Edgar Morin e o que chamamos de “pensamento complexo” (parte 1)

Por Ênio Alterman Blay, pesquisador do Centro de Inteligência Artificial no InovaUSP

 19/07/2024 - Publicado há 5 meses     Atualizado: 22/07/2024 às 14:43

É difícil definir um momento específico no qual Morin passou a estruturar aquilo que hoje é chamado de “pensamento complexo”, entendendo sua complexidade como uma linha epistemológica. Considerando as dezenas de livros que escreveu, a partir de seu primeiro, L’An Zero de Allemagne, em 1946, parece-nos evidente que esta construção se deu passo a passo desde então.

Em uma publicação recente, Meus filósofos, ele conta como foi convidado para uma estadia de um ano (1968/1969) no Instituto Salk de pesquisas biológicas (fundado pelo criador da vacina contra a poliomielite), nos EUA. E que, na esteira da euforia de maio de 1968, ele começa a mergulhar nas teorias de sistemas, da cibernética e da informação. No artigo passado escrevi sobre as duas primeiras. A última, formulada originalmente por Claude Shannon em 1948, é a pedra fundamental sobre a qual se assentam todas as formas de comunicação contemporâneas.

Morin também fica fascinado com as ideias de Heinz von Foerster e Henri Atlan, que defendem ideias de “organização a partir do ruído” e do “acaso organizador”, respectivamente. O primeiro foi um dos idealizadores da cibernética de segunda ordem, que enfatiza o papel do observador. Atlan é um médico, biofísico e filósofo francês com trabalhos nas áreas da auto-organização e teoria da informação. Também destaca Leon Brillouin na discussão sobre neguentropia, muito cara a Morin por justificar o surgimento da ordem.

Estes pontos merecem um detalhamento. A teoria da informação se preocupa em eliminar o ruído e a redundância para otimizar e reduzir o uso do canal de comunicação. Mas, a criação, a novidade, a invenção vêm, de fato, de valores novos e não esperados; são eles que têm a força gerativa. E esse conteúdo inesperado é o resultado do ruído, o elemento aleatório. A redundância, então, se faz necessária para evitar que qualquer ruído seja propagado, evitando, por exemplo, que uma alteração genética qualquer se transforme em uma mutação.

Quem leu com atenção o início do texto pode ter se perguntado: o que estaria Morin fazendo na Alemanha, em 1946? Voltemos um pouco na história.

O enredo é mais ou menos este: Edgar Morin nasce Edgar Nahoum, em Paris, de uma família judia, em 1921. Tinha acabado de começar a universidade quando a França foi ocupada, em 1940, pelos nazistas. Para enfrentá-los, junta-se à resistência francesa e recebe o codinome Morin, que irá transformá-lo e acompanhá-lo desde então. Participa de várias ações de combate e sabotagem. Por fim, é incorporado ao exército francês na ocupação da Alemanha derrotada. Por isso o encontramos na Alemanha em 1946, onde interpreta sociologicamente o que vê diante de si.

Voltamos ao final dos anos 1960. Tendo estudado as teorias de sistemas, de informação e cibernética na sua estadia nos EUA, Morin se volta a suas próprias criações. Em 1973 escreve Paradigma perdido. Nesta obra, ele já indica uma séria de ideias que viria a consolidar posteriormente. Depois publica A unidade do homem (1974), com Massimo Palmarini. Sua grande obra, O Método, tem o primeiro volume publicado em 1977. Não há pistas para se saber o quanto dela estava antevisto, já que a série, em seis tomos, só iria se completar em 2004, com o volume Ética.

Conceitos como sistemas, organização, realimentação, informação, entre outros, se interligam e influenciam mutuamente, vindo a formar o dito “pensamento complexo”. Vale dizer que este nome é dado posteriormente à abordagem de Morin, já que surgem diversas teorias concorrentes sobre complexidade (complexidade econômica com Brian Arthur, auto-organização e caos – Ilya Prigogine, fractais – Benoit Mandelbrot e muitas outras).

Claro que não se pode afirmar que cada conceito proposto e apresentado é uma criação moraniana, já que muitas obras sobre ideias que formam seu pensamento foram lançadas antes d’O Método e evoluíram em diferentes direções desde que foram incorporadas e (re)apresentadas por Morin.

