Um pé na academia e outro na realidade dos pequenos e médios municípios brasileiros

Por Elaine Santos, pesquisadora do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP

 15/12/2022 - Publicado há 1 ano

No texto do articulista Ary Plonski publicado em agosto, o professor retoma apropriadamente as indagações feitas por Florestan sobre o papel do Instituto de Estudos Avançados (IEA), avançados em quê? Para que serve um Instituto de Estudos Avançados?

Questões importantes, principalmente porque, ao longo de sua história, o IEA possibilitou o contato direto com personalidades brasileiras e estrangeiras da ciência e da cultura que permitiram a elaboração de propostas para as áreas essenciais do desenvolvimento científico, social, cultural e econômico do País.

Do seu nascimento, das dificuldades, discussões e tentativas em mudar qualquer coisa na Universidade em um período de pós-ditadura, de José Saramago a Kabenguele Munanga, passaram pelo IEA inúmeros intelectuais que representaram a centralidade e a interdisciplinaridade de um pensamento verdadeiramente comprometido.

A persistência em buscar respostas para este pensamento estratégico que indiquem para onde avançar ou no que avançamos enquanto instituto, me obrigaram a refletir sobre o papel que ocupo há pouco tempo neste espaço e como poderia apoiar nesta construção pavimentando também um caminho próprio, naquilo que entendo como um programa de pesquisa. Então recordei-me novamente do professor Florestan ao mencionar em um dos seus textos o papel do intelectual. O texto afirmava existir uma crise da intelectualidade, crise que revelava uma dificuldade em saber por onde passa a intervenção do intelectual e o modo como estes/estas poderiam enfrentar a realidade. No meu entender, a crise da intelectualidade é a crise da sociedade; corajoso, Florestan propunha uma responsabilidade interventiva do intelectual agindo sobre as condições políticas no sentido de construção de outra sociedade.

Foi nesta “consubstancialidade” de pensamentos e direções que fui definindo o meu programa de pesquisa dentro do IEA e, confesso, tive que voltar a mim, à minha história, para conseguir me perceber neste espaço. Foi a consciência histórica do meu pertencimento social e intelectual, da minha origem, da racialização, meu gênero e até de alguma dificuldade de adequação diante as sumidades do intelecto que, muitas vezes, me veem como alguém “de fora”, mas também “de dentro” de um pequeno mundo periférico paulistano onde a maioria deles/as só conhecem por leituras e pesquisas de campo, que me ajudaram a fazer este caminho, caminhando. E tal como no conto de Lima Barreto, nunca pretendi falar javanês, o que também me faz rejeitar o academicismo anti-intelectual, ou aquele que não está vinculado às alterações da sociedade, àquela produção ou o produtivismo acadêmico alheado da realidade. Igualmente ao professor Munanga, estou sempre com um pé na academia e outro na realidade social, como uma valsa, um pé na frente, na academia e o outro ao lado, com as bases sociais que definem este enraizamento que acabei de descrever.

De fato, precisamos entender de onde viemos para saber para onde vamos, inclusive para defendermos dentro e fora da Universidade as posições já assumidas e que precisam ser mantidas. Como afirmou Saramago, se a universidade viveu em todos os sistemas políticos que passaram pelo mundo e precisa ter em conta as demandas da sociedade, o que a sociedade pede à universidade além de médicos e engenheiros? E respondeu: a universidade não tem a intenção de salvar ninguém, mas precisa assumir a sua responsabilidade na formação dos indivíduos.

E se cabe à universidade o papel da construção “de uma visão abrangente e dinâmica do que é o mundo, do que é o país, do que é o lugar, o papel de denúncia, isto é, de proclamação clara do que é o mundo”, como fazer isto em um mundo confuso e muitas vezes reduzidos à leitura e reprodução de relatórios e meia dúzia de chavões, como bem afirmou Milton Santos, que também esteve no IEA: “Nosso trabalho não é produzir flashes, frases, mas ajudar a produzir consciência”. É esta consciência que venho tentando aprimorar em conjunto e a partir do IEA, porque a crise que vivemos exige intelectuais públicos que ofereçam, mais que grandes respostas, uma mudança de postura, principalmente uma postura crítica atravessada também pela prática técnica.

É deste ideário individual/coletivo partilhado com minha amiga e supervisora Maria da Penha Vasconcellos e com alguns colegas que aproveito para vos apresentar o grupo de trabalho que elaborou as Notas técnicas para pequenos e médios municípios brasileiros: o caso Vargem. Este trabalho, entendido pelo grupo como um trabalho de extensão, passou por diversas etapas e dificuldades, mas podemos dizer que, ao final, conseguimos dar sentido a uma construção coletiva colocando o nosso trabalho a serviço dos interesses da população. Durante o processo e para alcançarmos a responsabilidade interventiva de Florestan, passamos a ver esta produção não como um problema a ser resolvido ou atendido, mas como uma aprendizagem conectada aos problemas realmente existentes.

Para fortalecer a relação universidade-sociedade/pesquisa-necessidades sociais, pensamos em uma abordagem que relacionasse diversas dimensões integradas, assegurando as premissas do desenvolvimento municipal, suscitando múltiplas formas de análise, a partir de especificidades da cidade de Vargem, associadas à sua estrutura produtiva, à organização territorial, ao bioma e ao seu privilégio em ser uma Área de Preservação Ambiental (APA). Fica aqui o convite à reflexão e à leitura.


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