Brasil ficando para trás

Por Gaudêncio Torquato, escritor, jornalista, professor titular da Escola de Comunicações e Artes da USP e consultor político

 24/04/2023 - Publicado há 12 meses

Começo com uma platitude: a maior revolução que um país pode empreender é a da educação. Tem sido assim ao longo da história. Estados que investiram pesadamente na educação avançaram celeremente na rota civilizatória. O Brasil tem ficado para trás. Os números são desoladores.

Quase 60 milhões de alunos matriculados na educação básica e superior tiveram aulas suspensas no ciclo da pandemia da covid-19. E 35 milhões passaram a ter aulas remotas. Na rede pública, quase 30% dos alunos não têm acesso à internet. Por todo o País crianças e adolescentes abandonam a escola nos últimos anos. Os analfabetos somam cerca de 15 milhões. Afora o analfabetismo funcional, esse que agrupa os indivíduos que reconhecem letras e números, mas são incapazes de compreender textos simples ou realizar operações matemáticas mais elaboradas. Atenção para esse contingente: 30% da população brasileira, mais de 60 milhões de pessoas. Uma calamidade.

O assunto, agora, é a reforma do ensino médio. Que implica a lengalenga: vamos ouvir a sociedade, vamos refazer isso e aquilo. É o velho Brasil: o verbo sempre sufoca a verba. Discute-se muito e se faz pouco. O Ministério da Educação se propõe a fazer uma consulta a 100 mil professores e alunos, via WhatsApp, para puxar as linhas reformistas. E tome burocracia, pesquisas, estudos, documentos, blablablá. Cultivemos a fé e a santa paciência. Quem sabe, um dia, consigamos chegar ao cume da montanha? Se a montanha não descer até Maomé, quem sabe… o profeta irá até ela?

O fato é que o Brasil parece condenado a rastejar na sombra de países que fazem da educação a locomotiva do progresso, como Reino Unido, Finlândia, Eslovênia, Suécia, Canadá, Japão, Coreia do Sul, entre outros. O Brasil deixa de ganhar dois pontos porcentuais no PIB, ao ano, por conta da nota média dos estudantes, comparada com a de alunos de países desenvolvidos.

A crise da educação básica é um fio esgarçado que prende o País à teia do atraso. Pior é que isso ocorre no momento em que as condições para a decolagem são propícias. O País volta ao normal depois de uma era de grande turbulência. E não se venha com essa de que faltam recursos. Nos últimos tempos, saímos da casa dos milhões para acompanhar o balé dos bilhões. Que dançam de lá para cá, manipulados pelo universo parlamentar.

E mais: a Constituição estabelece o valor para aplicação na educação, 25% do orçamento. Além disso, há até decisão para se gastar além do teto, se for necessário.

Afinal, o que falta para se fazer a “revolução” na sala de aula? Esse menu tem “muita farofa e pouca sustança”. A fachada da nossa cultura é de areia sem cimento, o que a transforma numa “cultura de fachada”. A índole do povo, como alguns apontam, é a raiz da crise. Diz-se que o sentimento de liberdade, inerente à alma brasileira, seria incompatível com o arcaísmo do ensino do bê-á-bá. A aula-padrão quadrada, lousa, giz e saliva perdem eficácia diante de cognições mais sensíveis à estética. Em suma, tem muita lorota nessa discussão.

O fato é que a escola pública, modelo de qualidade em nações desenvolvidas, é entre nós a cara da ruindade: desaparelhada, sujeita à violência, professores ausentes, parcos salários, gestão improvisada, falta de assessoramento pedagógico. E por falar em violência, essa é a nova faceta que marca os vãos da rede escolar. Os ataques surgem no território, assombrando a comunidade estudantil. As redes sociais veiculam conteúdos ameaçadores. O medo baixa por todas as regiões. As autonomias se esfacelam. Os professores entram nas salas do desânimo e da desmotivação.

Cerca de 70% dos formados em licenciatura no País não querem dar aulas. A descontinuidade administrativa trava experiências. Somos um país que preza experimentações isoladas. Mas ações fragmentadas não ajudam a agregar qualidade. A ausência de compartilhamento entre modelos gera uma anatomia educacional como a do queijo suíço, cheia de buracos. Emerge uma questão de fundo ideológico: o conceito da educação para a cidadania, tão enfatizado por Norberto Bobbio. Governantes e muitos representantes preferem cidadãos passivos a ativos. Por serem depósitos de votos a seu favor. Já os cidadãos ativos filtram a água contaminada nos vasos eleitoreiros.

E assim, o Brasil estica o cordão da cidadania passiva. O que diriam os grandes educadores como Anísio Teixeira, Paulo Freire e Darcy Ribeiro? Concordariam com as estacas populistas fixadas na cerca escolar? Quando sairemos das polêmicas questões de ideologia de gênero e outros modismos? Lembro o bigodudo Nietzsche gritando sobre um penhasco de Engadine, nos Alpes, refletindo sobre as correntezas baixas: “vejo subir a preamar do niilismo”.

É o que estamos vendo. Infelizmente, dribles morais continuam a dar as cartas. O Brasil vai apagando das páginas de sua História o mito de paraíso terrestre. Tempos em que Pero Vaz de Caminha, embevecido com a exuberância das águas cristalinas dos rios, a beleza das praias, o jardim paradisíaco, habitado por gente pacata, descrevia a El-Rei a condição ímpar da terra em que “se plantando, tudo dá”.

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