“Quando Nietzsche, digo, o editor, chorou”

Por Fábio Frezatti, professor da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) da USP

 19/10/2022 - Publicado há 2 anos

A escolha de um livro para leitura não obrigatória pode passar por vários critérios, mas não tenho dúvida que a intuição é um elemento importante. Claro que a intuição pode ser domesticada e capturada por uma capa atraente, indicações de especialistas ou influenciadores, ou uma frase que te chame a atenção ou que traga aproximações com elementos de interesse.

O importante é que existem livros para comunicar conhecimentos, livros de distração e assim por diante. Escolhi o romance Quando Nietzsche chorou, de Irvin D. Yalom, para me divertir com um personagem complexo num ambiente em que a realidade e a ficção são conectadas na estratégia do romance. O Nietzsche do livro é alguém complicado, chato, egoísta, potencial suicida, enfim, o Nietzsche do Yalom. Por outro lado, o dr. Josef Breuer é alguém cuidadoso, obstinado com o compromisso do tratamento de seus pacientes. Sua missão seria salvar o paciente Nietzsche e o problema é que o paciente não entendia que precisasse ser salvo. A sacada foi o dr. Breuer, o terapeuta, se apresentar como paciente, pedindo ajuda para Nietzsche, que se transformaria no terapeuta. Uma transformação se instala no relacionamento entre os dois e o inesperado se apresenta: com a troca de papéis o nível crítico muda de lugar.

Na primeira investida de Nietzsche, como treinamento para tratar o dr.Breuer, com a “acidez crítica”, constrói uma narrativa destrutiva sobre uma personagem maravilhosa, a Lou, simplesmente aquela que poderia curar seus problemas afetivos. No lugar de ser capaz de ver a beleza no sentido amplo de uma pessoa, criou defeitos inexistentes.

O paciente se transforma no terapeuta e o terapeuta em paciente. Não é isso que acontece quando um autor se torna revisor de artigos acadêmicos, a mudança de papéis? Os editores convidam autores que produzem trabalhos entendidos como de qualidade para revisar artigos submetidos aos periódicos. O papel do revisor, normalmente, é consultivo, cabendo ao editor analisar e decidir a partir do parecer. A lógica é que um autor competente saberá analisar e contribuir para o aperfeiçoamento de uma comunicação de pesquisa de outrem. O inverso também pode ser inferido: um revisor competente pode ser um ótimo autor e o editor tenta atrai-lo e gerar a percepção de comunidade.

O autor é vital para o ecossistema de comunicação científica, mas, sem o revisor, o sistema perderia, além da legitimidade, a chance de aperfeiçoamento. Dentre as várias possibilidades de atração de um revisor, é muito interessante quando nele o desejo de aprender é percebido. Ainda bem que temos revisores maravilhosos em termos de competência e compromisso. Contudo, se por um lado ele tem o poder de proporcionar condições de aperfeiçoamento do conhecimento, por outro também pode destruir uma abordagem proposta dependendo de como entender o seu papel.

O “como” é chave no relacionamento. E aí, o editor “chora” para “traduzir” uma mensagem mais dura em algo útil e construtivo para os autores. Chora porque tem que equilibrar vários elementos da comunidade, numa lógica de longo prazo e não apenas para uma situação isolada, sob o risco de perder a costura da comunidade pela perspectiva da confiança no ambiente de apoio mútuo, não recíproco.

O poder nietzschiano depende da estrutura existente e do limite de responsabilidade estabelecida formalmente. Em dadas situações, o tímido autor se transforma em revisor feroz trazendo mais do que sugestões, imposições percebidas como inexequíveis por quem as recebe. O que fazer para administrar seus Nietzsches? Ter paciência… e entender a estratégia do dr. Breuer.

Gostei de um comentário de uma revisora reconhecida como um dos destaques na revista que eu contribuo como editor, que disse que analisava os artigos como se fossem os seus próprios, apenas lidos com outros óculos. Uma Nietzsche convertida à humanidade! Sonho de editor!

Na verdade, a troca de papéis entre os autores e revisores pode gerar situações em que os editores acabam chorando por ter que lidar com conflitos de difícil solução. É um choro sentido.

Você quer saber como a história do livro termina? Bom, a história do livro tem o desfecho a partir da página 348. E o choro do editor? Depende de entender a técnica do dr. Breuer e conseguir colocar o seu Nietzsche na dosagem adequada do seu papel.


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