Caio Prado Jr., a ruptura de classe

Por José de Souza Martins, Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

 14/08/2024 - Publicado há 4 meses

Em 1991, Florestan Fernandes publicou na Folha de S. Paulo o artigo Obra de Caio Prado nasce da rebeldia. Prado falecera no ano anterior. Eram muito amigos. O artigo tem a motivação da homenagem e fará parte do livro A Contestação Necessária – Retratos Intelectuais de Inconformistas e Revolucionários (Editora Ática, São Paulo, 1995). Os textos nele reunidos são de biografias historicamente desiguais, trajetórias singulares decorrentes de momentos diversos da história social e política brasileira.

O caso de Caio Prado Jr., dentre os ali tratados, é o mais desafiador para compreensão das possibilidades e limitações históricas da sociedade brasileira. No que sugere Florestan, a sua é a biografia de um homem nascido e educado numa classe social, a burguesia, que acaba assumindo o vínculo político de uma classe social oposta, o operariado. Essa é sua “rebelião moral”.

O artigo de Florestan baseia-se numa suposição de biografia de Prado, no meu modo de ver, oposta à consciência que Prado desenvolveu de seu lugar na história. Sua história é a de uma busca de sentido para a contradição que o definia.

Para compreendê-lo, é preciso situar e compreender a família Silva Prado. Sua “rebelião moral” talvez possa ser analisada e interpretada como afirmação da consciência de sua classe social de origem, a burguesia brasileira, e não como sua negação. Caio Prado não foi um trânsfuga de sua classe na sua vinculação ao Partido Comunista e a uma prática política de esquerda.

Ao marxismo não é estranho que seus decisivos pensadores venham da burguesia e da classe média, e não, propriamente, da classe operária que está no centro da teoria marxista, uma classe sociologicamente reveladora, mas não conscientemente autora da história.

A ciência social, que nasce com o marxismo, é, na origem, necessidade social da burguesia, necessidade de compreender cientificamente o que ela é na crise e desagregação do antigo regime. Da classe operária é uma possibilidade, condenada pela alienação, ao desconhecimento do que é e da exploração que sofre.

O engano, a falsa consciência da exploração do trabalhador é, antes, uma necessidade do capital e da alienação no capitalista. Sem o que o capitalismo nunca teria surgido nem se desenvolvido.

Na consciência do empresário está o lucro e na do operário, o salário. Unindo-os existe o mistério da mais-valia. A ciência social nasce para desvendar e explicar o mistério funcional de um modo de produção que só é eficaz pelo autoengano de suas vítimas, como cúmplices involuntárias do que as vitima.

Considerar a biografia de Engels quanto a isso ajuda a compreender esse aspecto da sociologia marxiana. Ele era de uma família de empresários alemães, destinado ao sacerdócio na Igreja Luterana. Mas foi mandado para a Inglaterra para dirigir a filial de Manchester da empresa da família.

Na trama de suas contradições, Mary Burns, uma operária irlandesa, católica e analfabeta, foi sua companheira. O seu oposto. Ele era um capitalista com veleidades de nobreza. Tinha cavalo e cavalariço para a caça à raposa, um requintado esporte da nobreza. Era membro de um típico clube inglês da elite.

Engels conversava com Mary Burns sobre os trabalhos que escrevia. Discutiu com ela as ideias de A Situação da Classe Operária na Inglaterra, o primeiro estudo de sociologia urbana, que ela criticou. E que o convidou para acompanhá-la em visita aos cortiços operários de Manchester, nos quais nunca entraria sozinho. Essas informações Engels repassava a Marx.

Quando Engels comunicou a Marx a morte de Mary Burns e seu profundo abatimento, ficou abalado com o desdém de Marx sob o argumento de que ela era apenas sua companheira. Marx era um pequeno-burguês vitoriano e conservador. Não era nem um pouco revolucionário na vida cotidiana.

Na perspectiva dessa realidade crua da história de marxistas de referência, pode-se entender que Caio Prado Jr., em sua opção política e em suas obras, tentasse decifrar-se com sujeito da história enquanto membro de uma família que era capitalista desde o século 18.

Veridiana Valéria da Silva Prado, sua tia, foi a maior fazendeira de café do mundo e a mulher mais rica do País. Tinha uma conduta feminista e praticou atos de ruptura com a tradição de sua classe e nela de sua condição de mulher, que lhe acarretaram a censura, a difamação e a estigmatização por parte das mulheres de São Paulo. Até hoje, sobre seu antigo palacete no início da avenida Higienópolis pesa a maldição de proibição da entrada de mulheres da elite paulista, a não ser na área que era usada como cocheira.

Em A Revolução Brasileira, de 1966, Caio Prado Jr. define sua concepção de revolução, dialeticamente, na perspectiva marxiana, não propriamente marxista. Assinalada por reformas e modificações econômicas, sociais e políticas. Ou seja, por transformações e superações. Na linguagem de Henri Lefebvre, a realização do possível por meio da práxis.

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