(Auto)ironia: depreciação do sujeito ou afetação de modéstia?

Por Jean Pierre Chauvin, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP

 11/10/2023 - Publicado há 1 ano     Atualizado: 17/10/2023 às 16:42

Os conceitos, assim como os indivíduos, têm sua história e,
tal como eles, não conseguem resistir ao poder do tempo.
Søren Aabye Kierkegaard

A presunção é um modo de ser recorrente na literatura. Basta percorrer alguma prosa para toparmos com narradores e personagens que concebem o seu mundinho de maneira egocêntrica, muitas vezes combinada à postura autoritária.

Para além da lisonja de si mesmo, determinados autores inventaram figuras especializadas em empregar fórmulas autoirônicas. Por que esse expediente é utilizado? Porque complexifica a caracterização da personagem e interfere no modo como o leitor lida com ela.

Isso acontece porque a autoironia pode ser interpretada como depreciação do sujeito, mas também pode ser lida como mera afetação de modéstia – maneira artificiosa de fingir humildade. Antes de prosseguirmos, distingamos ironia de humor, afinal muito já se disse sobre esses conceitos.

Em meados do século 19, Søren Kierkegaard afirmava que as primeiras fontes da ironia se encontravam nos discursos de Sócrates (por exemplo, contra os sofistas) registrados nos diálogos reconstituídos por Platão. Na década de 1970, David Muecke chamou a ironia de “besta quase-mitológica de natureza dupla”. Assim como o filósofo dinamarquês, ele supunha que o “primeiro registro de eironea surge na República de Platão”, significando “uma forma lisonjeira, abjeta, de tapear as pessoas”.

Alfredo Bosi propôs uma distinção didática entre humor e ironia, em capítulo da coletânea Céu, Inferno, publicada há vinte anos. Enquanto a ironia se revelaria no “sorriso zombeteiro dos que se restringem a dizer o inverso do que pensam”, o humorismo consiste em “sentir e ressentir a agonia dos contrastes”, como se percebe em obras magistrais como o Dom Quixote, de Cervantes.

Ironia e humor costumam andar juntas. Frequentemente, o resultado se traduz na proliferação de máximas que guardam porções de uma e de outra: “[…] a maior força do mundo é a doçura”, sentencia o sábio andarilho com que o narrador Augusto Machado confabula em Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá – último romance de Lima Barreto.

Consideremos também o diário encontrado no Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade. O protagonista revisita certos episódios de sua mirrada existência sob a lâmina desconcertante da ironia e do humor: “Inesperada enfermidade de Lalá. Cheguei a converter-me de novo ao catolicismo. As três crianças berravam em torno do leito materno. Quadro digno do pincel de Benedito Calixto”.

O modo de ser, pensar e agir de alguns narradores ou personagens pode ser educativo. O senso crítico de personagens tais, como Gonzaga e Serafim, sugere que a presunção não se restringe à literatura; pode escapar às páginas e nos alertar para a arrogância situada para além dos domínios da ficção. Num e noutro plano, a concepção inflada dos sujeitos entrará em questão, servindo à percepção desses e outros gestos pequenos e ridículos.

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