O Brasil, as universidades e a pesquisa eleitoral

Por Janice Theodoro da Silva, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

 07/10/2022 - Publicado há 1 ano

O resultado do primeiro turno das eleições revela as vísceras dos brasileiros e do Brasil. Diagnóstico: saúde em perigo.

Além da emoção, a cada passo das pesquisas, as tendências políticas retratam antagonismos: riqueza e pobreza, fartura e fome, amor e ódio ao próximo.

Venceram para o parlamento representantes de um grupo de brasileiros para os quais a vida humana tem importância relativa e o mercado, significado substantivo. As antigas fronteiras porosas se tornam a cada dia mais excludentes.

A produção de riqueza, defendida pelo grupo majoritariamente vitorioso no Congresso Nacional, desvaloriza valores tradicionalmente contidos na palavra humanismo. Este é o pilar, esquecido, pelos regimes democráticos. Muitos optaram pelo ódio deixando de lado o combate à fome, a tortura e a preservação do meio ambiente. Respeito ao próximo virou coisa antiga.

Como explicar o avanço de uma extrema direita indiferente à vida humana? Tendência comprovada pelo abandono da população durante a pandemia de covid e, na sequência, pela fome?

Como desvendar o negacionismo como estratégia de luta política questionando a importância das vacinas quando estamos diante da paralisia infantil?

Qual é a raiz deste novo ideário azeitado pelo ódio, pela negação de procedimentos científicos, pelo abandono da educação e do pensamento crítico?

Desvalorização das palavras e consequente desvalorização das pesquisas

O exemplo mais claro de desvalorização da pesquisa científica foi o uso da cloroquina para combater a covid. Pesquisa com métodos aceitos pela comunidade internacional de cientistas comprovaram não ter efeito o seu uso. Mas, em razão de interesses políticos e econômicos, alguns médicos receitaram esta medicação para seus doentes. O uso indevido deste medicamento e a política negacionista de vacinação demonstram negligência com a vida humana e com a ciência.

As manifestações a favor da cloroquina se inserem em um contexto no qual as palavras são manipuladas para banalizar o seu significado, confundir o receptor da mensagem em razão de um projeto político. Hoje o médico defende a cloroquina, amanhã não defende, depois relativiza, com o uso da retórica, apresentando pesquisas sem a devida comprovação de cientistas qualificados. O mesmo ocorre com afirmativas que negam ser a terra redonda ou que o holocausto não existiu, seduzindo o receptor pelo absurdo, pela desconstrução da realidade e pelo fortalecimento da imagem do caos. A palavra, fio condutor da razão, perde o seu antigo papel, de instrumento de compreensão do mundo, deixando para o interlocutor apenas a angústia, desconsolo e imobilidade frente ao caos, desordem.

Desordem é incapacidade de reconhecer sentido, capacidade de construir ou mudar a realidade.

Pesquisa e método

Toda pesquisa envolve discussão e aplicação de um ou mais métodos.

Os métodos são instrumentos de pesquisa em constante aprimoramento em relação aos seus objetivos. As novas tecnologias utilizadas em operações com robôs demonstram, por exemplo, melhorias nos métodos de trabalho dos médicos.

Durante a epidemia foi comprovado, por meio de pesquisas cientificas, não ter a cloroquina qualquer efeito no combate a covid. Os métodos utilizados nas pesquisas em laboratórios e a sequente verificação do uso da cloroquina em pacientes comprovaram ser ineficiente o uso deste medicamento para tratar a doença.

Os métodos científicos utilizados para a comprovação da eficiência de medicamentos são passíveis de contestação, desde que seja apresentada uma prova justificando o pedido de revisão. Cabe a pesquisadores de institutos de pesquisa e de universidades, reconhecidos internacionalmente, avaliar e reavaliar seus objetos de estudo. A existência de vários grupos de cientistas qualificados para a realização de pesquisas em todo o planeta é de extrema importância. A diversidade das instituições, os métodos utilizados, bem como o lugar onde atuam, impede o aprisionamento da produção científica em torno de interesses econômicos, políticos ou culturais.