Tentemos descrever brevemente algumas propostas conceituais de cada um dos três primeiros volumes, cujo conteúdo soma mais de mil páginas, a título de aguçar o interesse de quem lê este texto.

A natureza da Natureza

No primeiro volume, cujo subtítulo é o acima, destaco duas ideias, entre tantas outras, que Morin trata. A primeira refere-se aos conceitos de ordem, desordem, organização e interação. Ele chama isso de relação tetralógica. A segunda é a associação entre organização, sistema e interação: a relação trinitária.

É interessante como ele evidencia a dependência dos conceitos de ordem e desordem para que haja existência. De forma geral, as teorias se focam em um ou outro estado e não na necessária interdependência de ambos. Morin chama a atenção que não só um é o oposto do outro mas que, na realidade na qual estamos inseridos, ambos são imprescindíveis para que qualquer processo, organização, sistema ocorra.

Genericamente: tudo precisa se ordenar e se desordenar. Ou o inverso, o todo está desordenado para a ordem surgir. Se não fossem esses contrários, teríamos uma situação estática e imutável.

Já na relação entre organização, sistema e a interação entre ambos, temos a organização com o encadeamento de relações entre componentes ou indivíduos. Essas relações estabelecidas formam o sistema, cujo caráter é “fenomenal e global”. Ele afirma que enquanto “os sistemas ressaltam a unidade complexa do todo interrelacionado, a organização remete à combinação das partes em um todo”. Podemos dizer que é uma questão de ênfase no todo ou nas partes. Mas ambos os conceitos se interrelacionam e influenciam fortemente.

A vida da vida

No segundo volume, Morin esmiuça as questões da vida, dos seres, da existência, mostrando toda a sua complexidade.

Destaco uma ideia (que é bem mais do que uma) na qual ele cunha o termo composto auto-geno-feno-eco-re-organização. Aqui vemos Morin criando neologismos para dar conta da abrangência do que quer mostrar. Cada prefixo cumpre um papel, da ideia central que é a organização e que podem ser utilizados na ordem que se queira dar ênfase. Assim:

• “re” – a organização viva, em primeiro lugar, se reorganiza permanentemente, como apresentado por Maturana e Varela no conceito de autopoesis;
• “eco” – não só isso; a organização viva está inserida no meio no qual vive, do qual vive e que dela depende;
• “geno” – ainda há os aspectos do genótipo, ou seja, nossa hereditariedade inerente, bem como nossas manifestações;
• “feno” – isto é, dependem de fatores externos, o fenótipo;
• “auto” – e, complementando isso, a auto-organização, ou seja, a entidade viva que se faz de forma autônoma e deliberada, não precisando ser guiada para se manter funcionando.

Essa totalidade que Morin pretende mostrar nos faz, no mínimo, questionar em qualquer abordagem se estamos levando todos esses aspectos em conta. É sempre através dessa ênfase da abrangência que ele se esforça para que não sejamos simplificadores e reducionistas.

O conhecimento do conhecimento

Aqui Morin questiona o edifício científico. De cunho mais filosófico que os dois volumes anteriores, este se preocupa em mostrar como conhecemos as questões ligadas ao cérebro e ao espírito e os limites do conhecer, evocando Gödel (teorema da incompletude) e Tarski (teorema da indefinibilidade).

Enfatiza que o conhecimento seria impossível em um mundo puramente determinista ou completamente aleatório. Diz que: “só podemos conhecer um mundo fenomenal situado no espaço e no tempo, comportando unidade, pluralidade, homogeneidade, diversidade, invariância e mudança. Trata-se de nosso mundo uno/diverso dos fenômenos físicos/biológicos/antropológicos submetidos à dialógica da ordem/desordem/organização”.

Talvez esse conjunto de ideias possa continuar a abrir caminhos para uma nova forma de fazer ciência. Morin já enfatizava, nos anos 70, a necessidade de se considerar o observador, não apenas o objeto. Afinal não existe um observador neutro e imparcial. Somos parte do experimento e passíveis de análise.

No próximo capítulo falaremos dos volumes 4 a 6.

Espero que fiquem tão ansiosos para ler quanto eu estou para escrever.

_______________
(As opiniões expressas pelos articulistas do Jornal da USP são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do veículo nem posições institucionais da Universidade de São Paulo. Acesse aqui nossos parâmetros editoriais para artigos de opinião.)


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.