Design de personagem

Por Jean Pierre Chauvin, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP

 06/06/2023 - Publicado há 11 meses

Devemos a Edward Morgan Forster algumas distinções importantes relativas ao universo literário. Em Aspectos do Romance (1927), ele nomeou as personagens como representantes da espécie Homo fictus, ressaltando que elas costumam ser mais coerentes e coesas que o Homo sapiens – ser quase sempre mergulhado em contradições, a oscilar entre impasses e lacunas existenciais. Outra contribuição do ensaísta, nem sempre creditada em livros e manuais didáticos, refere-se à caracterização das personagens em Esféricas ou Planas. No primeiro caso, ele se referiria a figuras complexas cujas atitudes poderiam ser novas, e mesmo imprevisíveis; no segundo, a criaturas mais simples, cujas ações reforçariam a previsibilidade, compatível com o seu papel de menor destaque na narrativa. De um lado, seres mais densos e profundos; de outro, tipos caricatos, superficiais.

Para além de classificar as pessoas de papel, também seria oportuno refletirmos sobre as estratégias a que escritores e escritoras recorrem ao construir suas personagens, sejam elas protagonistas ou coadjuvantes; estejam elas a cargo da narrativa (personagem-testemunha) ou representadas por ela. Nos romances de Agatha Christie, havia basicamente quatro métodos de composição. Suas personagens eram descritas:

(1) moral, psicológica e fisicamente pelo narrador; ou
(2) mediante autodeclarações, quando interrogadas pelos investigadores; ou
(3) a partir dos pensamentos e ações que empreendiam; ou (4) por intermédio de juízos emitidos por outras personagens.

Atenhamo-nos ao terceiro e quarto estratagema, tendo em vista o romance de Agatha Christie, After the Funeral (1953), traduzido no Brasil como Depois do Funeral. Nos primeiros capítulos, a narradora se concentra em duas personagens aparentemente secundárias. Uma é Lanscombe, antigo mordomo que trabalhava havia décadas para uma família numerosa e abastada. A segunda coadjuvante é Cora, irmã mais jovem de Richard Abernethie – que justifica o título dado ao livro. Após as cerimônias fúnebres, o advogado e amigo do falecido Richard reúne os familiares e procede à leitura do testamento.

Durante a sessão, Cora faz intervenções inconvenientes. Inicialmente, pergunta ao testamenteiro se o irmão teria deixado alguma soma para ela. Em seguida, lamenta em público a doença fatal de seu sobrinho Mortimer (apontado como uma das causas para o adoecimento do próprio Richard). Em seguida, celebra a renda que receberá mensalmente, conforme desejo do irmão. Finalmente, quando todos se dispersavam, ao final da leitura do documento, Cora dá a entender que a morte de Richard não se devera a causas naturais; ele teria sido assassinado.

Terminamos o segundo capítulo com um misto de sensações ambivalentes sobre essa personagem indecorosa. De um lado, censuramos o modo indiscreto como ela agira durante a leitura do testamento firmado pelo irmão; de outro, concedemos grande importância à quebra de protocolos, já que a morte suspeita de Richard passaria a ser rigorosamente investigada como crime, dali em diante. No capítulo seguinte à leitura do documento pelo advogado, nossas impressões iniciais sobre a irmã do morto são reforçadas pelos juízos proferidos por outras personagens, também presentes no funeral.

O advogado Entwhistle concebe-a como uma mulher “desequilibrada” e “tola”; Gregory e Susan supõem que Cora seria “biruta” ou “avoada”; Rosamund descreve as roupas inadequadas que ela utiliza (o que parece reafirmar o desajuste comportamental da personagem). Às linhas finais do terceiro capítulo, a narradora se volta para a rotina da irmã de Richard, desde que retornara à sua casa. O discurso passa a ser indireto livre, ou seja, as opiniões da personagem se imiscuem à enunciação narrativa. Para Cora, seus parentes não passavam de pessoas “afetadas”, a atuar num ambiente em que reinava a “hipocrisia”.

Cumprido o seu modesto papel, Cora Lansquenet sairá de cena. No capítulo seguinte, ela será assassinada enquanto sua dama de companhia se ausentasse da residência durante um par de horas. Embora fosse uma personagem coadjuvante, os comentários impertinentes decidiram sua sorte e deram novo rumo à fábula. Ela não só chamara atenção para a morte suspeita do irmão, como passara a ser o pivô da investigação sobre o seu brutal silenciamento.

Agatha Christie se destacou na literatura policial justamente por sua habilidade em criar personagens verossímeis e, portanto, imperfeitas. Claro esteja, não estamos a lidar com seres capazes de atitudes heroicas; quando muito, o romance policial recorre aos crimes para sugerir o rompimento da (aparente) harmonia afetada por uma instituição ou grupo. O que chama atenção em Depois do Funeral é que a quebra da coesão familiar se relaciona com o contraste entre as figuras complexas e superficiais.

Justapor criaturas tão diferentes permite à narradora intercalar diversos pontos de vista, o que reforça o discurso provisório e o caráter falível dessas personagens – sejam elas examinadas individualmente, sejam elas percebidas como parte de um coletivo que ora, acolhe e integra; ora, rejeita e exclui. Na ficção christieana, o mistério caminhava em paralelo com a construção de personagens cativantes, fossem elas protagonistas ou secundárias, esféricas ou planas.

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