Cenografia política, girassóis e tomate

Por Janice Theodoro da Silva, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

 04/11/2022 - Publicado há 1 ano

Os debates políticos estão perdendo a importância?

Sim, estão.

Eles esclareceram o eleitor em suas escolhas políticas?

Não. Os candidatos não informaram nem esclareceram os seus programas de governo ao longo da campanha. O resultado (grosso modo) foi a manutenção da posição original dos eleitores, estruturada nas redes, antes da campanha.

Os temas dos debates foram tratados de maneira genérica. A cena televisionada parecia um ringue onde dois boxeadores se enfrentaram. A avaliação possível concentrava-se no domínio retórico dos candidatos sobre temas de interesse geral, na capacidade de lidar com a agressividade do oponente e na sensibilidade para gerar identidade entre o expositor e o público.

Sempre foi assim?

Em parte. Estamos diante de mudanças profundas na maneira de se comunicar e fazer política. As formas de difusão de informações sofreram abalos estruturais nos últimos dez anos. A retórica argumentativa, utilizada antigamente nos debates, depende de um certo comprometimento com a verdade. Hoje ele (o comprometimento) não existe mais. Foi para o ralo não só o fato real como a forma de comunicação, debates.

As fake news abalaram os alicerces da linguagem.

Sem um mínimo compromisso com os fatos enunciados, pelos debatedores, não é possível discutir. Atualmente cada debatedor/enunciador é portador da Sua Verdade embalada na Sua Ficção e na Sua Cenografia. Tudo é relativo. Cada um enuncia, à Sua moda, o fato. O “estilo” prevalece em detrimento da informação. Nada é sólido o suficiente para viabilizar uma discussão com base em diferentes hipóteses.

A melhor solução, diante deste impasse, é o jornalista perguntar para o candidato o que ele pretende fazer na economia, na saúde, na educação e em outras áreas. É mais seguro apresentar para o espectador dados, comparações entre países e análises de especialistas, informações produzidas por centros de pesquisa, concordantes e discordantes entre si. As bolhas e suas fronteiras devem ser temas constantes de análise por diferentes especialistas nacionais e internacionais.

Cenografia

As palavras cederam lugar para uma cenografia difundida digitalmente. A troca do predomínio do lugar das palavras para as imagens na comunicação pode ser perigosa. As imagens atualmente ocupam lugar central na comunicação.

A cena, o pequeno espetáculo, define o caminho político a ser escolhido pela plateia. A cenografia, acompanhada da musicalidade de frases de efeito, da policromia da roupa dos figurantes e do uso de alguns objetos, como as armas, por exemplo, são os elementos centrais de uma nova linguagem em alta no mercado da comunicação.

Seduz um acontecimento espetacular marcado pela ação dos figurantes. A exibição da cena deixa encoberto motivos, razões, lógicas justificadoras do acontecimento.

Uma cena repleta de carros de polícia, de tiros e granadas constitui um episódio para ser “lido”. Já o debate político televisivo, exibido tarde da noite, tem menor importância. Falta nele movimento de cena. Predominam palavras e esboços de ideias. Pouca ação dos protagonistas, apenas rivalidade retórica, estimula mais o sono do que a compreensão política das coisas.

As novas estratégias publicitárias com base em levantamentos estatísticos ganharam espaço no mundo atual. Basta abrir os jornais para ver um Brasil expresso em dados, gráficos e tabelas. O GRANDE lugar de fala é desenhado atualmente pelos marqueteiros, especialistas em estatística e cenografia, pouco afeitos aos estudos de ética, filosofia e prudência. Prudência, pobre prudência.

Para enfeitiçar políticos comunicadores lançam mão de cenas semelhantes a enredos de ópera com inserções bufas. Repetem o cinema fascinando com cenas de impacto, com tiroteios, mortos, policiais sangrando e estradas paradas com fogo em pneus acentuando luz e cor. Atraem também representações religiosas, como o Círio de Nazaré (Belém, Pará), a missa em homenagem a Nossa Senhora da Aparecida, ou as motociatas. As aparições sugerem manifestações medievais, um teatro religioso onde o flagelo do pecador era realizado em praça pública. Episódios de exibição midiática de valores morais, como a queima de bruxas em público. Cenas responsáveis pela composição de uma linguagem visual, de nexos de memória, comum entre os participantes de uma determinada bolha.

