdade de Direito da USP Fernando Facury Scaff e Heleno Torres, entre outros, o STF consolidou ao longo de seus 34 anos uma jurisprudência afirmativa dos direitos, decisiva para uma noção concreta de dignidade humana. É preciso valorizar o legado dessa faceta de nosso Estado democrático de direito, para entender que parte da onda reacionária vem dos méritos dessa construção e não de seus defeitos.


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