Reflexões sobre o colonialismo energético

Por Elaine Santos, pesquisadora do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP

 20/03/2023 - Publicado há 1 ano

Quando falamos em avanços econômicos, é comum observar uma forte tendência em análises teóricas que buscam apresentar resultados mensuráveis somente através de gráficos, tabelas e números. No entanto, essa abordagem muitas vezes desconsidera o debate teórico e as análises sociais, resultando em reducionismo econômico. Essa é a realidade do setor energético, onde há um aumento significativo na quantidade de informações numericamente expressas, mas as discussões em torno do assunto se concentram quase que exclusivamente em questões ilustrativas, como o abastecimento energético, exploração de novas reservas e matérias-primas, substituição de outras fontes energéticas, e mesmo as determinações de aumento dos preços dos combustíveis. Quando explicados somente por economistas, esses fatores parecem nos tirar da realidade material, colocando-nos em uma realidade numérica intangível onde pouco temos a fazer para alterar essa situação.

Além disso, é importante notar que a maioria dos relatórios e estudos que formam os modelos globais de energia seguem esse mesmo padrão e são elaborados por institutos de países desenvolvidos, com ênfase nas questões relevantes para esses países industrializados. Essa realidade se deve ao fato de que esses países investem fortemente na produção de conhecimento para a área energética, considerada estratégica, e, historicamente, têm dominado o uso mundial de energia. Tais modelos são utilizados para explorar e entender possíveis mudanças futuras no sistema global de energia, mas, como são desenvolvidos em países industrializados, eles se concentram principalmente em questões importantes para esses sistemas de energia industrializados.

Essa perspectiva tem implicações para países subdesenvolvidos e para o conhecimento produzido nesses lugares, os quais muitas vezes assumem implicitamente que seu futuro pode ser derivado das experiências dos países desenvolvidos. A maioria desses modelos globais de energia utiliza a atividade econômica (PIB/per capita, que representa padrões de vida) como força motriz para questões relacionadas à energia e ao desenvolvimento. O que, por sua vez, ignora outras questões importantes, como as implicações sociais e ambientais do uso de energia em diferentes contextos e a necessidade de encontrar soluções que levem em consideração múltiplos fatores. E, principalmente, o pano de fundo que explica a nossa realidade: que a história do subdesenvolvimento latino-americano, tal como afirmou Marini, está intrinsecamente relacionada à história do sistema capitalista mundial, em uma relação de dependência, mas não de determinação ou de extensão. Os países da periferia tendem a transferir parte do fruto de sua própria produtividade para os centros que retêm integralmente o progresso técnico de sua indústria, apesar dos recursos naturais e energéticos estarem disponíveis principalmente nos países subdesenvolvidos, algo discutido também por Prebisch. Essa dinâmica contribui para a manutenção do fosso social existente entre países centrais e periféricos.

Superar esta condição histórica não é uma tarefa simples que possa ser alcançada somente por meio da transição de fontes de energia, copiando modelos internacionais ou ainda delegando a solução aos especialistas do sistema técnico e novas tecnologias. Até porque a tecnologia não surge no vazio e toda tecnologia comporta inevitavelmente um sentido ideológico, como discutiu Álvaro Vieira Pinto. E esta visão da técnica e da tecnologia como solução e possibilidade de futuro é o que ele chama de tecnocentrismo, onde a técnica é vista como criadora do ser humano, e não como um produto dele.

Contudo, no império da subordinação, o discurso comum entre muitos acadêmicos e decisores políticos baseia-se na premissa de reproduzir modelos considerados bem-sucedidos, sem levar em consideração as complexas relações históricas, geopolíticas e de dependência econômica existentes. Ao não ler a realidade brasileira/latino-americana e recusar a própria história, poucos conseguem perceber o nosso potencial, bem como o potencial dos trópicos, conforme alertado por Vidal e Vasconcellos. Portanto, olhar somente para fora e importar conceitos e modelos pode ser insuficiente para nos dar uma resposta.

Lembro-me de ter lido um texto que atualizava as análises “caiopradianas”, abordando um novo colonialismo energético brasileiro que expressa valores típicos do velho mundo colonial, mas que foram modificados pela introdução de tecnologias, ao mesmo tempo em que mantêm certos valores do passado. Este é um bom caminho para entender como chegamos até aqui por meio das sobrevivências e convivências possíveis.

Assim sendo, tratar conceitualmente do colonialismo energético não se restringe apenas à prática das multinacionais em países subdesenvolvidos, mas demanda uma reflexão teórica da tradição latino-americana, discutida historicamente por cepalinos, dependentistas e seus críticos, em relação à questão do desenvolvimento e da acumulação.

Portanto, trata-se de colocar em perspectiva teórica as análises numéricas que por vezes nos escapam. Normalmente, essa reflexão não é feita, o que limita este conceito ao “denuncismo”. Além disso, fala-se também em colonialismo verde, eco colonialismo, colonialismo climático e outras piruetas teóricas, para conceituar a premissa mais básica de que tanto a crise ecológica, como a crise ambiental são crises sistêmicas. Logo, elas não se resumem apenas a modelos energéticos e a transições energéticas em seu sentido abstrato, mas estão ligadas às questões de classe e imperialismo. Ou seja, estão relacionadas a quem controla os sistemas de produção. Portanto, trata-se de poder, desenvolvimento e subdesenvolvimento.

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