A ofensiva contra o Supremo

Por José Eduardo Campos Faria, professor da Faculdade de Direito da USP

 13/10/2022 - Publicado há 1 ano

Animados com a nova configuração do Congresso, os bolsonaristas não hesitaram em mostrar os caninos. Anunciaram que proporão uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) para ampliar o número de ministros do Supremo Tribunal Federa e colocar “gente mais simpática à gente”. Acenaram com a possibilidade desde incluir no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) juízes e ministros da Justiça Militar, para assegurar uma composição alinhada ao governo. E sinalizaram que se mobilizarão para ganhar a presidência do Senado, o que lhes permitirá não só propor pedidos de impeachment de ministros, mas assegurar que sejam votados.

Não há ineditismo nessa estratégia. O aumento de magistrados na Corte para diluir seus ministros foi adotado pela ditadura militar. Em outubro de 1965, por meio do Ato Institucional n° 2, ela indicou cinco juristas que imaginavam ser de inteira confiança – entre eles, alguns que, entre ascender ao poder ou preservar as liberdades fundamentais, as garantias públicas e as franquias democráticas, não hesitaram em aceitar a indicação, ainda que deixassem maculados os sobrenomes de seus descendentes. Além disso, para esvaziar o controle difuso da constitucionalidade pelas diferentes instâncias judiciais, também em 1965 a ditadura aprovou a Emenda Constitucional n° 16, que ampliou a prerrogativa da Corte, em matéria de controle concentrado da constitucionalidade.

Como não eram tempos de normalidade, o STF não dispunha de força político-institucional para fazer frente ao Executivo. Mesmo assim, alguns ministros se destacaram pela coragem cívica. Foram poucos, Evandro Lins e Silva, Hermes Lima e Victor Nunes Leal, cujo ponto em comum era um sólido saber jurídico, formação liberal e consciência da importância da segurança do direito naquele momento. Mesmo sabendo o preço que teriam de pagar, mantiveram seu compromisso com as liberdades e garantias fundamentais e acabaram sendo cassados pelo Ato Institucional n° 5, de 13 de dezembro de 1968. Três anos depois, outro ministro com o mesmo perfil, Adauto Lúcio Cardoso, nomeado em 1976, rasgaria a toga no plenário e pediria demissão como forma de protesto contra alguns curvos colegas que, cedendo às pressões da ditadura, votaram em favor do Decreto-Lei n° 1.077, editado pelo governo Médici, e que impunha censura prévia à imprensa.

Passado mais de meio século, o País tem hoje um governante autoritário, com viés golpista, que idolatra a ditadura militar e também quer liquidar a independência do STF. Ou seja, aqueles atos trágicos do passado podem se repetir. As circunstâncias, porém, são outras. Ainda que tenham sido torpedeadas nestes sombrios anos bolsonaristas, as instituições judiciais conseguiram sobreviver. Dos atuais ministros da Corte que conheço, todos não hesitarão em agir como Evandro Lins, Hermes Lima, Victor Nunes e Adauto. Por fim, é importante lembrar que a ordem constitucional de hoje não é a mesma da dos tempos ditatoriais – e isso faz diferença.

Por mais críticas que se possam fazer à Constituição, no capítulo do processo legislativo ela é precisa ao definir os casos em que o poder constituinte derivado não pode apreciar nem aprovar determinadas restrições impostas pelo poder constituinte originário. Este é um poder inicial, soberano, autônomo e ilimitado, enquanto aquele é um poder subordinado, limitado e condicionado. Na prática, isso significa que há limitações com relação às possibilidades de alteração dos mandamentos constitucionais. Entre essas limitações, uma envolve as cláusulas pétreas, que não podem ser alteradas em qualquer circunstância. Esse é o caso do artigo 60, que disciplina o processo de emendamento constitucional. Segundo o § 4° de seu inciso III, “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir (…) a separação de poderes”.

A norma é clara. Caso o bolsonarismo insista em tentar reduzir as prerrogativas do STF aprovando uma PEC no Congresso, quem julgará a inconstitucionalidade será a própria Corte. Parece contraditório, mas não é. Na democracia, cortes encarregadas de serem “guardiãs” da Constituição podem declarar a inconstitucionalidade de uma emenda constitucional. A discussão não é nova. Em palestra na Universidade de Heildelberg, por volta de 1950, o jurista alemão Otto Bachof (1914-2006) deflagrou uma discussão sobre esse tema. A obra em que aprofundou suas ideias, Normas Constitucionais Inconstitucionais?, não apenas continua objeto de polêmicas doutrinárias, como tornou-se leitura obrigatória nos nossos cursos de pós-graduação em direito.

Não é só: o STF já firmou – e não é de hoje – entendimento de que PECs têm limitações em seu poder reformador. Ex-ministros respeitados por sua formação legalista, como Moreira Alves, Sidney Sanches e Celso de Mello, admitiram em votos a hipótese de declaração de inconstitucionalidade de Emendas Constitucionais aprovadas pelo poder constituinte derivado. Portanto, ao contrário do que o bolsonarismo alardeia, o poder que o Congresso tem de reformar a Constituição não é absoluto nem ilimitado. E quem tem prerrogativa de barrar reformas constitucionais que contrariem essas regras é o próprio STF.

Assim, se for reeleito e conseguir que o Congresso aprove PECs que inflem o número de ministros do STF para pulverizar o poder dos atuais magistrados, reduzam o tempo que lhes falta para a compulsória e coloquem juízes da Justiça Militar no CNJ, Bolsonaro e seu patético e caviloso entorno poderão berrar, afrontar o STF e agredir moralmente seus ministros. Contudo, demonstrarão mais cafajestismo e propensão autocrática do que conhecimento jurídico. Também criarão mais uma profunda crise institucional para testar o quanto a democracia brasileira ainda tem forças para resistir a estratégias abjetas para corroê-las.


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