Um cruzeiro e uma instituição pública de ensino, pesquisa e extensão: duas “viagens” diferentes

Por Fábio Frezatti, professor da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) da USP

 26/01/2023 - Publicado há 1 ano     Atualizado: 30/01/2023 as 20:20

O que um navio que faz um percurso de cruzeiro tem a ver com uma instituição pública de ensino, pesquisa e extensão? No cruzeiro temos em cada viagem milhares de pessoas completamente diferentes em termos de origens, do nível de conhecimento do que vem pela frente, das expectativas e dos graus de tolerância a erros, convivendo durante um tempo. Existem espaços diversos para jogos, shows, contatos, oportunidades para dança, canto e evidentemente muita alimentação, espaço para algum isolamento nas cabines e, talvez, bebidas. Cada um faz o que quer nos espaços dentro do escopo definido previamente. A liberdade é grande e, quanto mais é exercida individualmente, maior é o risco da necessidade de aumentar algum tipo de controle. Tudo é pensado e feito para agradar e entreter os convidados para a viagem que deve durar alguns dias ou, quando muito, semanas.

Existe uma preparação dos viajantes com muitas informações antes e durante o período de convivência. A tripulação que cuida dos passageiros é contratada pela sua especialização e dá para perceber que recebem treinamento para adesão à cultura do negócio e a palavra coordenação aparece em cada atividade. As pessoas são avaliadas e cobradas de várias maneiras. Alguns artistas da viagem poderiam ser encontrados no Circo du Soleil ou na Broadway. A alimentação é segmentada por horários e locais, mas não pode faltar e tem que ter a aceitabilidade das pessoas. Entregas dentro do prometido. Podemos dizer qualquer coisa, mas a evidência da eficiência e eficácia para a gestão é muito grande. Alguém planejou, alguém executou e alguém controlou. E mesmo assim, as pessoas que fazem o programa, em certos casos, reclamam, pois, as expectativas não foram atendidas. O mundo não é perfeito, mas a gestão faz a diferença.

O que uma instituição pública de ensino, pesquisa e extensão tem a ver com isso? São tão diferentes! Existe alguma semelhança? Algumas. Uma instituição pública de ensino, pesquisa e extensão também tem um número grande de pessoas extremamente segmentadas que deva proporcionar benefícios, sendo elementos de transformação nas suas vidas a curto, mas principalmente para o médio e longo prazos. O grupo de beneficiários também é tremendamente heterogêneo nas várias dimensões: expectativas, acesso às informações, entendimento e visão de benefício mesmo. Nada é de graça e o financiamento sempre será uma preocupação, sendo que ocorre de formas diferentes, tanto pelo tipo de financiador como a questão temporal. Só paga o cruzeiro quem entra no navio e desfruta de tudo o que ele oferece, o que se caracteriza como uma relação causal forte de custo & benefício. A entidade pública é financiada por todos os habitantes do território em que a entidade se localiza e os olhares com percepção e de agregação de valor são frequentemente muito distintos. Aí tem quem se sensibilize exclusivamente por benefícios diretos para a sua família, não percebendo outros que só aparecem quando desaparecem.

Questionamento sobre a eficiência do papel da área pública é um fenômeno mundial, nada de novo. Dentre vários autores posso citar Crawford, C. (2019), Nagy, J. & Robb, A. (2008) e Du, J. & Lapsley, I. (2019), que tratam o assunto sob diferentes perspectivas. Afinal, na sociedade, todos pagam e todos esperam que os benefícios sejam amplos e a distribuição dos recursos favorável aos seus interesses. O questionamento tem sido tratado desde longa data e, inevitavelmente, acaba sendo analisado a partir de perspectivas ideológicas diferentes, oportunismo e mesmo perspectiva imediatista. De qualquer forma, a discussão passa por preferências entre público & privado ou público ou privado.

Num mundo em mudança permanente, a busca por maior eficiência é crucial e deve acomodar as várias dimensões, como econômica, social, ambiental e de governança. Isso é válido tanto para o setor privado como a área pública. Na área pública gerar prestação de serviços que sejam percebidos pela comunidade como bons e adequados é essencial. Um equívoco frequentemente encontrado é considerar eficiência como uma variável binária, ou seja, é ou não é eficiente. Absolutamente injusto. Na verdade, trata-se de uma variável ordinal que devemos acompanhar a evolução no transcorrer do tempo.

