Leitura + matemática = ?

Por Janice Theodoro da Silva, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

 26/09/2022 - Publicado há 2 anos

Fala-se muito em educação no Brasil.

Da mesma forma que dizemos bom dia para o vizinho, repetimos a frase: A educação no Brasil precisa melhorar.

A educação brasileira melhorou nos últimos 100 anos?

Pouco.

Em 1920, 80% da população brasileira era analfabeta. Hoje, a taxa de analfabetismo é de 6,6%, por volta de 11 milhões de pessoas de 15 anos ou mais. Passados 100 anos os avanços foram pequenos.

Por quê?

A educação no Brasil nunca foi prioridade, assim como a fome não foi prioridade e a saúde também não. O sonho dos políticos brasileiros, homens em geral, tendeu mais para a pavimentação de estradas, construção de pontes e avenidas. Educação sempre foi “coisa” de mulher. Assunto secundário.

Tradicionalmente, o fermento para o bolo masculino, a economia, não priorizava verbas para a qualificação dos professores ou, mesmo, para a formação de técnicos capazes de consertar as máquinas e reparar as construções. Consertos no Brasil é um tema complicado. Brasileiro gosta mesmo é de construir. Até mesmo o patrimônio histórico tem poucas chances de sobrevivência. Conservação é trabalho delicado, exige arte e apego à história.

Só para lembrar: educar vai além de ensinar.

O Brasil, desde a chegada de Pedro Álvares Cabral e de seus replicantes, esqueceu do que é essencial: as gentes. Sejam eles índios, africanos, seres humanos, com carteira ou sem carteira assinada.

Ainda hoje fala-se muito em distribuir computadores nas escolas, comprar equipamentos sofisticados para fazer diagnósticos de doenças e construir edifícios. Os brasileiros esqueceram de ser necessário um humano, um médico para solicitar um exame, um entregador para levar a comida, uma enfermeira para ligar o respirador, um engenheiro para fazer cálculos de resistência de materiais, evitando a queda de passarelas, de pontes e prédios.

Focos da educação

Definido o foco central da educação, o ser humano, passemos para a prioridade seguinte, a número dois: linguagem. Sem a linguagem não há desenvolvimento humano. A linguagem é a responsável pela criação dos vínculos sociais, por nomear as coisas, simbolizar e desenvolver o pensamento abstrato, necessário para a construção da bomba atômica, produção de vacinas ou construção de pontes (entre outras coisas).

O século 21 se caracteriza pela revolução das linguagens: escrita, visual e principalmente digital. Os melhores exemplos das mudanças na atualidade são as fake news, o uso de memes e a rapidez na troca instantânea de mensagens. As fake news geram preocupação. É estranho os humanos contemporâneos preferirem relações sustentadas por mentiras e se divertirem divulgando notícias falsas. É necessário estudar este tipo de doença. Já os memes são criativos. Trata-se de uma nova modalidade de arte cooperativa onde se junta imagem, texto e ironia, igualando os interlocutores, conhecidos e desconhecidos, ricos e pobres, com alta e baixa escolaridade, permitindo a todos rir, trocar informações e modificar, de forma criativa e perigosa, os conteúdos. Trata-se de invenção democrática e politicamente arriscada. O terceiro elemento é o tempo. Ele ganhou outro ritmo: instantâneo. A rapidez da comunicação exclui muita gente, os lentos educados à moda antiga. A ligeirice tornou difícil eliminar mentiras e corrigir erros, antes que eles se espalhem em tempo real.

Ninguém poderia imaginar possuir a revolução tecnológica poder para dinamitar as antigas práticas políticas, consolidadas com base na velha linguagem retórica, no exercício da lógica, da comprovação e da argumentação. Ninguém poderia supor, em tempos modernos, o fato de milhões e milhões de pessoas optarem pela desinformação, pelo autoritarismo e pelas visões medievais sobre a vida, a saúde e o planeta.

Vivendo e aprendendo. Assim caminha a humanidade.

Demos um passo para a frente com a tecnologia e suas linguagens, e um passo para atrás com o uso inusitado das mesmas linguagens (escrita, visual, matemática, cenográfica, digital, entre outras) nas redes sociais. As duas coisas são verdades comprovadas.

As novas tecnologias e o mercado exigiram, desde o início da era moderna, uma matematização do real. Comprar, vender, financiar, calcular juros, somar, subtrair multiplicar, dividir, equilibrar, poupar, financiar, encontrar a proporção certa, abstrair. A linguagem matemática é a nossa companheira constante. Sem ela é difícil sobreviver. Educação financeira se tornou um tema importante nas escolas, assim como empreendedorismo e protagonismo. É fácil justificar a importância do ensino das linguagens matemáticas. O raciocínio matemático permite controlar as finanças da casa, administrar um negócio, pagar as dívidas e até produzir dinheiro investindo dinheiro. O raciocínio matemático e estatístico é essencial para sobreviver nas sociedades contemporâneas.

