A escolha do novo ministro do STF

Por José Eduardo Campos Faria, professor da Faculdade de Direito da USP

 02/05/2023 - Publicado há 12 meses

Agravado com a indicação de duas figuras obscuras, sem conhecimento jurídico e pensamento consolidado nos âmbitos judiciais e acadêmicos, o processo de rebaixamento do nível médio de conhecimento técnico e formação consistente dos componentes do Supremo Tribunal Federal poderá cair ainda mais, dependendo de como for preenchida a vaga aberta pela aposentadoria do ministro Ricardo Lewandowski.

Dos nomes apontados como favoritos pela mídia, nenhum é conhecido por seu saber técnico e por sua cultura jurídica. Poucos fizeram pós-graduação. E todos se apresentam basicamente como defensores de quem os indicará para uma corte suprema, esquecendo-se de que seus ministros têm de primar pela isenção e neutralidade, bem como pela consciência de suas responsabilidades institucionais.

Se o governo anterior indicou para o STF um nome quase desconhecido, que teria sido escolhido por aceitar tomar “tubaína” com o presidente da República, e outro nome cujo currículo consistia em ser “terrivelmente evangélico”, o governo atual está sendo pressionado a optar por um nome defensor do garantismo, ou que represente uma região, ou que seja próximo do movimento feminista ou, então, que expresse uma representatividade identitária. Tanto nas duas indicações bolsonaristas quanto nas pressões atuais – sejam elas legítimas ou partidárias – para a escolha do próximo ministro do STF, em momento algum se discutiu o perfil que a corte necessita, após um período de turbulências institucionais e de uma tentativa de golpe de Estado, cujos responsáveis terão de ser por ela julgados. Como no passado, o STF continuará sendo acionado para avaliar a constitucionalidade de atos do Executivo, arbitrar no Legislativo conflitos que suas lideranças não conseguem resolver consensualmente e dar respostas quando esses dois Poderes batem à sua porta solicitando decisões que não foram capazes de tomar por negociação. Também será chamado para intervir em questões que os demais Poderes não conseguem equacionar e ratificar a constitucionalidade de determinadas políticas públicas.

Decorre daí a importância da sabatina a que o nome proposto pelo chefe do Executivo será submetido no Senado. Essa é a única etapa pública do processo de indicação. O que esperar dos favoritos apontados pela imprensa, tal a insignificância de seus currículos? Entre os que foram sabatinados depois de 2014, por exemplo, alguns indicados expressaram sua formação normativista. Entreabriram sua inclinação pelo positivismo jurídico. Enfatizaram o encadeamento lógico-dedutivo das normas do sistema jurídico. Definiram os litígios judiciais como oposição de interesses ou choque de expectativas. E reconheceram que o STF teria legislado de modo indevido em alguns julgamentos, invadindo a jurisdição e a autonomia do Legislativo.

Os sabatinados também ressaltaram a importância da exegese das leis e o caráter político da adjudicação. Apesar de reconhecerem que o sistema jurídico não deriva de um conjunto de axiomas de conduta, lembraram a existência de métodos de interpretação que limitam a discricionariedade do aplicador do direito, assegurando com isso uma certa unidade das práticas interpretativas. Por isso, a atitude dos juízes deveria ser analítica, uma vez que olham as situações sociais basicamente a partir das normas jurídicas.

Em outra vertente doutrinária, partindo da premissa de que subjacentes aos litígios judiciais estão as contradições da sociedade e inspirados pelo realismo jurídico, que valoriza as fontes materiais, precedentes e avaliações históricas, outros sabatinados ressaltaram os efeitos da democratização no acesso aos tribunais. Apontaram a importância de reformas no direito decorrentes da necessidade de o Estado adaptá-lo a um contexto de reformas previdenciária, monetária, trabalhista e administrativa e de novas formas de atuação dos movimentos sociais. Lembraram, ainda, que a interpretação da uma norma jurídica não se esgota em seu valor léxico, dependendo também das implicações semânticas aduzidas pela coletividade à qual pertence o intérprete e onde ocorrem os conflitos que têm de dirimir.

Para estes sabatinados, não há norma sem sentido, não existe sentido sem interpretação e toda interpretação encerra alguma subjetividade na fixação do sentido das normas. No limite, isso faria com que a adjudicação se convertesse num campo de enfrentamento não só técnico e doutrinário, mas também político, uma vez que magistrados podem optar pelas mais variadas interpretações para fundamentar decisões que consideram justas.

Duas sabatinas específicas, as de Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso, ilustram essas diferenças, pois apresentaram argumentos diametralmente opostos. Ao ser indagado sobre a questão do ativismo judicial, Moraes afirmou que, quando a atuação do STF se torna “acentuada”, surge um embate com o Congresso que, no limite, pode abrir caminho para uma guerrilha institucional sem ninguém para arbitrar o conflito. Enfatizou a necessidade de estabilidade entre norma e interpretação. E criticou o subjetivismo de alguns setores da magistratura.

Ao responder a perguntas semelhantes, Barroso disse que o relato das normas muitas vezes demarca apenas uma moldura dentro da qual existem diferentes possibilidades interpretativas. Desse modo, face às especificidades de cada caso concreto, dos princípios a serem preservados e dos fins a serem realizados é que se determina o sentido mais adequado de uma norma constitucional a ser aplicada na decisão de um caso. Também lembrou que um ordenamento jurídico é um sistema em constante mutação, que reflete anseios, valores e conflitos de interesse na vida social. E reconheceu que o juiz é ativo, agindo com base na avaliação dos fatos e moldando o litígio para assegurar um resultado não apenas justo, mas, também, viável.

Para ele, assim, o “ativismo” judicial seria uma estratégia proativa de interpretação usada pelos juízes para concretizarem promessas constitucionais, aplicando-as a situações não contempladas de modo preciso em seu texto. Mesmo que não se confundam com livre criação de direito, as interpretações extensivas das leis podem deflagrar tensões institucionais, por politizarem os tribunais. Esse tipo de interpretação asseguraria aos juízes flexibilidade para lidar com problemas não contemplados objetivamente pela Constituição.

Pode-se discordar do que disseram, mas ambos cumpriram os requisitos para ascender ao STF – o que certamente não acontecerá, se for levado em conta o perfil dos nomes considerados favoritos. Se a sabatina for séria e os senadores cumprirem a obrigação de avaliar a qualidade da indicação, até que ponto o indicado não precisará ser informado de seus direitos, dentre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado, como prevê a Constituição?

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