Há alguns anos, em reunião de entidade científica, em conversa casual, um ex-reitor da USP mencionou o desconforto que sentia, todos os anos, por abrir vagas para cursos da Universidade que formariam desempregados. Ele aludia a cursos da Faculdade de Filosofia.
Quando foi criada, em 1934, a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras formaria os pesquisadores científicos de referência dos cursos superiores já existentes. A Faculdade de Medicina já não seria apenas formadora de médicos para diagnóstico e tratamento de doenças. Mas de médicos pesquisadores, capazes de interpretar as queixas de pacientes como desafios à produção de conhecimento médico.
Nela, seriam preparados, também, os docentes para os cursos secundário, colegial e normal. Deste sairia um novo professor primário, porque agente de ressocialização dos filhos de imigrantes estrangeiros e dos migrantes de origem rural que se defrontavam com a realidade social de um Brasil que se tornava urbano e industrial. Esse continua sendo um desafio da escola, coisa que os governantes não entendem.
Com as transformações demográficas e a industrialização de São Paulo, abriam-se novas perspectivas para os formados nos cursos da faculdade.
Em 1962, houve na USP um encontro de estudantes de Ciências Sociais que pleiteavam o reconhecimento e a regulamentação da profissão de sociólogo. Com isso, achavam que as empresas teriam que contratar sociólogos. Ingenuamente pensavam que emprego se cria por decreto.
Eu vinha de uma família de trabalhadores, nascera e crescera no meio de fábricas e fora socializado para o trabalho fabril a partir dos 11 anos de idade. Cresci numa fábrica e nela me tornei adulto. Tentei explicar aos participantes, gente de classe média e da elite, o que era uma fábrica. Foi inútil.
Abandonamos o interesse pela alternativa profissional do magistério. Os professores da geração seguinte abandonaram o interesse pela sociologia aplicada. Muitos desenraizaram a sociologia e a antropologia. Sumiu a diferença entre São Paulo e Frankfurt ou Paris.
A função de uma universidade do porte da USP, em nenhum de seus campos de formação profissional, é o de preparar mão de obra descartável para as empresas industriais, agrícolas, comerciais, financeiras e de serviços. A USP, assim como a Unesp e a Unicamp – instituições não só nem principalmente de ensino, mas sobretudo de pesquisa científica e técnica – é uma instituição que se antecipa à empresa, cria inovações possíveis no campo da produção e da circulação econômica. A maioria das empresas não tem a menor condição de fazê-lo.
A USP deveria assumir que ela não está prioritariamente a serviço das empresas, mas a serviço do conhecimento de que as empresas e a sociedade carecem. É nesse sentido que ela inova no campo das alternativas profissionais e das profissões. Até porque profissionais por ela formados têm como conteúdo da formação que dela recebem a competência para reinventar a profissão em face dos desafios das irracionalidades e obsolescências inerentes ao processo de reprodução ampliada do capital. Cursos meramente técnicos de terceiro grau não formam essas competências. Ou seja, as Humanidades fazem parte necessária dessa cultura criativa e inovadora. Sem elas, a mera matemática é burrice aplicada.
A Assembleia Legislativa introduziu nos estatutos das universidades estaduais que um dos membros do Conselho Universitário seja representante de entidade empresarial.
Mas entidades empresariais, como a Fiesp, não criaram em sua diretoria uma representação das universidades que poderia ser a porta de influência da universidade na atualização, modernização e adoção de profissões.
Fui professor catedrático da Universidade de Cambridge, de 1350, e fellow de um de seus colleges mais antigos. Um dia procurei o diretor do serviço de preparação dos alunos em final de curso, para ingressar no mercado de trabalho.
Conversamos sobre a manutenção dos currículos tradicionais e clássicos em face a um mercado de trabalho em mudança. Que função tem um diplomado num dos melhores cursos de História do mundo trabalhar como gerente da seção de verduras do Tesco, uma rede de supermercados do Reino Unido? Ele me disse que se esse profissional não fizesse a opção de ser historiador e professor, certamente seria um dos mais criativos e melhores gerentes da seção de verduras de um supermercado. A formação recebida lhe daria condições de reinventar a profissão em face dos desafios do mercado.
Nossos alunos reinventam a profissão como alternativa para se defenderem do boicote ao magistério de Humanas por parte dos órgãos oficiais. Mas a USP ainda carece da recriação de uma ponte entre ela e o mundo real de quem estuda para trabalhar.
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