O espírito de João Ferrador incomoda Brasília e a mídia

Por Luiz Roberto Serrano, jornalista e coordenador editorial da Superintendência de Comunicação Social (SCS) da USP

 03/03/2023 - Publicado há 1 ano     Atualizado: 06/03/2023 as 18:57

João Ferrador foi um personagem, um cartoon, nascido na Tribuna Metalúrgica, editada pelo Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, no início dos anos 1970. Ele vocalizava as insatisfações dos metalúrgicos da base sindical da região contra as empresas, a política salarial vigente, o poder militar… Foi desenhado inicialmente pelo editor do jornal, o batalhador jornalista Felix Nunes, que também tinha colunas sobre temas trabalhistas e sindicais nos jornais populares de São Paulo, depois pelo cartunista Otávio e finalmente, já em dimensões nacionais, pela também cartunista Laerte.

Em 1978, o então presidente do sindicato Lula, cujo discurso já reverberava pelo País (foi o ano da primeira greve no ABC), compareceu a uma entrevista ao Pasquim, o semanário político e humorístico que assestava seu conteúdo contra o regime militar vigente, trajando uma camiseta em que, num desenho, o João Ferrador declarava: “Eu não estou bom”. Tornou-se uma marca registrada.

Pois bem, o espírito de João Ferrador parece ter baixado nas recentes manifestações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva a respeito da exagerada taxa de juros de 13,75% praticada atualmente pelo Banco Central que está travando o crescimento da economia brasileira.

Números divulgados pelo IBGE mostram que o crescimento do PIB, no ano passado, foi de 2,9%, mas negativo em 0,2% no quarto trimestre, encerradas as benesses governamentais distribuídas no período pré-eleitoral.

Fazer a economia deslanchar é certamente a principal preocupação do presidente Lula, e quanto antes melhor – mas os números do último quadrimestre de 2022 não apontam nessa direção, apenas para um crescimento sofrível, que poderá marcar este seu início de gestão, exatamente ao contrário dos objetivos de seu governo e, principalmente, os seus, pessoais.

Chama a atenção como o mundo político, econômico, midiático, principalmente este último, concentra críticas ao presidente Lula quando ele encarna o espírito de João Ferrador em seus comentários sobre a linha adotada pelo Banco Central. Suas críticas se chocam com as teorias e práticas das elites econômicas e políticas brasileiras, cujas balizas recebem ampla acolhida na grande mídia brasileira, especialmente na área econômica. E cabe ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad, apaziguar os ânimos, até adiantando o prazo para a divulgação da proposta de política fiscal do governo no objetivo de que, se aprovada, proporcione ao Banco Central espaço para começar a diminuir a taxa de juros. Seria uma tentativa de “harmonizar”, segundo as palavras do ministro Fernando Haddad, os objetivos das políticas fiscal e monetária.

Outro imbróglio, de quilate semelhante, envolve a Petrobras e sua política de preços para o petróleo, que vira gasolina, diesel, que impactam a vida de toda a sociedade. Lula também encarna o espírito de João Ferrador quando se manifesta sobre o tema.

Na sua visão, já demonstrada em seus dois outros governos, a Petrobras tem que seguir uma linha de atuação voltada para abastecer, com eficiência e custos baixos, a sociedade brasileira, principalmente com os recursos oferecidos pelo pré-sal.

Na empresa, apesar de ser fruto de uma campanha nacionalista nos anos 1950, no governo Getúlio Vargas, predomina, atualmente, a visão de que a Petrobras deve estar alinhada ao mercado internacional do produto, e seus resultados favorecem, preferencialmente, seus acionistas, brasileiros e estrangeiros, sendo o maior deles o próprio governo federal – os consumidores brasileiros mal entram em seus horizontes. O objetivo de Lula é rever conceitos e práticas da Petrobras, uma empresa à qual a mídia dá enorme atenção, sendo simpática ao atual status quo na sua operação.

Concentrando-me apenas nesses dois aspectos do governo, pois nos demais as simpatias da sociedade e da imprensa são no mínimo neutras, senão favoráveis, talvez seja um recurso útil ao presidente Lula incorporar, seletivamente, o espírito de João Ferrador. Seria uma arma para alimentar discussões em áreas cujos interesses são por demais cristalizados ao longo do tempo, resistentes a modificações que alterem os quadros vigentes? O governo tem contra si uma significativa maioria no Congresso, sua eleição não foi de lavada, mas sim apertada, com uma diferença de apenas dois milhões de votos, e a grande mídia lhe faz uma cobertura minuciosa e pouco simpática, sempre procurando “pelo em ovo”, como reza a expressão popular. Nesse quadro, diante da enorme tarefa à sua frente, chacoalhar o andor, além de um estilo, pode ser útil de vez em quando…

(As opiniões expressas pelos articulistas do Jornal da USP são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do veículo nem posições institucionais da Universidade de São Paulo. Acesse aqui nossos parâmetros editoriais para artigos de opinião.)


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.