Morin e a complexidade no mundo das ideias (parte 2)

Por Ênio Alterman Blay, pesquisador do Centro de Inteligência Artificial no InovaUSP

 Publicado: 17/09/2024 às 19:53

Onde estávamos quando fomos abruptamente interrompidos pelo fim do texto anterior?

A última coluna tinha relatado algumas ideias apresentadas nos três primeiros volumes d’O Método. A obra tem três outros volumes, de 4 a 6, que a concluem: As ideias, A humanidade da humanidade e, por fim, Ética. Dos seis livros, acho que meu favorito é o quarto, As ideias, escrito em 1991 e com versão brasileira de 2011, e que tem como subtítulo: Habitat, vida, costumes, organização. Então resolvi escrever esta coluna especificamente sobre este livro. Dividido em três partes e com pouco mais de 300 páginas, é uma leitura intensa.

A primeira parte trata da gênese de ideias. Morin descreve as condições sociais que acredita serem favoráveis para surgirem novos conceitos, novas formas de expressão. Momentos de transição social, de conflitos, mudanças de regimes e assim por diante. Recheia esta parte de exemplos.

Em seguida ele se volta à sociologia da ciência. E mostra que esta deveria incorporar características da complexidade, como a consciência que todo conhecimento sofre determinações egocêntricas, sociocêntricas, etnocêntricas e civilizatórias; que o novo não é dedutível previamente e que este novo se constitui a partir de pressões sociais, agitações e contradições. Há várias outras considerações. De qualquer modo, acho que esta análise fica muito além do âmbito ao qual me permito tecer considerações. Deixo às leitoras e leitores estudarem o assunto.

Mas alguns pontos podem ser realçados. Em um determinado ponto Morin destaca que “o conhecimento intelectual organiza-se em função de paradigmas que selecionam, hierarquizam, rejeitam as ideias e as informações bem como em função de significações mitológicas e projeções imaginárias. Assim se opera a ‘construção social da realidade’ […]” (p. 25-26). Embora não mencionado de forma explícita, nesse pequeno trecho, ele consegue sintetizar tanto a importância das ideias de Kuhn em A Estrutura das Revoluções Científicas, na qual o conceito de paradigma científico é forjado (que depois suscitou muitas discussões), como A Construção Social da Realidade, de Berger e Luckmann (o qual ele não menciona). Mas acredito que ambas as obras sejam leituras imprescindíveis para quem se dedica à ciência.

Como que antevendo os dias de hoje, conclui a primeira parte dizendo: “[…] estamos em um período de novos começos e, talvez, igualmente para o totalitarismo. […] Não temos nenhuma certeza de escapar ao Grande Computador de novo tipo, dispondo de cerebralidade artificial, tecnocientificamente todo-poderoso e do poder do Estado neototalitário”.

Na segunda parte do livro, Morin inicia descrevendo o que Popper falou sobre os diversos planos do universo humano, que são três: o mundo das coisas materiais, o mundo das experiências vividas e o mundo das coisas do espírito, produtos culturais, linguagem e conhecimento objetivo. Este último plano seria a Noosfera, um conceito de Teilhard de Chardin dos anos 1920. Não sem razão o termo lembra atmosfera: a Noosfera é onde “vivem” as ideias, adquirindo sua autonomia.

Embora pessoas com formação em Humanidades não fiquem tão estupefatas quanto eu, a proposição de que as ideias habitam esse outro plano me pareceu muito original.

Na minha opinião, quem explica isso de forma muito atual e didática é Yuval Harari nos seus livros e falas. O termo que Harari usa é “ficções”, que é a forma pela qual o Homo sapiens encontrou, através de narrativas, de fazer com que haja colaboração de milhares e até milhões de seres semelhantes para um “propósito” comum, seja para executar um grande projeto, manter uma empresa ou defender um país. Todas as três, projeto, empresa ou país, são ideias e não objetos físicos e materiais.

A criatividade que vejo em Morin é descrever como as ideias vivem em seu próprio mundo, o noológico. Lá, elas disputam espaço e poder, igualmente ao que ocorre no plano dos humanos. Seja na disputa dos modelos econômicos (como capitalismo ou socialismo) ou na esfera religiosa (onde cada deus luta pelos seus fiéis), é como se cada ideia tivesse vida própria e, para prosperar, precisa de nós, humanos, defendendo e cultivando-as. Conforme os discípulos ou seguidores destas ideias minguam, elas desaparecem na “espuma do tempo”, como Rá, o flogisto, ou se alimentam de luz.

Foi em uma vivência direta que a noção do plano das ideias e espíritos tornou-se real. Morin vem ao Brasil, regularmente, há muitos anos. Ele não diz quando, mas, em uma dessas visitas, conta que em Fortaleza participou de um culto que “depois da primeira parte, bastante parecido com um culto católico ‘normal’ [aspas no original], começou a invocação do Exu”. Então um espírito se apossou de um participante e outros espíritos chegaram. Em seguida escreve: “compreendi, então, o que já sabia depois de muito, mas de modo apenas abstrato: compreendi que os orixás, como os espíritos e os deuses, tinham uma existência real, um poder sobre-humano de encarnarem-se em nós com a plenitude de seu ser […]”.

A terceira parte do livro é dedicada à noologia, ou seja, a organização do mundo das ideias.

Nessa parte há uma discussão sobre lógica e suas várias vertentes. Morin tende a enfatizar a lógica aristotélica, na qual o terceiro excluído é o argumento que se usa para justificar que A não pode ser igual a B e diferente de B ao mesmo tempo. Mas é justamente na lógica que residem algumas críticas a Morin, feitas, por exemplo, por Maldonado e Gomez-Cruz (El mundo de las ciencias de la complejidad, de 2011) pois há outras lógicas que escapam ao modelo convencional aristotélico como, por exemplo, a Lógica Paraconsistente do importante cientista brasileiro recém-falecido, Newton da Costa.

Mais para frente, ao discutir a contradição, mostra que esta opõe pensamento e realidade. Afirma que uma dada contradição não necessariamente acontece no mundo. Ela surge, na verdade, quando o próprio mundo resiste à nossa lógica.

Um outro conceito que Morin abraça, desenvolvido por Magoroh Maruyama, são as mindscapes. Estas são como as paisagens (landscapes) da mente. Vemos o mundo através dessa nossa própria lente.

O livro finda em uma discussão consigo mesmo. Nela Morin afirma que a ciência ocidental ainda carece de uma integração de pontos de vista como sujeito e objeto, alma e corpo, espírito e matéria e assim por diante.

Conclui com propostas para civilizar a “ideia”. As ciências não conseguem ser reflexivas de si mesmas, não articulam os juízos de valor e repelem problemas filosóficos fundamentais. São estas as questões que precisariam ser incorporadas à complexidade da ciência: autoconhecer-se, lutar contra sua doutrinização (sic), conviver com outras formas de conhecimento, abrir-se ao ateórico e ao irracionalizável.

Não são desafios de pouca monta e, mesmo sendo propostas um tanto utópicas e talvez irrealizáveis, acabam indo morar na Noosfera, de onde nos espreitam. Quem sabe mais discípulos venham a segui-las.

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