A reflexão acadêmica internacionalizada, a pesquisa pura e a liberdade de discussão representam o coração dos avanços do conhecimento.

Método: a importância da palavra

As pesquisas de mercado como qualquer outra investigação envolve método e compromisso entre investigador e investigado. Desde o início da modernidade, com os avanços do pensamento científico, a premissa da investigação exigia e exige um compromisso entre as partes: dizer a verdade. Se o investigador perguntar: “Teve dor de cabeça ao tomar o remédio X?” A expectativa do investigador será obter uma resposta verdadeira do investigado. Sem o compromisso com a palavra, a pesquisa não poderá gerar resultados satisfatórios.

É possível pesquisar temas onde não existe relação entre o verdadeiro e o falso?

Sim.

Mas, neste caso, o método deverá captar as estruturas mentais capazes de incorporar as variações do uso da verdade e da mentira.

As palavras verdadeiro e falso, rico e pobre, sonho e realidade não existem obrigatoriamente em todas as culturas e não são palavras com uso semelhante em todos os grupos sociais. Por esta razão o investigador devera adequar o método utilizado às circunstâncias específicas do seu campo de estudo.

Suponhamos imaginariamente em uma determinada cultura ser costume não proferir o nome de uma pessoa que morreu, por respeito ao morto.

Como faremos para pesquisar a morte e a circunstância se não podemos perguntar para ninguém presente no evento, sobre seus sentimentos e sobre o acontecido?

Se o compromisso da comunidade é com o silêncio, cabe ao especialista adequar o seu método ao campo do silêncio. O silencio significa o quê na cultura analisada? A morte é falta, é ausência ou é desaparição material de uma pessoa? Qual o papel da memória ou do esquecimento?

Em algumas sociedades no início da Idade Moderna, empenhar uma palavra podia significar muito envolvendo valores como a dignidade. O respeito aos contratos, ainda hoje, significa segurança. Variável importante para o funcionamento equilibrado do mercado financeiro. Em diversas sociedades do Ocidente cristão falar a verdade teve e ainda tem importância fundacional. A democracia e a ciência dependem do bom trato com a verdade, com o acontecimento e com o fato.

Supondo a mentira ter se tornado instrumento político, o que ocorrerá com os bancos de dados, com os jornais, com o exercício da cidadania?

Será necessário readequar os métodos mantendo o respeito à pesquisa, à ciência e a busca constante da racionalidade.

Método nas pesquisas eleitorais

Na atualidade, as linguagens virtuais favorecem uma nova relação com as palavras. Mentira à vista. Foi dado a elas, as palavras, o poder de misturar o campo do acontecimento, com o campo da ficção. Omissão, mentira e inversão de significado se transformaram em estratégia política e militar de combate ao inimigo.

Chama a atenção os resultados obtidos nas pesquisas eleitorais (produzidas por instituições respeitáveis) quando comparados com os resultados alcançado pelos candidatos no primeiro turno das eleições. Embora as pesquisas indiquem apenas o retrato do momento em que foram realizadas, causou surpresa a diferença entre os resultados do primeiro turno das eleições quando comparado com o resultado das pesquisas realizadas anteriormente.

Os negacionistas aproveitaram a oportunidade para misturar pesquisa e método e desqualificar a ideia da importância das pesquisas na sociedade em que vivemos. O negacionismo precisa desmobilizar as pesquisas, necessita desacreditar os resultados estatísticos, evitar a transparência para favorecer o caos.

Por que pesquisas, levantamentos estatísticos, discussão sobre métodos de investigação e transparência incomodam?

Por que o INEP (Instituto Educacional de Ensino e Pesquisa), responsável por pesquisas na área educacional, teve suas matrizes de avaliação no ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) remodeladas exatamente no referente às diferentes linguagens?

Proibiram a Mafalda, personagem-professora dos exercícios de linguagem, do desencobrimento de verdades quase invisíveis. Por que ela foi censurada?