Prezado leitor, o Google não nos deixa mentir. Usando algoritmos é possível conhecer melhor o consumidor do que qualquer humano conhece uns aos outros, amigos e inimigos.

Mas, como tudo na vida, as linguagens podem ser utilizadas para o bem e para o mal.

Observando os dados

A importância do raciocínio matemático é evidente. Mas não se deve esquecer o lado negativo do raciocínio matemático também praticado pelos humanos.

Os crimes cibernéticos agregam o uso do raciocínio lógico, da linguagem digital e da matemática, habilidades bem azeitadas com altas doses de inteligência socioemocional. Uma espécie de combo para malfeitores especializados no roubo de idosos, mães e amigos, pessoas dispostas a ajudar o próximo, reservatório ético de uma sociedade.

Segundo dados divulgados é possível ter uma pequena dimensão do problema: “o Brasil é o segundo país do mundo em crimes cibernéticos. De acordo com o relatório da Norton Cyber Security, em 2017, os crimes cibernéticos atingiram 62 milhões de pessoas com prejuízos de 22 milhões. No topo da lista está a China, com um prejuízo de US$ 66,3 bilhões”. Nos Estados Unidos, em 2019, a soma em crimes cibernéticos alcança o prejuízo de US$ 3,5 bilhões e o vazamento de dados de empresas corresponde a uma perda de US$ 53 milhões. Além destes números citados, existem outras modalidades de crimes conforme citado em artigo do G1 publicado em 13/02/2020. Os prejuízos, a angústia das pessoas roubadas e a quebra de confiança geram um profundo mal-estar na cultura e em sociedade.

A singela frase no WhatsApp: “Mãe você poderia me adiantar R$ 1 565 reais. Devolvo amanhã”, acompanhada de imagem e clonagem de número telefônico, pode ser a chave para um “roubo” envolvendo as várias habilidades do estelionatário.

Qual a conclusão?

A educação está deixando de lado o essencial tanto no Brasil como nos Estados Unidos e no mundo. O sintoma é perceptível no uso das novas linguagens e tecnologias.

O que está sendo deixado de lado? A ética (em geral e na política) habitante dos textos literários e artísticos. Neles ela surge como pessoa, circunstância e abstração. Sugiro uma hipótese para a reflexão.

Tenho o estranho hábito de “namorar estatísticas” e conjugar dados com circunstâncias históricas do passado e do presente. Tomando os dados do Pisa de 2018 comparei a diferença entre os indicadores de matemática e de leitura, no Brasil e nos Estados Unidos (29 e 27), em razão dos problemas políticos semelhantes nos dois países. Em seguida comparei as diferenças com os indicadores apresentados por outros países como Portugal, França, Alemanha e Reino Unido, cujos indicadores apontavam valores bem menores (0, 2, 2, e 2). Considerei, além destes números, o respeito pelos estudos artísticos e literários nestes países. Observei em seguida o fato de muitos brasileiros quererem deixar o Brasil para morar em Portugal e não no Chile (pátria do neoliberalismo), por exemplo.

Onde mora a tranquilidade e onde habita a intranquilidade? Nos Estados Unidos, no Brasil, em Portugal ou no Chile?

Os dados do Pisa, de 2018, sugerem alguma pista sobre o que é educar e como pode ser agradável e seguro viver em um país com índices altos de abstração e apreço pela literatura/leitura.

Leitura Matemática Diferença
Brasil 413 384 29 Leitura
Estados Unidos 505 478 27 Leitura
Chile 452 417 35 Leitura
Portugal 492 492 0
França 493 495 2 Matemática
Reino Unido 504 502 2 Leitura
Alemanha 498 500 2 Matemática
Média da OCDE 487 489 2 Matemática

 

O que os dados apresentados acima apontam?

  1. Observa-se ser a matemática importante indicador de capacidade de abstração e riqueza;
  2. É grande a diferença entre leitura e matemática no Brasil e Estados Unidos (27 e 29 pontos), apesar do Brasil estar abaixo da média da OCDE e os EUA acima;
  3. Nota-se equilíbrio (matemática e leitura) e altos índices de qualificação da educação quando o pensamento abstrato está desenvolvido de forma equilibrada (de 0 a 2 pontos) nas duas áreas de conhecimento, demonstrando a associação de leitura/compreensão aprofundada com o raciocínio matemático desenvolvido, resultando em bem-estar social.

