Desejo, presença, estudo, imaginação e corpo: o que ofereço quando entro em sala de aula

Por Ester Gammardella Rizzi, professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP

 30/03/2023 - Publicado há 1 ano

Há tempos penso que existem aproximações entre o atuar como professora em uma sala de aula e atuar, como fazem atrizes e atores, em um palco teatral. Recentemente essa aproximação vaga ganhou contornos mais definidos. Adrián Fanjul, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, escreveu algo sobre a morte recente de María Onetto, atriz argentina. Fui procurar entre os vídeos disponíveis na internet para ver se se encontrava a peça que ele havia mencionado. Não encontrei.

No lugar, encontrei um vídeo aqui em que María Onetto discute a utilização do termo “atuar” como sinônimo de fingir ou mentir. Se contrapõe, na verdade, a essa compreensão, afirmando que “nada mais verdadeiro do que atuar”. Para justificar a afirmação contraintuitiva, ela descreve como ela entra em um palco teatral. Quais “verdades” ela oferece para seus espectadores ao estar em um palco, ao interpretar um papel escrito por outra pessoa.

Desejo

O primeiro elemento descrito por Onetto é o desejo de ser atriz. Argumenta que pode ser fácil saber que uma atriz deseja ser uma atriz quando ela é protagonista de uma peça sucesso de público e de crítica. Mas… a vida é longa, nem sempre o papel é o da protagonista. Nem sempre é o papel mais desejável ou que se encaixa melhor, nem sempre há público numeroso para assistir. Nesses momentos mais difíceis, afirma ela, é preciso lembrar: ela escolheu ser atriz. Ela desejou ser atriz. Fala sobre este desejo como algo mais potente do que uma simples vontade momentânea. “O desejo é um movimento emocional insistente.”

Ela percorreu toda uma trajetória longa e nem sempre prazerosa (nenhum caminho profissional é cem por cento prazeroso) para ser atriz. E… quando ela entra em cena, ainda que não seja o papel com o qual ela está mais feliz no mundo, ela se lembra: eu sou uma atriz, eu quis ser uma atriz. Eu quis colocar meu corpo e minhas expressões à disposição para serem olhados. Ao entrar no palco, ela oferece para seus espectadores esse longo desejo que se entrelaça com seu projeto de vida.

Presença

María Onetto fala sobre o quanto estar no palco é um ato de presença concentrada. Não qualquer presença, dirá ela. Infelizmente nos acostumamos muito frequentemente com uma presença dividida, dispersa. Falando sobre tema semelhante, minha xará Esther Perel criou o conceito de “intimidade artificial”. Afirma acontecer quando “as pessoas supostamente estão juntas, em um encontro, mas não estão presentes. Passamos a aceitar a atenção distraída como suficiente, e não é. A intimidade artificial está cheia de conexões interrompidas que se tornaram normalizadas e socialmente aceitáveis.” Perel vai fazer ainda uma análise sobre como as telas e mídias sociais incentivam essa intimidade artificial.

Mas voltemos à presença dos palcos vivida e descrita pela atriz María Onetto. Trata-se de uma presença concentrada. Uma presença sem distrações, focada no tempo e no espaço, o oposto da intimidade artificial. E acrescentará ela: não é uma presença concentrada e ensimesmada, como a necessária para escrever um texto. É a presença de alguém que participa de uma cerimônia ou um ritual coletivo. Que só faz sentido porque há a presença de outras pessoas dedicadas ao mesmo objetivo. Acrescenta, assim, mais um adjetivo: é uma presença concentrada e porosa.

Quando se está em um palco com outros atores, é preciso estar muito atento ao outro, ao que está acontecendo em cena. Não há espaços ou tempos para distração. O mesmo acontece com a plateia: a presença é também uma presença que propõe a troca, que olha para quem está assistindo para saber se estão te acompanhando, se houve alguma perda de atenção, quais são as reações daquela plateia específica e o que se deve fazer para manter aquela relação como uma relação significativa.

Estudo ou inteligência

Antes de entrar no palco há um longo caminho de estudos e ensaios para composição de um personagem, afirma María Onetto. O tempo de estudos sobre um texto, ou a pesquisa sobre o ambiente em que o personagem descrito está inserido fazem parte do que ela oferece para seus espectadores quando entra em cena.

Pensemos, por exemplo, na representação de um biólogo que vai passar uma temporada na Amazônia, tudo isso em um palco de São Paulo. Nem tudo está ou pode estar no papel escrito da peça. (Isso se pensarmos em processos ortodoxos de dramaturgia). A atriz responsável pela representação terá que dedicar tempo e atenção para estudar e compor seu personagem e seu entorno. A pesquisa e os estudos fazem parte da preparação do ator, afirma. Ela indica, mas eu enfatizo: para realizar este estudo, a atriz mobiliza sua inteligência. A inteligência que quer compreender o personagem, que quer compreender o texto. Compreender o texto o mais amplamente possível para poder traduzi-lo para seus espectadores.