Sem estabelecer uma lógica razoavelmente estruturada para a gestão nas organizações, a discussão sobre eficiência não pode ser ancorada. Partimos da perspectiva de que a gestão contém três ingredientes básicos, que são o planejamento, a execução e o controle. Para a operacionalização do tripé existe demanda de diferentes recursos, que são estrutura organizacional (e dentro dela, pessoas), disponibilidade de informações (onde encontramos desde o sistema de informações até os relatórios que contêm as informações; na verdade a lógica da tecnologia, onde for demandada, aqui deve ser analisada), procedimentos e políticas, ritos e mecanismos de acompanhamento, de reconhecimento e de incentivo. O conjunto de elementos pode ser moldado de diferentes maneiras e diferentes importâncias de cada recurso dependendo do que se pretende na gestão. Fragilidades nesses cinco elementos afetam diretamente o potencial da gestão de uma entidade.

Sem o objetivo de esgotar o assunto, destaco alguns pontos de reflexão que considero importantes:

1. escopo e o core,
2. efetividade da comunicação,
3. adequação de recursos no tempo e
4. desenvolvimento de pessoas.

O escopo define os limites, as fronteiras de responsabilidade e autoridade de atuação. Perguntas do tipo “faz sentido cobrar isso de nós?” no mínimo deveriam fazer parte de uma reflexão, pois podem distorcer o que de fundamental deve ser entregue. Uma instituição sem clareza no escopo não conseguirá atingir a sua missão. Por outro lado, chamamos de core o ponto central, aquilo que não pode de forma alguma deixar de ser atendido. O core deve estar dentro dos limites do escopo. Não dá para o core mudar a cada ano.

Os esforços das instituições públicas de ensino, pesquisa e extensão são notórios em termos de dispor de indicadores, meios e frequência para comunicar fora dos intramuros aquilo que proporciona à comunidade para que ela tenha condições, individual e grupalmente, de formar sua opinião. Entretanto, é como escovar os dentes: a atividade é continua e nunca se esgota.

A adequação dos recursos no tempo é um desafio enorme pois exige ajustes para que o planejamento seja amplo, envolvente, responsável e com garantias de continuidade. Recurso é uma palavra sintetizadora pois cobre desde dinheiro, conhecimento, prédios e tecnologias diversas, mas o recurso vital mais crítico é gente, nos mais variados níveis e atividades. Assim, não apenas atrair, contratar pessoas, temos que gerar mecanismos perenes de desenvolvimento. Desenvolver é bem mais do que treinar e tem conexões com definições de metas, remuneração, acompanhamento e reconhecimento das pessoas. Numa instituição de ensino, pesquisa e extensão, a gestão deve ser realmente valorizada e não entendida como um castigo por não se tratar do “primeiro amor” dos pesquisadores. Ou se muda essa cultura de maneira genuína ou não teremos gestores no futuro.

Tudo que fazemos tem a influência da gestão, quer percebamos ou não, e ela é vital para que se atinjam os objetivos que justificam as missões das organizações. O planejamento permite definir prioridades, estabelecer momento adequado e possibilidade de praticar a justiça se a gestão for praticada. Existindo um plano, a execução pode ser monitorada e ajustada ao longo do tempo. Por sua vez, o controle começa no momento em que planejamos pois, com isso, trazemos clareza do que deve ser feito. Com isso, o planejamento serve para que as pessoas corram atrás do que deve ser feito e respondam por variações em relação àquilo que foi decidido. Não se trata de adivinhar o futuro, mas, dado um cenário, atuar de maneira assertiva e coordenada.

A gestão demanda conversa íntima com a palavra poder. Sem caneta ninguém gerencia. A gestão existe em qualquer modelo, seja ele centralizado ou descentralizado, coercitivo ou facilitador, participativo ou egocentrado. A gestão é fundamental para qualquer sentido da palavra sustentabilidade porque busca equilibrar tensões, proporcionar foco no convívio dos envolvidos na vida das entidades, perseguir o tolerável em termos de direcionamento de longo prazo, legitimo e eficiente.

Por que comparar coisas tão diferentes? Para sair do nosso ambiente, que conhecemos muito bem. E aí, como ficou a “viagem”? Do navio eu não sei, mas da instituição pública de ensino, pesquisa e extensão podemos gerar impactos transformadores de longo prazo com o aperfeiçoamento da gestão.

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