Oitenta anos de Chico Buarque, artífice da resistência

Por Jean Pierre Chauvin, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP

 19/06/2024 - Publicado há 6 meses

Pela piada no bar e o futebol pra aplaudir
Um crime pra comentar e um samba pra distrair

Neste dia 19 de junho, Francisco Buarque de Hollanda completa oitenta anos. Falar a respeito dele é quase sempre um risco, levando-se em conta a relevância de sua extensa (e intensa) produção musical e literária.

Talvez seja preciso um tanto de coragem e ousadia, portanto. Cumpre lembrar que em 2024 completaram-se sessenta anos do golpe militar. Talvez por esse motivo, convenha abordar o engajamento político transposto para a sua obra. Afinal, um dos temas mais recorrentes em suas letras e narrativas é a arbitrariedade repressiva que caracterizava a ditadura militar brasileira, entre 1964 e 1985.

Por exemplo, na faixa Deus lhe pague, de Construção – seu oitavo álbum, lançado em 1971 –, os instrumentos reproduzem sons que caracterizam aqueles anos de chumbo: metais mimetizam sirenes; instrumentos de percussão reproduzem o som de tiros; notas ao piano, em tom menor, acentuam a atmosfera de cerceamento e terror sugerida ao longo das estrofes.

Três anos depois, provavelmente inspirado por Animal Farm (1945), de George Orwell, o compositor publicaria Fazenda Modelo. Protagonizada por Juvenal e seus consultores, a novela pode ser interpretada como alegoria de um certo país habitado pelo gado bovino, manso ou resignado, liderado pelo “Bom Boi”. O epíteto é sugestivo, pois, dentre outras coisas, satiriza o autoproclamado “cidadão de bem”, meio século antes que a expressão voltasse a fazer uso entre nós, quase sempre associada ao moralismo de ocasião.

Em 1995, a Companhia das Letras edita Benjamim – romance em que um narrador aparentemente impassível conecta a trajetória de um ator já idoso, Benjamim Zambraia, ao cotidiano de uma jovem corretora de imóveis, Ariela Masé. Em princípio, tudo os distancia: a diferença de idade; os estágios na carreira profissional; as regiões onde moram; a sua condição socioeconômica; o modo como concebem o mundo e a maneira como nele intervêm. Talvez por isso mesmo, os poucos encontros entre as personagens conduzem-nas a um desfecho dramático, que certamente sensibiliza o leitor.

O caráter arbitrário enfeixa a prosa em primeira pessoa de Leite Derramado (2009). Nesse romance, o discurso ininterrupto e lacunar de um paciente acamado reitera sua perspectiva autocrática, já que ele se vangloria da posição social superior que lhe permite se distinguir (financeiramente) em relação àqueles com que conviveu, perpetuando o regime tirânico reproduzido desde seus ancestrais. O gosto de mandar contagia a própria linguagem: os verbos de comando transparecem numa fala alinear, perpassada por lampejos de memória e delírio, a que Eulálio submete a enfermeira (e o leitor):

Antes de exibir a alguém o que lhe digo, você me faça o favor de submeter o texto a um gramático, para que seus erros de ortografia não me sejam imputados. E não se esqueça que meu nome de família é Assumpção, e não Assunção, como em geral se escreve, como é capaz de constar até aí no prontuário.

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Na letra de Deus lhe pague, as palavras piada e futebol identificam formas acessíveis de entretenimento e falatório. Ora, essas atividades de caráter diversionista, cultivadas por várias camadas sociais, dialogam com a oratória tosca e nada original do líder que comanda o gado da Fazenda Modelo (território cujo nome parecia aludir à Brasília, cidade-sede do poder central, no Distrito Federal).

Por sinal, o repertório mínimo do boi Juvenal é reforçado pela falta de criticidade do seu auditório. Como toda claque, assegura-se o aplauso dos correligionários, ainda que o discurso do chefe seja desprovido de maior quilate ou critério, como sugere sua oratória tosca, recheada de chavões:

Depois da palitagem houve o discurso. Juvenal levantou-se e começou assim:
– Quem semeia vento colhe tempestade – frase que soou dura demais em sua língua. Alguns estranharam, tossiram. Kahr e Kleber aplaudiram de pé. Logo arrematou Juvenal: – Depois da tempestade, vem a bonança – e aí se reconheceu o bom Juvenal, seu timbre e sua têmpera.

