Cronicando

Por Gaudêncio Torquato, escritor, jornalista, professor titular da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e consultor político

 19/12/2022 - Publicado há 1 ano

O analista político costuma usar uma veia por onde corre a seiva de seu pensamento: é o artigo, o comentário, o texto interpretativo. O roteiro é conhecido: a hipótese, no início, a argumentação, no meio, e a conclusão, ao final. Já aos poetas (cronistas, acrescento) e pintores abre-se a mente criativa, com o jogo de palavras, o uso das metáforas, a imbricação de figuras de linguagem, os versos, o ritmo, enfim, a leveza das frases sob a permissão que Vergílio lhes concedia na Eneida: “poetis et pictoribus, omnia licet” (aos poetas e pintores, tudo é permitido).

E se o articulista optar pela seara que não é bem a sua? Tentar, por exemplo, caminhar pela vereda dos sentimentos, pelas dobras do coração, pela complexa maquinaria da linguagem para conseguir o intento de ler a política e o espírito do tempo, adotando outra modelagem, sem recorrer a narradores que não ele? Intuo que os leitores perceberam meu desejo de seguir essa trilha.

Pois vamos lá. Começo com o óbvio: o Natal está chegando e os sinais mostram o espírito do tempo: sacolas cheias nos shoppings, trânsito intenso, irritação dos mais apressados, ruas lotadas, a contraditar a expressão de que as luzes natalinas iluminam um tempo de paz e harmonia.

Haverá paz na era da competição? Não no campo da política, espaço de contendas e emboscadas, de ódio e vingança. Arengueiros de todos os calibres estão a postos, conquistando ou reconquistando o poder para abater adversários e aqueles que não comungam com seus interesses. Habitantes dos assentos nas arquibancadas da política procuram seus lugares nos estádios construídos por mandatários. O céu para uns, o inferno para outros. Pátria amada, Pátria desarmada, pregam os desafetos. Estocadas recíprocas.

A guerra não cede aos contendores. Cada qual tem balas no bornal. Uns, limpando a poeira, refazem imagens com a tintura das estações. Outros, procurando novo habitat, se refugiam nas dispersas ilhas do imenso arquipélago. Guerreiam para ganhar lugar na ilha principal, no centro do território. Lá onde só se respira poder.

Nos desvãos do inconsciente, a historinha alimenta predadores e suas caças. “Toda manhã na África, a gazela acorda. Ela sabe que precisa correr mais rápido que o mais rápido dos leões para sobreviver. Toda manhã na África um leão acorda. Ele sabe que precisa correr mais rápido que a mais lenta das gazelas senão morrerá de fome. Não importa se você é um leão ou uma gazela. Quando o sol nascer, comece a correr.”

Triste realidade. Nascer, crescer, amadurecer e lutar para sobreviver na corrida da vida, cumprir as leis, seguir os ditames, sob pena de ser engolido pelas garras ferozes do “homem (que) é o lobo do homem”, conforme apregoava Thomas Hobbes. É essa a cena que estamos vendo em terras do planeta, onde irmãos se tornam inimigos uns dos outros, vivendo um conflito pela conquista de territórios. Todos de um lado contra todos de outro.

O desânimo é o ânimo sem vontade. Como animar-se depois de uma tragédia que matou perto de 700 mil pessoas em nossas plagas? Que harmonia podemos construir vivendo um clima de final de ano em um país que viu sumir a alegria de milhões de famílias? A intensa gastronomia natalina pode saciar o apetite dos estômagos, mas não supre as carências da mente.

O olhar para a manjedoura, nas igrejas e nos lares cristãos, contempla a mãe, Maria, o pai, José, e o filho, o criador que nasceu para nos salvar. Mas o olhar vem acompanhado de aflição e angústia, sob a tênue esperança de um futuro menos doloroso.

Como salvar os seres que vivem sob o ódio, destilam o veneno da crueldade, depredam propriedades privadas e públicas, despindo o véu de sua humanidade? Onde estão o bucolismo dos tempos de outrora, a conversa nas calçadas, os passeios tranquilos nas tardes e na boquinha da noite? A memória dos nossos antepassados vai se perdendo na poeira do tempo, sufocada pelo turbilhão de barulhos e clamores da agitada vida urbana.

Resta como consolo a pequenina chama de nossos candieiros, uma fatia de crença de que o amanhã será melhor do que o ontem, o sinal de que a ciência avança, abrindo as gavetas de remédios e drogas capazes de estender o tempo de nossas vidas. Resta ouvir as palavras do velho Zaratustra, no alto da montanha, sobre a beleza da vida:

“Amo o que ama a sua virtude, porque a virtude é vontade de extinção e uma seta do desejo… Amo o que faz da sua virtude a sua tendência e o seu destino, pois assim, por sua virtude, quererá viver ainda e deixar de viver… É tempo que o homem tenha um objetivo… É tempo que o homem cultive o germe da sua mais elevada esperança… É preciso ter um caos dentro de si para dar à luz uma estrela cintilante”.


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