Por que Ricardo Galvão foi demitido do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) quando tornou transparente dados sobre desmatamentos no Brasil?

Precisamos esconder uma catástrofe ambiental anunciada?

Em benefício de quem?

Porque é necessário esconder os fatos comprovados por institutos de pesquisa sérios e responsáveis diante do trabalho que realizam.

Explico melhor com um exemplo:

Temos o grupo A utilizando o código nº 1, no qual a palavra serve para descrever um fato, respeitando métodos científicos para comprová-lo. E temos o grupo B utilizando o código nº 2, no qual a palavra expressa cumplicidade apenas com o grupo B, sem a necessidade comprovação dos fatos.

Se os códigos e o uso das palavras responsáveis pela unidade do grupo A e B são distintos, o instrumento utilizado nas pesquisas deverá moldado em função de duas ou mais maneiras de pensar.

Para discutir os métodos aplicados a investigação será necessário refletir sobre a natureza das duas (no caso) estruturas de pensamento a falsa/verdadeira, onde o interlocutor pode mentir e a verdadeira onde o interlocutor pretende responder a verdade sobre o que foi perguntado.

Estamos assistindo a mais profunda ruptura da linguagem desde o início dos tempos modernos.

O professor da USP Pablo Ortellado, em recente entrevista à CBN, refere-se ao fato dos votos do grupo bolsonarista serem mais disciplinados. Ele ressalta o fato dos dados obtidos nas pesquisas sobre os candidatos bolsonaristas, alguns ministros de governo, apresentaram resultados fora da margem de erro. Na contrapartida os dados das pesquisas dos apoiadores de Lula apresentaram uma tendência mais próxima dos resultados obtidos no primeiro turno das votações.

A observação é de extrema importância porque envolve diferenças no resultado obtido pelo grupo A e pelo grupo B. A resposta, de acordo com cada um dos grupos, dependerá da convenção (verdade, falsidade ou omissão) utilizada por cada um dos grupos. Se esta premissa levantada no artigo for verdadeira o método terá que ser revisto. O método apenas. Mas a pesquisa permanece como instrumento importante para aprimorar o uso da razão.

Os métodos de pesquisa na atualidade, especialmente das pesquisas eleitorais, terão que se adequar às mudanças ocorridas com as linguagens. Diferentes tribos farão uso diferenciado da linguagem, utilizando variados códigos de comunicação.

Se existe variação no código utilizado pelos grupos tornam-se necessário adequação de método. Em um grupo pode ocorrer uso alternado da verdade e da mentira enquanto no outro predominar a verdade.

A linguagem digital aumentou a porosidade das fronteiras entre a verdade e a mentira. Cuide-se leitor. Hoje o mundo da fantasia é predominante no dia a dia. A verdade, poucas vezes cor de rosa, afasta a vista, o ouvido e o coração reduzindo, invertendo e transformando o conteúdo de palavras como religião, ciência e amor.

Ia esquecendo de contar: no último jantar entre amigos, um convidado muito querido, chamado Ignácio de Loyola contou histórias incríveis. Ele teve no passado remoto experiências tanto com dinheiro como com a vida militar. Muito tenso com a vida no campo de batalha depois de um sério ferimento optou por exercícios do espírito, para diminuir a ansiedade e ser mais feliz. Melhorou um pouco. Pouco. Trabalhou também com o ministro do tesouro espanhol. Foi o braço direito de Juan Velazquez de Cuéllar. Conheceu de perto as tentações, os desejos estimulados pelo dinheiro.

Com sua experiência ele introduziu um pouco de esperança no jantar. Lembrou entre um vinho e outro: a razão humana também é também fábrica do justo. Nós, embora idosos, podemos utilizá-la. É a nossa arma. Afinal, não esqueçam, eu enfrentei combates, sobrevivi a ferimentos graves e, em momento difícil enfrentei a contrarreforma.

Força amigos, vamos em frente.


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