O mundo mais autoritário

Por Gaudêncio Torquato, escritor, jornalista, professor titular da Escola de Comunicações e Artes da USP e consultor político

 02/05/2023 - Publicado há 11 meses

A constatação é triste: 72% da população mundial vive hoje em países não democráticos, ditaduras ou autocracias eleitorais. Na última década, as ditaduras subiram de 22 para 33, enquanto os sistemas democráticos caíram de 44 para 32. Sobe também o número de democracias falhas, tipo a brasileira, um modelo híbrido que abriga componentes de regimes autocráticos e democráticos, onde ocorrem falhas na aplicação de princípios e valores, como liberdade de imprensa, independência entre os Poderes, repressão policial, ameaças de golpes, integridade do sistema eleitoral, entre outras.

Tal constatação tem como fonte uma pesquisa feita pelo instituto sueco V-Dem, da Universidade de Gotemburgo. A escalada autoritária é uma ameaça ao equilíbrio entre as nações. Nos últimos tempos, o planeta vive sob o temor de que uma nova Guerra Fria, que poderá ser o estopim de um conflito de proporções mortíferas para a humanidade. China e Rússia, juntas na estratégia de eliminar o poderio ocidental, capitaneado pelos Estados Unidos, e tendo como pano de fundo a tragédia que se abate sobre a Ucrânia, empurram o planeta na direção do precipício.

Afinal, o que ocorre com as democracias? Estão morrendo? Assistem, inertes, ao desvanecimento de sua base? Não têm resistido ao volume crescente da violência, que invade os ares da liberdade por todos os lados? A luta do poder pelo poder, sem as luzes das ideologias e doutrinas, seria uma volta ao nosso passado ancestral?

São questões cruciais. Que mereceram análises de cientistas políticos. A afamada obra Como as democracias morrem, dos professores Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, é um importante roteiro para entendermos a vida contemporânea. A tese principal é a de que os sistemas são corrompidos por meio da perversão do processo legal, significando que os governos legitimamente eleitos subvertem os meios que os levaram ao poder.

Na América Latina, basta ver os golpes militares, no Brasil (1964), na Argentina (1966), no Chile (1973), no Uruguai (1976) e os movimentos de tendência golpista, que ocorrem aqui e ali, a escancarar a instabilidade das instituições representativas, a militarização da vida política e o cerceamento da liberdade política e de expressão.

Até a maior democracia ocidental, a norte-americana, tem sofrido ameaças, a partir da eleição de Donald Trump e sua pregação antidemocrática. Nunca se viu tanta pregação contra os eixos da democracia.

A crise, como se sabe, é crônica, se arrasta há tempos. E onde estão suas raízes? Norberto Bobbio, cientista social e político italiano, em sua clássica obra O Futuro da Democracia, levanta a questão: as democracias não têm cumprido seus compromissos para com as comunidades.

Promessas não cumpridas partem do bojo de uma sociedade pluralista, com vários centros de poder, da persistência das oligarquias e sua força no sentido de preservar suas tradições, da permanência do poder invisível, que confronta o poder visível, representado pelo Estado, e da figura de um cidadão não educado para a democracia. A incultura política campeia. Bobbio é enfático: a apatia política chega a envolver cerca da metade dos que têm direito a voto. É pouco. Pois em nosso Brasil, a imensa maioria do eleitorado ainda vegeta no terreno que se chama “cidadania passiva”.

As promessas não foram cumpridas por causa dos obstáculos e desafios impostos por uma sociedade que saiu de uma economia familiar para uma economia de mercado. Uma economia planificada, que abriu a era do “governo dos técnicos” e trouxe, em seu arcabouço, sérios problemas, como desemprego, inflação, aumento das desigualdades, competição desvairada, violência.

O rendimento do Estado democrático sofreu queda e, em muitos países, os sistemas governativos tornaram-se ingovernáveis. As tensões entres Poderes contribuíram para a instabilidade institucional. As ingerências de um Poder sobre outro tornaram-se constantes, a ponto de se considerar que funções legislativas são absorvidas pelo Poder Judiciário, como ocorre, hoje, por nossas bandas. Há xerifes sentados nas cadeiras da mais alta Corte.

O STF até parece uma gigantesca delegacia de polícia, a julgar vândalos. O Poder Executivo, por sua vez, encabresta o Poder Legislativo, com sua articulação para cooptar parlamentares com liberação de recursos e outros meios de atração, como cargos e espaços na estrutura administrativa.

Em um ensaio alentado, os professores e pesquisadores Fernando Limongi e Angelina Figueiredo explicam: “O padrão organizacional do Legislativo brasileiro é bastante diferente do norte-americano. Os trabalhos legislativos no Brasil são altamente centralizados e se encontram ancorados na ação dos partidos. Ademais, enquanto o presidente norte-americano possui limitados poderes legislativos, o brasileiro é um dos mais poderosos do mundo […] da mesma forma, não é possível desconsiderar os poderes legislativos do presidente.”

O fato é que o exercício da governança se torna cada vez mais complexo. Os interesses grupais e individuais suplantam as demandas coletivas. A conquista do poder, a qualquer custo, é a meta que transforma a política em uma arena de lutas. Sob essa paisagem conflituosa, golpes, insurreições, movimentos de ruptura, ancorados nos quartéis e nas armas, são os novos componentes que corroem os vãos e desvãos das democracias, tornando o mundo mais autoritário.

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