A importância dos raciocínios abstratos é evidente quando se observa apenas o desenvolvimento econômico dos países, o PIB (Produto Interno Bruto). Já a qualidade de vida exige, além da abstração, boa simbolização (por exemplo, decodificação de fake news), capacidade de desconstruir diferentes linguagens, vocabulário amplo, reconhecimento de diferentes formas narrativas, abstração, decisão e ação cooperativa. Reparem a distância dos indicadores entre as áreas, leitura e matemática, nos Estados Unidos (27 pontos), um país rico, e comparem com Portugal (0).

O viver em democracia exige capacidade de abstração, essencial na política. Política e educação andam de mãos dadas. Exige capacidade de julgamento justo em circunstância e exige conhecimentos específicos e práticas de virtudes próprias do viver em sociedade.

Exemplos práticos de linguagens cenográficas demonstrando a sua importância na atualidade:

Por que os ingleses respeitam as filas? De que forma o funeral da rainha Elizabeth II, especialmente a fila de despedida, representou o funcionamento harmônico da sociedade inglesa?

Observem e comparem em que medida a realização de um comício na embaixada brasileira, durante o funeral da rainha, demonstrou desrespeito pelo equilíbrio social, harmonia política e segurança na Inglaterra?

A cidadania dos ingleses foi bem expressa na fila, e reforçada pela presença e respeito da população durante a cerimônia fúnebre. A cenografia teve muita importância política no país e fora dele.

Linguagem cenográfica de uma forma de organização política.

No contrafluxo da civilização, o presidente do Brasil, ao fazer discurso político sobre temas domésticos na janela da embaixada brasileira, em meio à cerimônia fúnebre, expressou cenograficamente a vontade autoritária de apenas um. Demonstrou desrespeito pela morte da rainha, pela forma de inserção dos ingleses em sua sociedade, pelo equilíbrio social, agindo com irreverência política contra a ordem política ali representada.

A linguagem cenográfica da barbárie é na atualidade um gênero utilizado na comunicação.

Uma pequena anotação com relação aos gêneros textuais

A retórica argumentativa é linguagem bastante utilizada por cientistas, advogados e na vida política. Atualmente serve como medida para a seleção nas redações dos exames vestibulares. Embora seja importante saber defender uma ideia, não devemos excluir outras modalidades de gêneros textuais, outras formas narrativas capazes de ampliar o campo da percepção, para além do certo versus errado, do bem contra o mal. Não se deve abandonar o velho hábito de contar histórias. Ele pode introduzir paz na sociedade. Um movimento narrativo de complementação da ideia do interlocutor é elemento de composição do tecido social para além das disputas, desejo de vencer por meio da superioridade argumentativa. Todos os vestibulares deveriam inserir também este gênero em seus processos seletivos.

Educar é ensinar o estudante a tecer convívios amáveis, por vezes polêmicos, administrando igualmente os conflitos e a conciliação, valorizando a gota do que é possível salvar para evitar a ruptura, a guerra, a tragédia. Putin é exemplo da prática da retórica do inconciliável no seu limite.

Explico melhor. Em uma mesa de jantar posso servir um peixe. Um membro da família pode dizer que aquele tipo de peixe fica melhor assado que cozido. Um defende o peixe assado e outro, o cozido. Na discussão entre competidores um vai vencer por meio de fortes argumentos. Verdadeiros? Não obrigatoriamente. A vitória pode ser fruto apenas do uso mais elaborado da arte retórica por um dos narradores. O sabor do peixe real, assado ou cozido, e do deleite da amizade será soterrado pelo regozijo do vencedor, responsável pelo melhor argumento. Apenas ele, com a vitória, sentirá o gosto, não do peixe, da competição. A vitória e o prazer serão de apenas um.

Outra família faz um peixe assado e ele não fica uma maravilha. Um amigo sugere abrir um vinho para equilibrar o sabor do peixe, e outro recomenda comer o peixe com o suflê, acompanhamento leve e saboroso. Complementando a narrativa inicial, outro convidado ainda lembra de uma pescaria, conta um caso, e assim sucessivamente, sem a malfadada competição, contam uma história, constroem uma narrativa, tecem a amizade (e não o conflito). Alguém ri, feliz.

O filósofo à mesa lembra do velho amigo Adorno, contador de histórias.

Viver em sociedade é como um jantar com os amigos. Educar para a democracia, para a política, corresponde a “com-viver” com diversos letramentos, tecnologias, cenografias, visualidades, paladares harmoniosamente azeitados com vinho. Sem eles estaremos mais perto da barbárie do que da civilização.

É preciso estar atento e forte.


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