“Vamos recolocar a TV Globo no centro. Acabar com essa história de ‘dying business’, parar com essa divisão entre futuro e passado.”
Paulo Marinho, diretor-presidente da TV Globo, neto do fundador Roberto Marinho.
A frase está no início do capítulo 1 do livro A Globo – Hegemonia, 1965-1984, escrito pelo jornalista Ernesto Rodrigues, que teve uma carreira de 12 anos no jornalismo da TV Globo, afastado após uma decisão errada, provocada pela ansiedade de pôr uma notícia no ar antes da concorrência – a falsa morte do recordista mundial do salto triplo, o atleta brasileiro João do Pulo, que só ocorreria 11 dias depois de a TV Globo anunciá-la .
Depois de uma variada carreira pós-TV Globo, Rodrigues lançou-se ao enorme desafio de contar a história da emissora no longo período que vai de sua fundação, pelo jornalista Roberto Marinho, em 1965, já na época do governo militar, até 2025, em três volumes. O primeiro, com o título A Globo – Hegemonia, 1965-1984, foi recém-lançado pela Editora Autêntica, aos qual se seguirão os volumes Concorrência 1995-1998 e Metamorfose 1999-2025. O cardápio oferecido pelo primeiro volume, que deve repetir-se nos demais, abrange todos os aspectos das atividades de uma TV como a Globo, há muito tempo líder de audiência na televisão brasileira: poder, jornalismo, política, dramaturgia, entretenimento, comercial, audiência etc. – nada fica de fora.
“Longe de estabelecer veredictos, a trilogia pretende levar o leitor a uma viagem reveladora e instigante, na qual ele compreenda um pouco mais e tire suas próprias conclusões sobre o extraordinário impacto que a Globo teve nos últimos sessenta anos, em todos os aspectos da vida brasileira. Lima Duarte, um dos protagonistas deste livro, resumiu o sentido desta minha aventura profissional com uma de suas frases preferidas: ‘O passado não só não morreu como ainda não passou’”, escreveu Rodrigues, na apresentação deste primeiro livro, em outubro de 2024.
O que explicaria a decisão vocalizada por Paulo Marinho de recolocar a “TV Globo no centro” como mostra frase de abertura deste texto? Rodrigues relata que, em função de uma recomendação da empresa de consultoria Accenture, a Globo fora aconselhada a desembarcar da TV aberta, que passaria a concentrar apenas uma das atividades da empresa, passando o streaming Globoplay à prioridade absoluta. E o que aconteceu?
O autor do livro relata:
“O Globoplay, embora crescendo, não conquistava assinantes em número suficiente para dar lucro antes de 2025. A Globosat e seus 26 canais de assinatura vítimas tecnológicas impotentes da entrada no mercado da Netflix, Amazon e outros gigantes do streaming também perdiam assinantes sem parar. O único negócio audiovisual lucrativo da empresa unificada resultante do projeto denominado ‘Uma só Globo’ era a TV Globo, aberta, ainda que os números fossem incomparavelmente menores do que os dos tempos hegemônicos da emissora.”
Ao longo de suas 670 páginas, o primeiro volume lançado aborda desde os primeiros tempos de funcionamento da TV Globo, a sociedade com o grupo norte-americano Time-Life, que rendeu anos de polêmicas e controvérsias, as cuidadosas, às vezes colaborativas e também problemáticas, relações com o então governo militar, o consulado do primeiro diretor executivo, Walter Clark e seu associado e depois sucessor, que se tornou todo-poderoso, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni.
Retrata, também, a evolução da programação ao longo do período, o jornalismo, a sempre presente e castrante censura, as transmissões esportivas, a consagração das novelas e suas variantes, que se tornaram o prato de resistência e o grande investimento da emissora – e influenciam, até hoje, o imaginário de uma parcela da população brasileira e explicam a permanência de sua liderança até os dias atuais.
No longo e detalhado relato, desfilam as impressões e as vicissitudes de todos os membros da comunidade, de executivos a artistas, renomados ou não, que trabalharam para construir a liderança da TV Globo no universo televisivo brasileiro. E ajudaram, cada um a seu modo, a sua técnica, a sua arte, suas concordâncias e discordâncias, a construir uma ferramenta que até hoje concentra uma parte significativa, embora menor, dos telespectadores tupiniquins.
Alguns poucos trechos do livro:
A chegada de Boni à TV Globo
Em março de 1967 […] o comediante Paulo Silvino, falecido em 2017, aos 78 anos, tomava um chope no “pé sujo” da rua Saturnino de Brito, apelidado de “Mosca Frita” e frequentado por funcionários da Globo, por ser próximo da emissora, quando Walter Clark, que às vezes passava pelo bar, anunciara: “Paulinho, a partir da semana que vem vou botar outro cara para você encher o saco. Você não vai mais pegar no meu pé”.
Quando Paulo Silvino quis saber quem seria o “cara”, Clark deu uma resposta que seria uma senha profética sobre o início, e também, sobre o fim da década em que ele, Clark e Boni, construíram, juntos, as bases da hegemonia que a Globo conquistaria nos anos seguintes: “Vou trazer o Boni. Eu já tinha conhecimento da capacidade dele. Com todo o respeito aos nossos diretores, não existe no mundo quem entenda mais de televisão do que José Bonifácio de Oliveira Sobrinho”.