A estética renascentista, com o auxílio da perspectiva, soube desenvolver no teatro a ilusão da realidade. Hoje o mundo 3D cumpre papel similar. Volta à cena, com peso, o uso da cor (vermelho, branco ou verde e amarelo). Lembrem-se do problema político ocorrido atualmente em razão do uso tradicional do vermelho pelos cardeais. Um “gancho” cenográfico. Observe-se o retorno de signos formais, como parte do controle político da plateia. A valorização da forma lembra as alegorias medievais. O poder é travestido em tipos fixos (Filipe, o Bom; Joana, a Louca; Carlos, o Temerário) excluindo as mudanças no tempo e no significado das coisas, nos usos e costumes de uma determinada sociedade: um mundo sólido, estático, avesso a mudanças, exige guardiões armados, interrupções no trânsito (rodoviário) e medo.

Trata-se de compreender – o que se perde e o que se ganha no campo da política – com o uso das mídias digitais, com destaque para o celular. Uma onda de imagens transformadas em linguagem política materializa uma ordem divina, um reflexo do sobrenatural, expressão de valores eternos, imutáveis, supostamente as únicas expressões da verdade. Este mundo cristalizado é extremamente autoritário, imperial e avesso às diferenças e às mudanças.

Debater o quê? Se o mundo é apenas a descrição do “divino”.

A razão, o livre-arbítrio e até São Tomás de Aquino deverão ser queimados na fogueira da verdade única?

Perigo à vista.

O universo cenográfico, rígido, é o argumento central deste artigo. Nele os valores morais são expressos como uma imagem cristalizada de coisas. Morte para quem sair do quadrado, das 4 linhas.
Cuidado, amigos. As grades para aprisionar o pensamento são produzidas, inicialmente, com imagens. O mundo digital sabe disto. O ser analógico não sabe. Ele faz política à moda antiga.

Violência digital

Por que nos tornamos espectadores passivos da violência digital?

Porque não fomos alfabetizados neste código. Somos analfabetos na inteligência digital, mesmo aqueles que passam o dia no celular. Dou um exemplo.

Levamos ingenuamente nossos filhos a uma festa para crianças em espaço alugado pelos pais do aniversariante. Cada convidado e o aniversariante, todas as crianças colegas de uma mesma escola católica, ganham uma metralhadora de plástico, armas para brincar de atirar digitalmente nos amigos. Esta brincadeira é a cenografia escolhida para comemorar o aniversário de uma criança com seus melhores amigos.

Uma velha senhora, uma avó analógica, tem um ataque de nervos. Estamos naturalizando o quê? A arma?

Trata-se de fato verdadeiro. Explico.

Um sufocamento em praça pública não é visto como um sufocamento de fato, é uma cena (Genivaldo de Jesus Santos). O uso de uma granada não é visto como um ataque de fato a policiais, é uma ópera (Roberto Jefferson). Vivos e mortos não são pessoas reais, são imagens. Foram ações idealizadas e planejadas teatralmente antes de ocorrer, precedem a realidade. A imagem digital, sua repetição, seu ritmo e mesmo o seu rápido desaparecimento à moda dos stories no celular já cumpriram o seu papel. Formataram as mentes. Podem desaparecer em 24 horas depois da postagem.

A linguagem verbal, as palavras, além de se constituir em repositório de comunicação, ainda é necessária para o debate e crítica de doutrinas políticas, religiosas, projetos culturais, artísticos. Ela é necessária para a crítica, para a compreensão do passado (mudanças) e do presente. Precisamos cuidar dela, da palavra. A ruptura do tecido social, político, humano é resultado da incapacidade de compreender os perigos dos novos códigos e letramentos difundidos na sociedade atual.

Foram muitos os motivos que explicaram a difícil vitória de Lula. Entre tantos, merecem destaque as populações do Nordeste. Ali vivem pessoas que conhecem o valor real da chuva, o valor real da terra e o quanto dói a fome. Elas não perderam a dimensão do que é gente, do que é planta e do que é coisa. Os centros urbanos foram mais rapidamente manipulados pelo mundo digital. No sertão, o mundo real bate na porta de outro jeito.

A alfabetização digital é muito mais complexa e perigosa do que imaginamos. Exige aprendizado de diversos letramentos: o que confina e o que liberta. A primeira lição necessária é leitura de imagem; a segunda, avaliação da fonte de origem da informação; a terceira, sentir, tocar, cheirar o que nos cerca no planeta: terra, água, gentes, bichos, plantas.

Girassóis, de Vincent van Gogh, e tomate

Caminhando nesta direção, das imagens, merece destaque o fato de alguns jovens terem jogado massa de tomate na obra Girassóis, do pintor holandês Vincent van Gogh.

Que língua é esta? Língua de Girassóis com massa de tomate? O que os jovens tentam nos dizer?

Nas redes sociais, o grupo explicou: “A arte vale mais que a vida, mais do que comida, mais do que justiça”.

É justo?

Estarão eles certos ao expor, de forma absurda, os absurdos da contemporaneidade?

O que fazer?


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