Bambino a Roma será um romance de memórias? O subtítulo, à capa, anuncia tratar-se de uma obra de ficção – dado confirmado pelo registro na ficha catalográfica, ao final do volume. Entre o memorialismo e alguma invenção, a narrativa se dispõe em 29 capítulos breves (24 deles ambientados na capital italiana, entre 1953 e 1954), cada um com dois ou três episódios sobre temas diversos, encravados no cotidiano: as idas à quitanda; o gosto por jogar bola; as aulas na escola “americana”; as vias, praças e galerias romanas percorridas a pé ou de bicicleta; a relação com os professores, alunos e com o amigo Amadeo, filho do quitandeiro, amigo dileto do jovem Francisco.
A narrativa dialoga com Budapeste (2003), Leite Derramado (2009), O Irmão Alemão (2014) e Essa Gente (2019): escrita em primeira pessoa, intercala reflexões pertinentes sobre o ato de contar histórias; questiona, de maneira provocativa, quanto há de ficcional no que se rememora. Pouquíssimas vezes o narrador empunha o próprio nome, embora saibamos que o protagonista é um garoto de nove anos que acompanha nova mudança da família por conta da ocupação do pai na universidade.
“Francesco”, como era conhecido pelas crianças de lá, principia o relato traduzindo o intenso mal-estar a bordo do navio Giulio Cesare, entre Rio e Roma; descreve a nova moradia, na “Via Marino 12, apartamento 2”; no colégio, delata o professor de redação por agir de modo repulsivo em relação aos meninos; descreve o seu amor não correspondido por Sandrene; sugere o gosto por caminhar, preservado na maturidade (apesar da artrite nos joelhos); descreve o comportamento arrogante e cafona dos pais de seus colegas de sala; enumera as estações do metrô em Paris.
Numerosos episódios são atravessados pelas vozes da criança e do adulto, fundindo-se a relativa inocência da meninice à malícia do mundo adulto, pressupondo que, “com passagens assim picantes”, o livro poderia ser “até traduzido para o inglês”. Também há espaço para alusões ao cenário político, desde a morte de Stálin (1953) até o posicionamento dos pais contra Getúlio (morto enquanto a família ainda estava na Itália).
Nessas recordações, embrulhadas feito obra ficcional, o narrador confessa ter escrito “para Miss Tuttle” as suas “primeiras redações, embora destinadas secretamente a Sandy L, ou Sandrene”. Para conseguir chamar a atenção de um grupo de meninas no cine Rex, o narrador adota o “blazer azul-marinho com o emblema da Notre Dama Internacional School”.
Em meio a uma sucessão de pequenos ou grandes acontecimentos, o memorialista revive a impressão de que “todos ali aparentavam estar em Roma de passagem”. A composição da obra, com seus capítulos de três ou quatro páginas, sugere analogias entre a forma breve desse romance e o caráter fragmentário das reminiscências – estas, reabilitadas de modo coerente, coeso e ordenado, como recomenda o gênero memorialista, que elege cenas, atores e as ações mais dignas de registro.
De um modo ou de outro, as vozes de Chico Buarque (menino e homem) orientam a leitura. Diversas passagens reverberam dados biográficos, alguns já conhecidos por aqueles que admiram o artista, para quem marchinhas de carnaval podem perturbar “tanto quanto essas músicas de ambiente interferem numa conversa, numa leitura ou num pensamento”. Ora, sendo uma obra de caráter fragmentário, os relatos são alinhavados por fios condutores, orientados por grandes prazeres e pequenas descobertas. Nesse sentido, o afeto por Sandrene e amizade por Amadeo são esteios da narrativa. Quanto ao narrador, a todo instante ele atenta para os artifícios embutidos em uma obra literária, independentemente do seu grau de subjetividade: “Eu também sei distinguir o criador da criatura e guardo uma admiração intata por obras de autores com quem jamais me sentaria”.
Há cenas que reafirmam o distanciamento de Sérgio Buarque em relação ao filho, algo admitido pelo escritor em mais de uma entrevista: “Tlec tlec tlec tlec tlec tlec plim. Antes de sair para a universidade, meu pai passava horas batendo à máquina durante minha convalescença”. Também há ressalvas mais duras ao pai (já feitas em O Irmão Alemão), por exemplo, quando Chico Buarque sugere que ele teria se envolvido com “uma alemãzinha abandonada em Berlim com o filho dele na barriga”. De toda maneira, quando beirava os dez anos, sua admiração pelo pai era grande, como sugere o episódio em que vai à livraria Hoepli e, enquanto busca pelo livro que precisa restituir ao irmão, celebra o fato de ter encontrado Alle Radici del Brasile, edição em italiano de As Raízes do Brasil (1936): “É o livro do meu pai!, falei alto, interrompendo o vendedor e o intelectual”.
Bambino a Roma pode ser lido como obra de metaficção, pois o narrador se refere constantemente à escrita (e repercussão) da própria biografia, marcada por autoironia derrisória: “caso um dia eu ficasse pobre e tudo me faltasse no Brasil, inclusive os direitos autorais por este malfadado livro, delivery de pizza poderia em tese ser meu ganha-pão, visto que ninguém desaprende a andar de bicicleta”. Alternando doses de sarcasmo e lirismo, talvez o capítulo mais tocante seja o “22”. Nele, descobrimos o hábito do jovem Francisco em tracejar “no mapa de Roma os caminhos recém-percorridos”. Desfeito em pedaços, devido ao uso constante, a mãe o presenteia com outra edição do mapa, onde o futuro estudante de arquitetura “projetava” a sua “cidade imaginária”.
Se levarmos em conta os diálogos entre literatura e música, o teor das conversas dos pais ao telefone evocará a letra de Meu Caro Amigo (gravada em 1976): “Falava-se em meio a chiados, ecos, estática, e as conversas eram rápidas por causa da tarifa: alô, como vai?; e a inflação?; e as forças armadas?; até logo”. Por sinal, a Roma dos anos de 1950 lembra muito certas localidades do Brasil, ainda hoje. Também em Roma havia quem “dissesse que bom mesmo era o tempo de Mussolini, quando os trens não atrasavam um só minuto”. Lá, noutrora; aqui e agora, o interesse particular frequentemente suplanta o bem-estar coletivo.
Eis que nos aproximamos do epílogo do romance – forma como poderíamos identificar os cinco capítulos finais, condensados em 23 páginas. É que na enunciação deles, as vozes se tornam unívocas, trazidas à data bem mais recente. Em nova visita a Roma em 2024, a versão adulta de Francisco – que bebe vinho ou uísque e fuma – anseia por reviver situações que tragam maior concretude às memórias que guarda afetuosamente desde a infância. Decorre daí o reencontro parcial consigo mesmo e com a criança que fora, em simetria com o que há de quase indistinto entre revisitar as memórias e produzir alguma ficção, uma e outra a ressoarem de maneira verossímil.
Isto posto, evito o que de demasiado poderia dizer, sob pena de interferir na aventura dos leitores a quem este singelo convite é feito.
_______________
(As opiniões expressas pelos articulistas do Jornal da USP são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do veículo nem posições institucionais da Universidade de São Paulo. Acesse aqui nossos parâmetros editoriais para artigos de opinião.)