Dancin’ Days
“Eles chamaram a mim (Nelson Motta) e ao Gilberto Braga e disseram que o nome da novela deveria ser ‘Dancin’ Days’. Eu falei: “Está ótimo”. Aí o Boni me fez uma proposta e eu vendi o título. No dia 10 de julho de 1978, quando entrou no ar, pela primeira vez, a abertura do ‘Dancin’ Days’, com as Frenéticas convidando todos a abrirem as suas asas, soltarem as suas feras, caírem na gandaia e entrarem naquela festa, a discoteca do Shopping da Gávea (com o mesmo nome da novela) já não existia mais. Seu criador e personagem do livro ‘De c… pra lua’, com as finanças plenamente restauradas, já tinha transferido a festa e o agito para o alto do Morro da Urca, também na zona sul do Rio. Ali, Nelson criara o evento musical-etílico cultural e outras ‘cositas más’ chamado Noites Cariocas e levava cerca de quatro mil jovens a pegarem o bondinho do Pão de Açúcar toda sexta e sábado para se divertiram a 360 metros de altitude. Era o começo de outra moda que entraria pelos anos 1980 e que seu criador chamaria de “ilha de liberdade e alegria”.
“A repressão política tinha chegado ao máximo em 1975, com as mortes do Vladimir Herzog e do Manoel Fiel Filho. Ali que começou uma lenta reversão, exatamente em 1976, quando foi fundada a ‘Dancin’ Days’.”
O fim da TV Tupi
Dois dias antes (16/7/1980), em Brasília, faltando sessenta dias para a TV Tupi completar trinta anos no ar, o então presidente João Figueiredo assinara a extinção das concessões pertencentes ao Condomínio Acionário das Emissoras e Diários Associados no Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Fortaleza, Belém e Recife, após atrasos sistemáticos no pagamento dos salários dos funcionários, uma fortuna em tributos federais e contribuições sociais não pagas e em débitos das empresas componentes da rede.
“A Tupi formava e a Globo comprava.” A frase lembrada por Bete Mendes, ao comentar a decadência da Tupi, era muito comum, na época, entre os artistas do eixo Rio-São Paulo quando falavam da facilidade com que a Globo montou o elenco que dominaria a tela da dramaturgia brasileira nas décadas seguintes.
O caso Proconsult
Leonel Brizola, de quem não se conheceu, pelo menos até sua posse, nenhuma afirmação pública e categórica em que ele acusa a Globo de participar em alguma tentativa de fraude naquela eleição (para governador do Rio de Janeiro, em 1982), terceirizou as certezas sobre o caso Proconsult. Deixou-as a cargo de seus eleitores e correligionários como o então senador Saturnino Braga, inimigo de Roberto Marinho desde os tempos da CPI do grupo Time-Life […].
Roberto Marinho, em entrevista a Regina Echeverria publicada pelo jornal “O Estado de S. Paulo” em 5 de maio de 1990, não mediu palavras sobre o velho desafeto ao comentar o caso Proconsult: “Quando terminou essa história, os nossos números não tiveram diferença de um único voto, a mais ou a menos, do resultado oficial. Como os resultados iniciais eram contra o Brizola, ele fez aquele escândalo todo, o que o tornou uma pessoa em cuja boa-fé ninguém pode acreditar”.
Em 2023, em entrevista ao autor, João Roberto Marinho disse que considerava uma “ofensa” e “coisa de maluco” imaginar que uma família pudesse estar envolvida em fraude eleitoral contra Brizola. Ao seu lado, o irmão Roberto Irineu lembrou um episódio em que, segundo ele, aconteceu em 1983, meses depois da eleição, quando teve um encontro acidental como o já empossado governador Brizola na zona sul do Rio, durante uma festa na cobertura de João Araújo, diretor da Som Livre e amigo em comum. Para a surpresa de Roberto, “incomodadíssimo” com a situação, Brizola sentou-se ao seu lado e disse: “Eu não tenho nada contra seu pai, não. Eu quando cheguei aqui pra (sic) fazer campanha, tinha que escolher um inimigo para poder crescer em cima dele. Queria pegar alguém importante, não um bobo qualquer. Peguei o homem mais importante que tinha, que era seu pai”. Roberto Irineu disse que ficou mais incomodado ainda, sem saber o que responder. E, antes de se afastar, o governador arrematou, risonho: “Isso é política”.
Enfim, os 164 capítulos do primeiro volume, Hegemonia, retratam a saga da construção, de uma concessão obtida ainda no governo Juscelino Kubitschek, nos anos 1950, mas iniciada só no regime militar, que se transformou, desde então, num dos principais pilares do entretenimento e do jornalismo brasileiros, influenciando e informando gerações, e que hoje, mais do que nunca, resiste e adapta-se a estes tempos do streaming reinante. Os dois próximos volumes da trilogia, Concorrência 1995-1998 e Metamorfose 1999-2025, trarão mais histórias, “que ficam para uma outra vez”, como dizia o saudoso Júlio Gouveia, adaptando uma frase que ele dizia ao fim de cada transmissão do Sítio do Picapau Amarelo, na TV Tupi, a grande antecessora da TV Globo.
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