Da ciência ao mercado, ou vice-versa? Lições da biotecnologia

Por Marcelo Caldeira Pedroso, professor da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da USP

 05/12/2024 - Publicado há 2 meses

Negócio estabelecido baseado em ciência (ou science business) e empresa nascente intensiva em tecnologias profundas (ou deep tech) são tipos de organizações nas quais a inovação tecnológica é um elemento central. Essas organizações buscam não apenas utilizar a ciência existente, mas também avançar o conhecimento científico e capturar valor por meio desse conhecimento, e de seus produtos e serviços.

Nessas empresas, o que deveria direcionar os esforços para o desenvolvimento científico e tecnológico? O mercado deveria ser o principal impulsionador? Ou os próprios avanços científicos e tecnológicos deveriam ser os catalisadores das inovações que chegam ao mercado?

No primeiro caso, temos a abordagem demand pull (DP). Esta contempla as necessidades do mercado como direcionadoras do desenvolvimento tecnológico. Exemplos dessa abordagem consistem nas empresas que alocam seus recursos de pesquisa e desenvolvimento (P&D) como resposta ao potencial de mercado.

No segundo caso, temos a abordagem technology push (TP). Esta considera que ciência e os conhecimentos existentes deveriam conduzir as organizações a buscar no mercado os problemas a serem resolvidos pela tecnologia. Exemplos dessa abordagem podem ser encontrados nas spin-offs acadêmicas. Estas são empresas fundadas por pesquisadores com o intuito de levar ao mercado os resultados de suas próprias atividades de pesquisa e conhecimento científico.

Vamos considerar essa discussão no contexto da biotecnologia, que consiste na aplicação da ciência e tecnologia a organismos vivos para modificar materiais (vivos ou não) visando à produção de conhecimento, produtos e serviços. A biotecnologia é uma área do conhecimento eminentemente multidisciplinar, que contempla a combinação de diversas outras áreas, tais como biologia, engenharia, ciências agrárias, zootecnia, química, farmácia, biomedicina e ciência de dados, dentre outras.

Trata-se, portanto, de uma das áreas do conhecimento de maior complexidade tecnológica, e completamente conectada à ciência. Dados do mercado norte-americano corroboram essa afirmação. Nos EUA, no setor de biotecnologia apresenta uma média de 38% de intensidade de P&D (razão entre gastos em P&D e ativos totais da empresa), em comparação com uma média de 25% para a indústria farmacêutica, e de 3% para os demais setores.

A abordagem demand pull (DP) em biotecnologia aborda a identificação das demandas do mercado como direcionadoras do desenvolvimento biotecnológico em determinada organização. Nesse sentido, esta pode considerar atender as demandas e resolver os respectivos problemas em segmentos tais como: agricultura (ex.: controle biológico de pragas e melhoramento genético de sementes e cultivares); energia (ex.: produção de etanol e biodiesel); meio ambiente (ex.: tratamento de efluentes e biorremediação); processos industriais (ex.: desenvolvimento de agentes utilizados nos processos de fabricação de alimentos e têxtil); saúde animal (ex.: produção de vacinas e desenvolvimento de métodos diagnósticos); e saúde humana (ex.: desenvolvimento de vacinas, terapias e medicamentos biotecnológicos).

A abordagem technology push (TP) em biotecnologia aborda o entendimento dos conhecimentos e tecnologias de uma organização e, a partir destes, identifica no mercado os problemas que podem ser resolvidos. Nesse sentido, consideremos sete principais grupos de técnicas biotecnológicas:

• DNA/RNA: inclui a genômica, farmacogenômica, sondas genéticas, engenharia genética, sequenciamento, síntese e amplificação de DNA/RNA, perfil de expressão genética e uso de tecnologia antisense.
• Proteínas (e outras moléculas): considera o sequenciamento, a síntese e a engenharia de proteínas e peptídeos (incluindo hormônios de alto peso molecular); métodos de produção de medicamentos de alto peso molecular, proteômica, isolamento e purificação de proteínas, sinalização e identificação de receptores celulares.
• Cultura e engenharia de células e tecidos: aborda a cultura de células e tecidos, engenharia de tecidos, fusão celular, vacinas, imunomoduladores e manipulação de embriões.
• Processamento biotecnológico: contempla a fermentação por meio de biorreatores, bioprocessamento, biolixiviação, biopolpação, biobranqueamento, biodessulfurização, biorremediação, biofiltração e fitorremediação.
• Vetores de genes e RNA: inclui a terapia genética e os vetores virais.
• Bioinformática: considera a construção de bancos de dados sobre genomas, sequência proteicas, e a modelagem de processos biológicos complexos, incluindo biologia de sistemas.
• Nanobiotecnologia: aplica as ferramentas e processos de nano e microfabricação para a construção de dispositivos para o estudo de sistemas biológicos, bem como para aplicações na administração de medicamentos e na área de diagnósticos.

Na abordagem technology push (TP), uma organização pode desenvolver conhecimentos específicos em determinada técnica biotecnológica e, a partir destes, resolver problemas em diferentes segmentos. Como exemplo prático, vamos abordar a aplicação da técnica de RNA mensageiro (mRNA) em saúde humana. Mais especificamente, consideremos o desenvolvimento da vacina contra a covid-19 pelas empresas Moderna e Pfizer.

No início da pandemia da covid-19, a Moderna, uma empresa focada em biotecnologia, havia desenvolvido a expertise em mRNA. Com base nessa tecnologia, ela desenvolveu sua vacina contra a covid-19. Assim, ela utilizou o conhecimento existente para resolver um importante problema de saúde pública. Este é um exemplo da abordagem technology push (TP).

Na mesma época, a Pfizer se comprometeu a buscar soluções para a prevenção e o tratamento da covid-19. Para a prevenção, ela decidiu investir no desenvolvimento da sua vacina contra a covid-19. Dentre várias tecnológicas, ela também decidiu utilizar a técnica do mRNA. No entanto, naquele momento sua área de pesquisa e desenvolvimento (P&D) não dominava essa técnica. Dessa forma, a Pfizer foi buscar conhecimento no mercado por meio da parceria com a BioNTech. O exemplo da Pfizer é característico da abordagem demand pull (DP).
Ambas as empresas adotaram a mesma técnica – RNA mensageiro – no desenvolvimento da vacina contra a covid-19. E foram bem-sucedidas nas respectivas iniciativas. O primeiro exemplo (Moderna) considerou a abordagem technology push (TP), e o outro (Pfizer- BioNTech) a abordagem demand pull (DP).

Retomando a questão inicial: da ciência ao mercado, ou vice-versa? A resposta está na inovação bidirecional. Em outras palavras, a depender do contexto e dos estímulos, a inovação tecnológica pode ser tanto direcionada pelo mercado quanto catalisada pela ciência. Para tanto, é fundamental que os participantes do ecossistema de inovação – universidades, empresas, governo, agências de fomento e investidores de risco – promovam os incentivos adequados.

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