Em outro cenário, o discurso do presente se combina a imagens remanescentes que chegam embaralhadas: o sentimento pode ser novo, mas se funda no passado do protagonista. Em meio às idas e vindas de Benjamim Zambraia pelo Rio de Janeiro, chama a atenção que esse experiente ator (tão habituado às câmeras) se deslumbre a cada vez que avista Ariela Masé. Ela reedita os traços, as cores e os sons da mãe, Castana Beatriz, com quem ele se envolvera intensamente décadas antes:

Nem Benjamim nem ninguém saberá jamais quem matou Castana Beatriz. As circunstâncias de sua morte permaneceram obscuras, e é provável que, para Ariela, a mãe tenha sido vítima de mal súbito, ou de algum acidente. Os parentes que a criaram terão evitado esmiuçar o assunto, e não será Benjamim a fazê-lo.

Ariela é duplamente sedutora aos olhos de Benjamim pois o estimula a reviver, para além do plano da memória, o antigo idílio amoroso com Castana. Ao mesmo tempo, o maior contato de Zambraia com essa jovem o estimula a reeditar o passado no presente, tendo em vista lograr destino semelhante, desta vez ao lado da filha da mulher assassinada. Em parte, a identidade da filha (Ariela) se pauta, funda e se confunde com as projeções que Benjamim faz sobre a mãe.

Vida e morte confrontam-se no tabuleiro retraçado pelas lembranças, algo sugerido desde as primeiras linhas da narrativa: “O pelotão estava em forma, a voz de comando foi enérgica e a fuzilaria produziu um único estrondo. Mas para Benjamim Zambraia soou como um rufo, e ele seria capaz de dizer em que ordem haviam disparado as doze armas ali defronte”.

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Outros aspectos relacionados às formas de violência verbal e física são descortinados com grande contundência em Anos de Chumbo – coletânea de contos publicada em 2021. A antologia principia com uma situação triste e bizarra, mas recorrente na sociedade brasileira. O relato da narradora, às linhas finais, explicita as consequências da hipocrisia e do senso comum que pauta tantas relações familiares: “Mamãe disse que não me criou para lhe dar um neto que é sobrinho ao mesmo tempo. Sem contar que parentes consanguíneos às vezes procriam filhos degenerados. Meu pai falou que não é bem assim”.

O conto final (que nomeia o livro) é tão ou mais impactante que o primeiro. Narrada pelo filho de um capitão do exército, a história se desenrola durante a maior parte do tempo entre a residência da família e o clube militar, em meio aos severos atos de violência praticados pelo pai, cujas (des)razões o rapaz não alcança ou compreende:

Pelo que pude depreender, meu pai lidava com prisioneiros de guerra, criminosos que tinham sangue de verdade nas mãos. Tamanha tensão devia mexer com seus nervos, pois ele voltava para casa com a mandíbula travada e sem mais nem menos pegava a bater na minha mãe.

Seria necessário maior fôlego para discutir os artifícios empregados nessas e em outras investidas de Chico Buarque. Mas, como sabemos, o homenageado é avesso a louvaminhas, e sua obra não condiz com bajulação. Muito resumidamente, digamos que há traços comuns entre a letra de Deus lhe pague e o discurso de Juvenal (da Fazenda Modelo), o destino torto de Benjamim, a fala enviesada de Eulálio (em Leite Derramado), as extremas violências familiares (em Anos de Chumbo) etc.

Para nos atermos ao argumento inicial, digamos que há pelo menos um ingrediente que permite aproximar essas composições e obras: seus narradores e personagens recorrem a clichês e superestimam a dicção mais simplória que caracteriza o discurso autoritário e tecnocrático. Dentro e fora das artes, poucos expedientes serão tão eficazes, caso o objetivo seja descrever determinadas falácias revestidas de poder e parvoíce, grosseria e mau gosto.

Eis mais uma das maestrias de Chico Buarque, dotado da habilidade em diagnosticar os abusos, supostamente praticados em nome da lei, da ordem e dos bons costumes por uma sociedade orientada pelos signos da exclusão.

Letra da música Deus lhe pague, de Chico Buarque, censurada em agosto de 1971 – Página: Reprodução/Arquivo Nacional/Memórias Reveladas/gov.br

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