Brasil 22: do arcaísmo à contemporaneidade

Por José Eduardo Campos Faria, professor da Faculdade de Direito da USP

 03/11/2022 - Publicado há 1 ano

Entre os modos de avaliação do impacto do resultado da eleição presidencial para o futuro do País, um deles passa por duas manifestações sobre uma questão estratégica neste período de mundialização da economia. Trata-se do contraste entre a política ambiental que foi adotada pelo governo do candidato derrotado à reeleição e aquela que será formulada pelo candidato cuja vitória foi muito bem recebida pela comunidade internacional a ponto de ter sido convidado a ir à COP 27, no Egito, antes mesmo de ser empossado.

A primeira manifestação parte de uma iniciativa com origem nos meios militares e foi tomada pelo Instituto General Villas Bôas, comandante do Exército entre 2015 e 2019. Trata-se de um documento intitulado Projeto de Nação. Lançado no primeiro semestre, ele apresenta um cenário prospectivo do País até 2035, enfatizando vários itens. Um deles é a visão desse grupo de militares – que teve forte influência no atual governo – sobre a relação entre globalização e proteção ambiental. “O movimento globalista, com o apoio de atores internacionais que visam interferir nas decisões de governos e em pautas destinadas a conceder benesses a determinadas minorias, em detrimento da maioria”, exerce “ingerência no desenvolvimento econômico”. E, para tanto, usa “pautas ambientalistas a reboque de seus interesses”, provocando “crises que enfraquecem a Nação em sua busca pelo desenvolvimento” – diz o documento. O texto também afirma que, na versão “mais sofisticada” do globalismo, “parcela do Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública atua sob um prisma exclusivamente ideológico, reinterpretando e agredindo o arcabouço legal vigente”.

Páginas depois, o tema do ambientalismo reaparece na discussão sobre a importância do agronegócio para o aumento do PIB brasileiro. Ao mesmo tempo em que recomenda a promoção de campanhas internacionais que apresentem “o Brasil como país responsável e defensor da preservação racional do meio ambiente”, o documento também aponta uma “ameaça concreta” de aquisição de imensas glebas de terra pelo capital estrangeiro. Denuncia tentativas de potências globais para assumir “papel preponderante na exploração e controle do agronegócio brasileiro”. E ainda acusa “campanhas internacionais” de comprometerem nossa imagem externa, ao apresentarem o Brasil como “não cumpridor de critérios de preservação ambiental”.

Já a segunda manifestação é uma recente entrevista concedida ao jornal Valor pela diplomata francesa Laurence Tubiana. Embaixadora de seu país na Conferência do Clima para Mudança Climática de 2015 e enviada especial para a COP 21, da qual resultou o acordo de Paris, seu entendimento é diametralmente oposto à do documento do Instituto General Villas Bôas. Face a um mundo globalizado, em que as formas territoriais de poder – soberania, ordem, hierarquia – vêm sendo corroídas por estruturas de poder funcionalmente diferenciadas, em cujo âmbito governar significa conviver com riscos e promover a gestão de incertezas, Tubiana afirma que um dos papéis dos governos democráticos é “construir pontes geopolíticas” no que diz respeito a ações climáticas. Ou seja, o que se espera desses governos é cooperação internacional para a consecução de acordos comerciais que respeitem a sustentabilidade, da Amazônia e não visões nacionalistas estreitas, que enfatizam “fechamento de fronteiras”, excluem minorias, e “combatem mudança climática com armas e violência”.

O objetivo dessas pontes geopolíticas é viabilizar a consecução de modelos de proteção ambiental sustentáveis e lucrativos para toda a sociedade E, para a embaixadora, isso exige políticas agrícolas adequadas, enfrentamento do crime organizado, estímulo à equidade e inclusão social sem destruição da natureza e, por fim, respeito às minorias, o que leva tempo e requer muita negociação. Segundo ela, por ser estreita e binária, a visão nacionalista tende a disseminar fake news nas redes sociais e a recorrer a chavões baseados no discurso de ódio. Desse modo, quando nacionalistas e autocratas levantam bandeiras contrárias aos países que querem agir em conjunto para ajudar a Amazônia, “criam-se as condições para uma guerra” e para o esvaziamento da institucionalidade democrática.

A exploração da violência é uma forma de manter o poder. Populistas e nacionalistas “não consideram nada, além do poder. Eles não se importam com a sociedade e com o mundo”, conclui a diplomata, após afirmar que a “forma cínica” como o governo Bolsonaro tratou a Amazônia acabou criando tensões sociais que foram do desrespeito à comunidade internacional e da destruição do ecossistema à agressividade contra lideranças indígenas e ao desprezo às pessoas que vivem na Amazônia.

As diferenças entre essas duas manifestações são gritantes. A primeira peca por falta de rigor técnico, refinamento teórico e fundamentação. Sinaliza uma visão geopolítica e geoeconômica ultrapassada da parte de militares cujas cabeças ainda estão presas aos tempos da guerra fria e do desenvolvimentismo liderado pelo Estado autoritário dos anos 1960/70. E entreabre o anacronismo das escolas de comando e de estado-maior das corporações militares. Tudo isso somado acaba resultando numa percepção equivocada e rasteira da questão ambiental. Basta ver que o documento do Instituto General Villas Bôas condiciona a transformação do país à “revitalização dos valores morais, éticos e do civismo”, ao fortalecimento do “sentimento de Pátria, ao “combate à revolução cultural”, à “promoção do sentimento coletivo de Nação” e à “valorização dos vultos históricos do Brasil, a fim de resgatar a identidade nacional”.

A segunda manifestação prima por sua visão sistêmica do mundo. Ela tem consciência de suas dificuldades e contradições, que estão agravando fraturas sociais, aprofundando desigualdades, deflagrando uma guerra e multiplicando tensões geoeconômicas e geopolíticas. Tem consciência de que, num mundo globalizado, a centralidade do direito e da política no âmbito dos Estados vem perdendo exclusividade em razão da expansão do pluralismo jurídico, do advento de novas fontes de direito e da substituição da ideia clássica de soberania pela ideia de soberanias compartilhadas. E compreende que, com o processo de desnacionalização da produção do direito no mundo atual, parte da titularidade da iniciativa legislativa dos Estados está sendo deslocada de seus parlamentos para instâncias não legislativas e para sistemas intergovernamentais, internacionais e multilaterais – o que exige a construção das “pontes geopolíticas” de que fala Tubiana.

As diferenças entre as duas manifestações são gritantes. Quando o documento Projeto de Nação/Ex afirma que “o globalismo é um movimento internacionalista cujo objetivo é massificar a humanidade, progressivamente, para dominá-la e [para] determinar, dirigir e controlar tanto as relações internacionais quanto as dos cidadãos entre si”, dá a dimensão de sua fragilidade e de seu arcaísmo. Por isso, uma coisa é certa: com o resultado da eleição presidencial, o país saiu do obscurantismo autocrático e populista que o tornou um pária na ordem mundial e ingressou na contemporaneidade. Se o novo governo será competente e eficaz nos próximos quatro anos, essa é outra questão que só o tempo responderá.


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.