Duas cartas

Por Eva Alterman Blay, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP

 15/08/2022 - Publicado há 2 anos     Atualizado: 23/08/2022 as 15:02

“Nós, mulheres, preferimos enviar cartas em lugar de bombas”, escreveu Svetlana Alexijevich, no livro A guerra não tem rosto de mulher. É verdade: preferimos dar à luz, fazer viver, mas, atenção, não confundir paz com covardia. É exemplar a guerra travada contra a oposição ao feminismo nos últimos 50 anos. Lutamos contra a resistência da política e da ciência quando colocamos como pauta a questão de gênero.

Mary Berrry, secretária da Educação de Washington, na nota introdutória de Sex Roles and Social Policy: a Complex Social Science Equation (1979), relata como a política científica resistiu fortemente ao financiamento das pesquisas sobre os papéis sexuais. Esse histórico livro testemunha a resistência da incorporação das pesquisas sobre a mulher no campo da sociologia. Elise Boulding, do Dartmouth College, conta como em 1970, no 7º Congresso da Associação Internacional de Sociologia, em Varna (Bulgária), o tema Sex Roles foi recusado! Depois de muita insistência, várias pesquisadoras conseguiram que o assunto dividisse uma sessão com o grupo sobre Raça. Isso causou mal-estar entre esses últimos, que viram seu tempo reduzido. Em consequência, após a reunião, aquelas pesquisadoras decidiram pela criação de um comitê de pesquisa específico sobre Papéis Sexuais na Sociedade (Study of Sex Roles in Society). Assim, no congresso seguinte, em Toronto, o novo comitê obteve sua própria sessão.

Elise Boulding codirigiu a sessão com André Michel e publicou uma parte das apresentações em 1979. Elise destaca que, embora o tema fosse a “igualdade nos papéis sexuais”, efetivamente os trabalhos focalizaram a relação entre homens e mulheres e a desigualdade de poder entre os sexos. Resultou que a questão dominante passou a ser: como alcançar igualdade no campo do poder.

As pesquisadoras procuraram superar meras descrições e buscaram comparar, em diferentes partes do mundo, as discriminações e a igualdade sexual. Ao focar a igualdade de oportunidades procuraram não cair na armadilha de que as mulheres devem ter os mesmos direitos que os homens, mas mostraram que para mudar os papéis sexuais das mulheres deve ocorrer uma política de mudança concomitante com os homens (sex roles policy must support changes in men’s as well as women’s roles).

A Suécia é vista como pioneira pois desde logo coloca os direitos da criança, não para facilitar o pleno emprego das mulheres, mas situá-las como seres integrais. Ao analisar países do Leste Europeu as autoras mostraram que, para contrabalançar a queda na taxa de nascimentos, foram ignoradas as preferências particulares e se privilegiou o interesse de uma “política socialista” em que as “mulheres ficassem em casa e tivessem seus bebês”.

Publicado em 1979, o livro aborda também outros países como a Jordânia, Israel, Noruega, França, Índia e, sinteticamente, países da Europa Oriental, como Áustria, Bulgária, Tchecoslováquia, Alemanha, República Democrática da Alemanha, Hungria, Polônia, Romênia e URSS (hoje a geopolítica traz outros nomes para estas regiões).

Comparando os vários estudos, concluem que família, a força de trabalho e a educação são as áreas que mais podem sofrer intervenção, principalmente se apoiadas por leis e pelas convenções de direitos humanos. Participação política, lazer, minorias são outros temas não abordados que precisariam ser aprofundados,concordam as editoras.

Como se vê, essas pesquisadoras já previam o que nós, no século 21, ainda tentamos alcançar. Elas reconhecem várias lacunas, sabem que têm uma visão parcial, que dispõem de uma perspectiva ocidental do processo de desenvolvimento e que faltava conhecer as atividades das mulheres iletradas das sociedades rurais do terceiro mundo. Elise Boulding destaca que o mero letramento não significa avanço para as mulheres, e que há uma simplificação quando se “ignora o alto nível de conhecimento das mulheres rurais do terceiro mundo na produção de alimentos que conseguem produzir para as necessidades da família, apesar de disporem de equipamentos pobres…”.

É surpreendente a semelhança entre o movimento feminista em várias partes do mundo e no Brasil. Os temas tratados na década de 1970, naqueles congressos internacionais, alguns dos quais fiz parte, eram os mesmos que tratávamos aqui. Discutíamos naqueles anos uma nova agenda de direitos para as mulheres: igualdade civil entre homens e mulheres, igualdade na família, nos bens, com relação aos filhos. Escrevemos nossas demandas numa Carta dos Direitos da Mulher e a entregamos aos Constituintes em 1987. Elas foram incorporadas na Constituição Cidadã aprovada em 1988.

Hoje, 2022, nós, mulheres, subscrevemos uma nova carta: a Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito. Nela, nos somamos à maioria da população brasileira visando a eleições democráticas. É claro que nossa trilha continuará sendo a palavra escrita. Mas…


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