No que a USP ainda tem que mudar

Por Gislene Aparecida dos Santos, professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP

 09/09/2024 - Publicado há 4 meses

Em 2023, publiquei um artigo sobre concursos para titulares na USP. Houve retornos importantes de pessoas que apresentaram seus entendimentos sobre os processos ocorridos na Universidade. Embora tenham sido feitos comentários acerca de possíveis exclusões de mulheres, humilhações e constrangimentos, se eu fosse construir uma nuvem de palavras a partir da análise do conteúdo que chegou até mim, destacaria “articulação política” como a mais relevante, visto que tais concursos foram percebidos como algo estreitamente conectado a esse aspecto. Foram essas percepções que impulsionaram a criação de uma página no Instagram com uma campanha intitulada “A USP tem que mudar”, com o objetivo de discutir e propor soluções contra práticas e regras que podem tornar a Universidade um ambiente hostil e excludente.

Quero apresentar algumas descobertas importantes no processo de discussão que se originou daí. Ficou evidente que há muitas USP dentro da USP. A USP progressista, democrática, onde se pensa e se vive uma academia que valoriza a diversidade como essencial para o conhecimento, para a ciência, para as universidades. A USP corporativa, voltada à manutenção da brand como universidade associada à alta performance em rankings internacionais. Mas há, também, a USP que teme mudanças porque as entende como algo que pode destruir a Universidade construída, ao longo de décadas, por pessoas que representam essa USP para indivíduos quase sempre como elas mesmas.

Nesse contexto, os concursos para titulares se tornam um espaço de disputa pelo poder de definir como e para quem a USP deve ser e, por isso, estão associados ao que foi percebido por alguns como constrangimentos, humilhações, injustiças (além de baixa eficiência e eficácia). A campanha busca apontar problemas nas regras e procedimentos que seriam a causa de tudo isso. A partir das discussões que se seguiram, é possível dizer que, para alguns, a própria existência de concursos para titulares seria algo inaceitável em razão de tudo o que envolve e pelos problemas que acarretam, tais como criar desafetos e inimizades, gasto de tempo com a administração de contendas entre colegas, rachas em unidades, perda do potencial e interesse de docentes antes engajados, judicializações.

Hoje, os concursos para titulares são desenhados com o objetivo de selecionar quem deveria assumir posições de liderança, contribuindo para a construção do modus vivendi acadêmico de sua unidade e da USP. Todas as unidades indicam o perfil desejável do professor titular. Subjacente a isso, e que não aparece nos textos oficiais, pode haver desejos dos grupos que ocupam posições nos colegiados, entre lideranças, no momento nos quais os concursos ocorrem, para tentar “desenhar” o modelo de USP com o qual se identificam e no qual acreditam e defendem que seja mantido. Mas isso não é oficial, não está escrito que os concursos são feitos com essa finalidade.

Alguns definiriam esse processo como um jogo, no qual alguns vencem, outros perdem. Ou seja, não indicaria, exclusivamente, a definição de quem tem mais mérito acadêmico, quem produziu mais e melhor. Se fosse somente uma avaliação de mérito, seria algo facilmente definido por meio de outros métodos que não concursos para titulares. Por que não instituir modelos como o de professores plenos, por exemplo? E, obviamente, não se trata de um jogo, já que pessoas têm suas vidas alteradas ou duramente afetadas pelos resultados de tais concursos. Trata-se, isso sim, de definir quem é mais qualificado para contribuir com o desenho institucional idealizado pelo grupo (ou grupos) que tem o poder de fazer valer o modus vivendi uspiano no qual acredita e de excluir quem é compreendido como ameaça a esse desenho.

É fundamental compreender o enorme risco associado a projetos políticos e/ou educacionais desenhados a partir do intuito de combater possíveis ameaças. Quem define quais seriam as ameaças e a partir de quais parâmetros essas ameaças são definidas? O quanto há de republicano e democrático na construção de projetos com esse teor? Qual o valor ou valores nos quais se alicerçam? Tudo isso precisaria ser discutido, mas não é, porque não são coisas explícitas e não fazem parte do que é oficial. Por isso a página no Instagram chama a atenção para regras e procedimentos e suas falhas.

A história demonstra o que o discurso em torno do combate a ameaças suscitou e pode suscitar. Cada momento e cada local pode eleger a sua ameaça, o seu perigo real e imediato, os seus medos. Para nós, na USP, quem levanta o discurso da ameaça pode estar preocupado com a entrada ou a ascensão na carreira de acadêmicos lidos como pessoas que afetarão, negativamente, o prestígio ou a brand USP com a qual se identificam. E, como em todos os casos ao longo da história, a construção de ações que visam deter ameaças sempre se vincularam a estigmatizações, preconceitos, discriminações e, em casos graves, massacres.

A discussão suscitada pela página “A USP tem que mudar” deu atenção a tudo isso, para que a universidade não se torne um espaço de violência institucionalizada contra pessoas que são lidas, por alguns, como ameaças ou indesejáveis para a manutenção do que alguns entendem como modus vivendi uspiano ideal, ou, ainda, que não seja um jogo de poder para constrangimento de inimigos e fortalecimento de alianças. E discutiu alguns dos impasses e problemas associados aos concursos de ingresso.

Como dito, há muitas USP dentro da USP. Certamente há uma USP que é vanguarda ao não temer a face da mudança que hoje, na Universidade, tem gênero, raça, cor e etnia. Que essa nova USP crie um modus vivendi no qual todos caibam e trabalhem pelo melhor que a Universidade pode ser, ter e fazer, e para que a melhor brand que a USP possa representar seja a da excelência com diversidade.

Com esse texto eu me despeço da participação na campanha “A USP tem que mudar”, com a esperança de que muitas e muitos colegas se engajem, sugerindo caminhos para a Universidade.

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