Imaginação

Na seção anterior, María Onetto afirma oferecer seus estudos, sua compreensão, sua inteligência para a composição de um personagem, aqui entra, talvez, uma habilidade semelhante, mas ligeiramente diferente. É a imaginação ou criatividade de alguém que são oferecidas para a construção do personagem, para a performance no palco.

Cada estudo para a composição do personagem que irá ser apresentado no palco é feito por uma pessoa. Pessoa que tem um certo repertório artístico, uma certa trajetória de vida, um certo conjunto de referências. E é essa mistura muito específica e peculiar de uma única pessoa o que informa os estudos. Você não estuda no vazio. A leitura de um mesmo texto por diferentes pessoas com diferentes repertórios provoca diferentes reflexões e conexões – quem já assistiu a uma banca de qualificação ou mestrado ou doutorado sabe disso. O texto é o mesmo, as leituras, conexões e críticas que são feitas a partir dele são muito distintas para as diferentes pessoas que o leem.

No teatro, algo semelhante parece ocorrer. Ao estudar, ao ler, ao preparar um personagem é aquela atriz específica, com seu repertório anterior, que vai ler, estudar, preparar. É o conjunto de experiências e leituras, a própria trajetória de vida e experiências pessoais que serão mobilizadas para a tarefa. A esse processo de interação entre pessoa específica, atriz específica, e texto estudado que são oferecidas para os espectadores quando ela entra em cena. Diz María Onetto: eu ofereço à plateia a minha imaginação.

Corpo

Peças, assim como aulas, funcionam muito pior virtualmente. Mas e o cinema, diriam alguns. Cinema é outra arte, com outros recursos. Teatro digno desse nome conta com a presencialidade. Presencialidade de corpos que se encontram em um mesmo espaço. Ao se oferecer para interpretar um personagem, diz María Onetto, ela oferece também seu corpo. E é um corpo que terá que responder aos desafios daquele personagem. Um corpo disponível, saudável, bem-disposto. Treinado, dirá ela. Voz, disposição, energia, intensidade. O corpo preparado para dar materialidade ao que se estudou e imaginou do personagem. É ele, corpo, quem vai dar materialidade ao personagem imaginado.

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Eu poderia continuar este texto falando sobre as percepções e reflexões de María Onetto, seriam muitas palavras mais. Tentarei refletir sobre como elas reverberam no meu ser professora. Primeiro: interessante que toda a palestra organizada por María Onetto se contraponha à ideia de que atuar é algum tipo de fingimento, falsidade ou simulação. Ela parece querer dizer: quando atuo, sou eu mesma que estou atuando. Há verdade em eu, María Onetto, estar interpretando o homem da peça Potestad, por exemplo. Embora seja um texto e o que diz o personagem não seja eu, sou eu a atriz e eu estou lá. Atuar é um ato de verdade do ator, não de mentira.

Ninguém parece colocar a mesma questão para professores. Ninguém duvida de que seja a Ester quem fala quando estou em sala de aula. Muito embora a aula seja também uma performance preparada. Com um roteiro, um início, um meio, um fim, um objetivo didático. Aqui, uma diferença importante entre ser atriz e ser professora: não tenho um texto que representar. O que eu falar serei eu mesma falando (ainda que me socorra da minha bibliografia para me ajudar a preparar o que falar). Também não tenho um(a) diretor(a) com quem discutir minhas propostas para a aula. Às vezes faz falta outro ser humano para discutir minhas estratégias. (Já dividi a sala de aula com outros professores e foi sempre uma troca interessante de olhares.) Aqui as diferenças.

Em vez de reforçá-las, prefiro dizer: quando entro em sala como professora me sinto exatamente como a verdade do ser/estar descrita por Onetto. Oferecendo aos estudantes minha presença concentrada e porosa, meus estudos, minhas inteligência e imaginação, meu corpo e meu desejo realizado de ser professora. Não são tão frequentes os momentos cotidianos em que podemos ser focados e genuínos tão inteiramente. Espero que meus alunos também estejam lá, presentes, disponíveis, concentrados e desejosos. Com seus repertórios de vida a serem mobilizados e compartilhados, se for o caso. E que nesse encontro que é a sala de aula possamos ter uma experiência de alta qualidade, possamos sair como quem sai de um momento de troca significativa com outro(s) ser(es) humano(s): inteiros e modificados.

Desejo também que nessa troca eu consiga fazer um convite para o ser universitário. Para as práticas de reflexão e construção do conhecimento, para a pesquisa, o ensino e a extensão. Práticas cotidianas que, pelo menos nos últimos vinte anos, têm conferido um importante sentido existencial para minha vida.

Bom semestre para nós!

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