A enciclopédia Britannica, cuja referência denota o período formativo de quem a compulsa, indica ser o assento com encosto uma das mais antigas formas de mobiliário. Criado por volta de 2600 a.e.C., ao tempo da terceira dinastia no antigo Egito, esse móvel é destinado a receber apenas uma pessoa a cada vez. Suas características – o espaldar físico e a singularidade da ocupação, às quais não costumamos dar atenção especial, têm desdobramentos em dimensões importantes da vida em sociedade – existencial, política e espiritual, que são ilustradas brevemente à sequência. Também afetam a vida acadêmica, motivação para elaborar este despretensioso texto para o espaço generoso do Jornal da USP.
A vivência das práticas tradicionais faz com que, já na tenra infância, este autor tenha o seu primeiro contato com o conceito existencial de liberdade por intermédio justamente da cadeira – especificamente pelo seu encosto. É que cabe um papel especial ao/à caçula na cerimônia familiar que marca o início da semana anual de festividades associadas à libertação dos hebreus da condição de escravidão em que viviam no antigo Egito. Esse papel, que excita e exercita a curiosidade infantil, é o de formular perguntas acerca do que diferencia o jantar familiar nessa noite festiva dos jantares habituais. Uma das perguntas costumeiras é: “Por que em todas as noites comemos sentados ou reclinados, mas nesta noite estamos todos reclinados?”.
A circunstanciada resposta ao questionário do/a caçula começa com a explicação, por um dos adultos, de que “éramos escravos, agora somos pessoas livres”. Comer com vagar, confortavelmente reclinado no encosto da cadeira, era na antiguidade considerado privilégio das pessoas livres. Para incutir o valor contemporâneo da liberdade, acentua-se na continuação da cerimônia que “em cada geração as pessoas devem se ver como se elas mesmas tivessem saído do Egito”. E para reforçar a universalidade dessa exortação, aduz-se a observação de que Mitzraim, nome do Egito em hebraico, pode ser também lido como meitzarim, que significa “estreitos”. Celebra-se assim a capacidade que cada indivíduo tem de “sair das estreitezas”, ou seja, de superar as suas limitações.
Desde a antiguidade e em civilizações diversas, a cadeira se torna um elemento central da simbologia política associada ao poder, tanto no plano material como no espiritual. Incrementada fisicamente pelo alargamento do assento e elevação do espaldar, e engalanada por um requintado conjunto de adereços, essa variante de cadeira, mais confortável e vistosa, recebe um novo nome – trono. Ao contrário da universalidade da mensagem de liberdade suscitada pelas cadeiras singelas, em que cada ser humano pode se reclinar, o trono é para muito poucos. Mais precisamente, nele apenas podem sentar soberanos e dignitários de elevada estirpe, como o Papa na Igreja Católica Romana. Pesquisas arqueológicas indicam que, em tempos antigos, tronos são também reservados para o assento de divindades, habitualmente antropomorfizadas. Por serem de uso estritamente individual, esses móveis acabam se tornando metonímia de competição pelo poder, como indicam, entre outras, as expressões “dança das cadeiras” e “ascender ao trono”. Neste caso, pelo poder hegemônico.
No ambiente acadêmico, a cadeira é usada como figura de linguagem para representar situações distintas. Em nosso meio, indica uma unidade curricular, o que usualmente denominamos de disciplina e, menos frequentemente, de matéria. Em outras culturas universitárias, como a norte-americana, ela pode designar duas condições diferentes. Uma, de caráter administrativo, é a posição do/a chefe de um departamento acadêmico. A outra, de caráter meritocrático, designa uma iniciativa compósita, com foco na produção de conhecimento sobre uma temática determinada. Uma cadeira dessa natureza é liderada por uma/a docente de elevado prestígio acadêmico e grande capacidade de granjear apoios externos, em particular doações pecuniárias de monta. Esta é a chamada endowed chair, habitualmente designada com o nome do filantropo respectivo, que aufere capital reputacional em troca do capital financeiro aportado.
Outra interessante forma mobiliária está presente nas universidades – a cátedra. Esse assento de espaldar alto, habitualmente com braços (ou melhor, com apoio de braços), é um móvel dedicado a autoridades acadêmicas e a professores/as ilustres. Ela é muitas vezes colocada sobre um estrado, de maneira a facilitar o reconhecimento a distância do seu ocupante pelos participantes de um evento público. No medievo, o professor leciona sentado na cátedra situada num plano elevado, sendo por isso denominado de catedrático. Essa configuração reforça simbolicamente a sua autoridade sobre os alunos e discípulos, fundamentada na assimetria de conhecimentos.
No Brasil, o sistema de cátedras vitalícias, por nomeação ou concurso, vigente desde o Império é radicalmente alterado pela reforma universitária do final da década de 1960, sob a égide do regime autoritário. Ela institui o sistema departamental e extingue a cátedra na organização do ensino superior brasileiro. As disposições legais associadas à reforma acarretam o desaparecimento da figura do catedrático como elemento centralizador das decisões acadêmicas.
Surpreendentemente, a cátedra renova a sua presença no cenário universitário brasileiro pouco tempo após a redemocratização do País. A “nova cátedra” é uma iniciativa plurianual voltada à produção e difusão de conhecimento de alto nível por um coletivo diverso, sobre uma temática determinada. É liderada por uma sucessão de personalidades reconhecidas, externas à Universidade. Para sua operação ágil, a cátedra conta com o apoio de parceiro institucional, que habitualmente participa ativamente das decisões estratégicas e da avaliação dos resultados, contribuindo também com recursos essenciais à viabilização das suas atividades. Esse conceito reformulado tem semelhanças com a endowed chair, mas guarda diferenças apreciáveis. Uma delas é ser a titularidade da cátedra atribuída a forâneos.
Dario Borelli, editor assistente da revista Estudos Avançados, relata no no 14 desse periódico a criação de duas cátedras no Instituto de Estudos Avançados da USP (IEA) já no biênio 1991-1992. São elas: Jaime Cortesão, resultante de convênio com a Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, e Simón Bolívar, fruto de um acordo com o a Fundação Memorial para a América Latina. Atualmente o IEA opera seis cátedras, inaugurando a sétima em março de 2023. E está por iniciar um levantamento aprofundado das cátedras ativas na Universidade, com vistas à realização do I Encontro das Cátedras USP. Seus objetivos são apreciar as duas décadas de funcionamento do novo modelo e estimular atividades intercátedras. As bem-sucedidas experiências-piloto realizadas no âmbito das cátedras do instituto podem servir de inspiração e incentivo.
Falamos de cadeiras e cátedras na universidade. Mas o trono também encontra lugar na vida acadêmica, como evidencia o capítulo “A luta pelo trono: Gilberto Freyre versus USP” que integra obra sobre esse notável intelectual*.
*FALCÃO, Joaquim. A luta pelo trono: Gilberto Freyre versus USP. In: FALCÃO, Joaquim; ARAÚJO, Rosa Maria Barbosa de (Org.). O Imperador das ideias: Gilberto Freyre em questão. São Paulo: Fundação Roberto Marinho: Topbooks, 2001, p. 131-167.
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