O orçamento secreto e as funções do Estado

Por José Eduardo Campos Faria, professor da Faculdade de Direito da USP

 11/01/2023 - Publicado há 1 ano

Ao considerar inconstitucional o orçamento secreto, prática que levou à captura de parte do Orçamento da União pelo Congresso, fortalecendo o presidente da Câmara dos Deputados na barganha com o Executivo em matéria de distribuição de recursos públicos, o Supremo Tribunal Federal recolou na ordem do dia uma questão fundamental ao governo empossado em 1º de janeiro deste ano. Trata-se do debate sobre as funções do governo, o papel do Estado na formulação de políticas públicas e a definição de objetivos de longo prazo, com base num projeto de futuro do País.

A questão não é nova. Desde a Primeira República a vida política do País é marcada pela corrosão da representação partidária, em razão da distribuição de verbas públicas para a manutenção de clientelas. O que surpreendeu nos últimos anos foi o alcance desse processo, depois que o governo Bolsonaro terceirizou a gestão da administração para o Centrão, por meio do orçamento secreto, e assinou um decreto conferindo ao chefe da Casa Civil, um político profissional, a última palavra em matéria de execução orçamentária. Tanto no passado quanto no presente, o ethos desse tipo de política é conformado pelo fisiologismo como método em um presidencialismo de coalizão. A base de sustentação dos governos costuma ser um agrupamento de políticos sem ideologia, preocupados com seus interesses e acostumados a negociar apoio ao chefe do Executivo de plantão em troca de cargos e recursos.

Esse tipo de ação predadora resulta de uma das patologias na formação histórica do País – a existência de um sistema partidário altamente fragmentado. Como o Brasil não dispõe de partidos grandes, quando um presidente da República é eleito ele não tem base partidária majoritária para apoiá-lo. Por isso, precisa articular coalizões fora do espectro de partidos com que tenha algum alinhamento ideológico. Basta ver como Lula montou seu ministério. Líderes dos Centrões costumam ser amorais e avessos à ideia de bem comum. Mas são espertos – e essa é uma tradição do tipo de clientelismo que foi forjado na Primeira República, um período de decadência econômica dos proprietários rurais, quando as relações de poder se desenvolviam a partir do município, onde viviam os coronéis, até chegar à presidente da República com base numa rede de relações envolvendo compromissos recíprocos.

Partindo da premissa de que o coronelismo resulta de um pacto entre chefes locais decadentes e um poder público que se fortalece, Victor Nunes Leal, respeitado intérprete desse fenômeno, dizia que a atuação política local estava associada a relações hierárquicas e de dependência pessoal. Ela sempre necessitou de um coronel nos grotões. Em 1891, a primeira Constituição pós-imperial priorizou a ideia liberal de submeter a sociedade aos fundamentos de leis republicanas, ou seja, ao estabelecimento de uma vontade não arbitrária que a aplicaria a todos os cidadãos. Leal apontava, justamente, a distância entre o sonho republicano dos constituintes e a realidade no interior de um Brasil profundo marcado pela pobreza e pela concentração fundiária.

Contrapondo-se à ideia de que o coronelismo seria decorrência natural da força da propriedade latifundiária que se sobreporia ao poder público, Leal afirmava que aquela fórmula expressava apenas o compromisso entre o poder privado e o poder público. Como os coronéis vinham perdendo peso econômico e os municípios tinham muitos encargos e poucas receitas, na prática o coronelismo apresentava mais fraqueza do que força. Os chefes locais se empobreciam à medida que, com a industrialização, a riqueza se deslocasse do campo para as cidades. Os coronéis sabiam que dependiam da ajuda dos governos estaduais e estes, por seu lado, reconheciam os chefes locais, concedendo-lhes favores e dando-lhes carta branca nas questões relativas à sua jurisdição. Em troca, exigiam apoio político irrestrito aos candidatos do oficialismo nos pleitos estaduais e federais.

Segundo Leal, enquanto os chefes locais eram a junção mais fraca da cadeia de interconexões do processo político, o elo mais forte eram os governadores e suas bancadas federais, que pressionavam o presidente da República e condicionavam suas decisões, aprovando-as se fossem atendidos. Desse modo, se a decadência do latifúndio enfraqueceu os senhores rurais, o coronelismo, paradoxalmente, lhes teria dado sobrevida ao lhes permitir intermediar a distribuição de recursos estatais.

O mérito de Leal foi mostrar como as relações hierárquicas e de dependência pessoal inerentes ao coronelismo corroem a democracia representativa, na medida em que a cidadania é minada por trocas de favores e verbas públicas. Quando as bases da representação legislativa nacional se assentam nessas relações políticas paroquiais, o coronelismo acaba sustentando o Centrão no plano federal. O resultado é que, além de comprometer a eficiência governamental, a distribuição de verbas e o loteamento de cargos e postos típicos da burocracia pública, sob a justificativa de assegurar a governabilidade federal, essa prática empodera os membros do Legislativo, ao mesmo tempo em que prejudica seus adversários, dificulta a eleição de candidatos mais jovens e impede a oxigenação da vida política. Segundo dados do Contas Abertas e da Transparência Brasil, entre os 50 parlamentares mais favorecidos pelas emendas de relator, mais de 90% foram reeleitos em 2022.

É nesse esvaziamento da representação democrática que emerge a força do Centrão. Isto porque, quanto mais indiscriminadas são as concessões de verbas públicas e favores, mais elas são usadas pelos parlamentares que o compõem com o objetivo de cevar suas clientelas políticas, viciando a representatividade. Com isso, a má qualidade do gasto público só tende a aumentar, como adverte a CGU. As funções de planejamento e a garantia de condições mínimas para a implementação de políticas públicas são comprometidas. As noções de direitos de cidadania e de responsabilidade no plano político vão sendo perdidas, em decorrência da profusão de gastos não prioritários e até desnecessários. Com isso, os esforços para a definição de estratégias de longo prazo se esvaem.

O orçamento secreto agravava esse cenário. Ao transferir parte da execução de parte do Orçamento da União para o Legislativo, ele também comprometia o equilíbrio entre os Poderes. Afrontava os princípios da publicidade, transparência, impessoalidade e moralidade previstos pelo artigo 37 da Constituição. Ao inviabilizar o planejamento com base em prioridades públicas definidas por meio de discussões e negociação, subtraía recursos dos segmentos mais desvalidos da sociedade para destiná-los aos currais de cada parlamentar.

Por mais que as decisões tomadas pelo STF nos últimos anos tenham causado polêmicas, a relativa à recuperação do poder do Executivo sobre o orçamento da União foi importante. Entre outros motivos porque devolveu ao Executivo as condições que necessita para definir o que se quer com relação ao futuro em áreas como crescimento econômico e inclusão social.

(As opiniões expressas pelos articulistas do Jornal da USP são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do veículo nem posições institucionais da Universidade de São Paulo)


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.