[…] nome Ricardo Reis, idade quarenta e oito anos, natural do Porto, estado civil solteiro, profissão médico, última residência Rio de Janeiro, Brasil, donde procede, viajou pelo Highland Brigade, parece o princípio de uma confissão, duma autobiografia íntima, tudo o que é oculto se contém nesta linha manuscrita, agora o problema é descobrir o resto, apenas.
Em 1984, a Editorial Caminho S. A., casa sediada em Lisboa, publicava O Ano da Morte de Ricardo Reis. Na narrativa, José Saramago colocava em prática um artifício similar ao já empregado em Memorial do Convento, publicado dois anos antes.
Digo “artifício similar” porque há uma diferença considerável, comparando-se as obras. No romance anterior, D. João V e a rainha Maria Ana de Áustria haviam sido transformados em caricaturas, permitindo ao narrador questionar os protocolos vigentes na corte portuguesa e satirizar a pompa reinol. Já em O Ano da Morte de Ricardo Reis, o escritor problematizava os limites da ficção recobrindo-a com outras camadas. O protagonista não era uma celebridade retirada da historiografia de Portugal, mas um heterônimo (criado por Fernando Pessoa) que adquiria estatuto de personagem.
O enredo é estruturado de maneira que, às primeiras páginas, o leitor acompanha a movimentação dos passageiros, ao desembarcar do navio. Entre eles está Ricardo Reis, que retorna do Brasil – informação que José Saramago extraiu da biografia fictícia inventada por Fernando Pessoa. Uma vez que a data da morte do heterônimo não fora registrada pelo poeta, Saramago completa a sua trajetória, imaginando que Reis retornaria à terra natal dezesseis anos após sua partida para o Brasil, fixando 1936 como o ano de seu fim.
Ora, foi justamente em 1936 que Antônio de Oliveira Salazar fundou a Mocidade Portuguesa, repercutindo em Portugal as organizações juvenis criadas na Itália, de Mussolini, e na Alemanha, de Hitler. A trajetória de Ricardo Reis é ambientada durante o Estado Novo, portanto. Esse dado não é gratuito, mesmo porque “Já todo o pessoal do hotel sabe que o hóspede do duzentos e um, o doutor Reis, aquele que veio do Brasil há dois meses, foi chamado à polícia, alguma ele teria feito por lá, ou por cá, quem não queria estar na pele dele bem eu sei, ir à PVDE [Polícia de Vigilância e Defesa do Estado], vamos ver se o deixam sair”.
Quarenta anos após sua primeira edição, O Ano da Morte de Ricardo Reis traz questões que vigoram ainda (e especialmente) hoje, quando se constata um recrudescimento das ações totalitárias em várias partes do mundo. Misto de ensaio e ficção, o enunciado explicita o abismo que havia, e continua a haver, entre a postura crítica – a cargo do heterônimo pessoano – e a visão redutora imposta pelas autoridades. O romance alerta, em particular, para o risco de que a arte problematizadora continue a ser submetida ao violento jugo da hipocrisia.
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