Bigalhas nas democracias

Por Gaudêncio Torquato, escritor, jornalista, professor titular da Escola de Comunicações e Artes da USP e consultor político

 05/06/2023 - Publicado há 11 meses     Atualizado: 06/06/2023 as 18:43

A tampa da panela democrática foi aberta. E uma onda de calor se espraia pelos ares da cozinha. A guerra da Ucrânia amplia as correntes de quentura, deixando ver os pinos das enormes panelas da China e da Rússia e, em outro canto, alinhados, os buracos dos vapores que saem dos países dos territórios sob a bandeira da Otan.

Daí emerge a hipótese que, há tempos, faz curvas nos penhascos democráticos: trocas de governos sob o pandemônio de rombos nos tesouros nacionais têm sinalizado a ascensão da tecnocracia ao centro do poder político, contribuindo para mobilizar massas, até então amorfas.

Abrigados nos vãos ideológi­cos, grupos de todos os matizes passam a agir como exércitos deste­midos, tomando as ruas, questionando governantes açoita­dos desde a crise financeira de 2008 e acendendo a fogueira de figurantes e de algumas propostas, como é o caso de reformas.

Em todos os continentes, bilhões de dólares passam a compor o fermento para compor a massa que alimentará famintos e bombardeados. Na Ucrânia, os desvalidos estendem as mãos. Por aqui, os bem nutridos abrem os bolsos.

Avoluma-se o berro por mudanças drás­ticas no planeta, liderados pela ação de partidos que sacodem o continente europeu, inserindo na agenda amplo debate sobre os parâmetros regulatórios da União Europeia (UE). A par de interesses de radicais, que esquentam a polêmica e partem para o embate, o que está em jogo neste momento, nos EUA e em outras praças, é o próprio equilíbrio do sistema demo­crático, a ensejar a instigante questão: a crise os conflitos ameaçam os valores da democracia?

A expressão das comunidades resgata a tese de que as econo­mias continentais diferem bastante para ficarem sob as rédeas de uma única política monetária. As assimetrias, como agora se mostram, eram previsíveis. Os Farialimen alçam voo. Os marginalizadosmen pescam nas cabeceiras dos rios.

O ordenamento do império financeiro – inspirado na proteção dos cofres e no fortalecimento dos PIBs – acaba tapando os olhos para o conforto social, ainda que as equações produzidas pelos formuladores de plantão tentem demonstrar relação de causa e efei­to, estratégia para defesa do bem-estar geral.

Não faltarão questionamentos à abordagem, bastando lembrar a receita brasileira: para enfrentar a crise prescreveu o acesso da população ao crédito e consumo. Ora, este é o eixo central do governo Lula III.

Não se descartam otimistas previsões sobre a maior influência brasileira no mundo, a partir da posição de sua volta à mesa do G20 e da vontade do nosso mandatário-mor em dar o tom dor na orquestra das nações. E ninguém duvida que o patrimônio brasileiro no campo da megabiodiversidade haverá de conferir grandeza à nação.

Urge analisar o segundo ator importante no qua­dro das democracias contemporâneas: o tecnocrata. De início, é oportuno lembrar que não há mais no planeta brilhantes estrelas da política. O painel da humanidade locupleta-se de figuran­tes sem o glamour de líderes que marcaram presença na história.

Quem se lembra das lições de sabedoria e do tino de figuras portentosas como De Gaulle, Churchill ou Margaret Thatcher? As nações dispõem hoje de quadros funcionais de limitado ciclo de vida política. Os conflitos do passado, cujos focos eram a geopolítica e a expansão de domínios, cedem lugar às lutas internas contra o dragão que devasta as finanças e corrói riquezas. É natural, pois, que o perfil do momento seja aquele treinado nos salões da tecnocracia. O termo vem a calhar nestes tempos de insegurança, eis que agrega habilidade (tekné) ao poder (krátos). Isso é o que se espera dos “solucionadores de problemas”.

Afinal, o tecnocrata faz mal à democracia? A pergunta está no ar desde a queda do Muro de Berlim, no vácuo deixado pelo desvanecimento das ideologias e pela pasteurização partidária. De lá para cá, governos esvaziaram seus compartimentos doutrinários, preenchen­do-os com quadros burocráticos e apetrechos técnicos para obter efi­ciência e eficácia. Inaugurou-se o ciclo que Maurice Duverger cog­nomina de “tecnodemocracia”, que sucede à democracia liberal.

Seus eixos se apoiam em organizações complexas e racionais e, hoje mais que nunca, levam em conta a gangorra dos capitais financeiros mun­diais. A política deixou de ser uma unidade autônoma, passando a depender de mais duas hierarquias: a alta administração do Estado e os negócios. Esse é o feitio dos modernos sistemas demo­cráticos. O Brasil orgulha-se de ter liquidado sua dívida externa. Hoje, credor do FMI, enterrou uma história pontilhada de excessos fiscais e monetários, desde os princípios do século passado, quando importava caixões de defuntos vindos da Inglaterra, prontinhos e es­tofados em veludo, para receber empresários decadentes e burocratas inescrupulosos. Mas continua a praticar mutretas.

O sonho de Campos Sales realizou-se, depois de lutar entre 1898 e 1902, para fazer o saneamen­to financeiro e estancar sua dívida externa. De lá para cá, quase tudo mudou. Pinço Fernando Gabeira, ao lembrar que, por aqui, a coisas andam a passos galopantes. Lula foi eleito nos mandatos anteriores com grandes margens. Elegeu-se para o último com pequena margem. Não percebeu, porém, que governa um Brasil rachado ao meio. Fatias do bolo são distribuídas no Centrão, cujo dicionário começa com na letra B, onde estão as bigalhas dos cofres. Isso mesmo, milhões de migalhas entupindo os dutos.

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