Toda vez que leio sobre os planos energéticos brasileiros, lembro-me sempre dos grandes nomes desta área no País e fico com a sensação de que nos apequenamos ao longo das últimas décadas. Levo muito a sério a premissa de que precisamos nos apoiar “nos ombros dos nossos gigantes” e fico sempre à espera de um grande projeto de autonomia energética que, muitas vezes, é incompatível com os interesses hegemônicos internos e externos.
Foi com esse sentimento que acompanhei a recente aprovação da Política Nacional de Transição Energética pelo Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) no final de agosto. Como destacou o presidente Lula, “nós não vamos jogar fora o significado dessa coisa chamada transição energética. Esse País já jogou fora muitas oportunidades. A gente não pode jogar oportunidades fora. Precisamos ter em conta que nós temos tudo. Temos tudo o que a natureza nos ofereceu. Temos mão de obra qualificada — ainda precisa de mais. Nós temos gente capacitada tecnicamente. No setor energético, a gente tem centenas de excelências nesse País. A gente pode fazer o que quiser”. Ele está certo ao enfatizar a importância da transição energética e a posição estratégica do Brasil, especialmente considerando que a geopolítica atual é moldada pelo acesso e pelo protecionismo dos recursos necessários para essa transição.
Inspirado por iniciativas como o European Green Deal e o Green New Deal dos EUA, que buscam recuperar a economia com os imperativos de uma reindustrialização verde, o ministro de Minas e Energia destacou o “renascimento da indústria brasileira em bases sustentáveis” com investimentos em energia eólica, solar, hídrica, biomassa, biodiesel, etanol, diesel verde, captura e estocagem de carbono, combustível sustentável de aviação, hidrogênio verde. A Política Nacional de Transição Energética será implementada através de dois instrumentos principais. O primeiro é o Fórum Nacional de Transição Energética (Fonte), que permitirá a participação ativa da sociedade, reunindo diversos atores públicos e privados em uma construção coletiva permanente. O segundo é o Plano Nacional de Transição Energética (Plante), que será integrado a programas importantes como o Novo PAC, o Plano Clima, a Nova Indústria Brasil e o Pacto pela Transformação Ecológica.
Em meio a tantos planos que ainda carecem de concretização, a baixa dependência de combustíveis fósseis na matriz energética brasileira coloca o País em posição de destaque, especialmente entre os Brics. Enquanto a China, maior emissor de gases de efeito estufa do mundo, se comprometeu fortemente com a redução de emissões, sendo responsável por quase 60% do aumento da capacidade global de produção de energias renováveis em 2023, o Brasil pode se beneficiar de seu histórico e da sua considerável base nas energias renováveis. Relatórios indicam que a China pode alcançar suas metas de energias renováveis para 2030 antes do previsto, impulsionada pelo rápido crescimento das energias solar e eólica.
No entanto, a transição energética, que é também tecnológica, exigirá investimentos vultosos, tanto públicos quanto privados, para expandir a capacidade instalada de fontes renováveis, como já acontece na China, na Europa com os fundos europeus de incentivo, e nos EUA, com a Lei de Redução de Inflação (IRA). Diferentemente do Brasil, a China experimentou uma rápida expansão em termos de industrialização e modernização tecnológica, posicionando-se como um dos maiores parceiros comerciais globais e como a segunda maior economia do mundo, inclusive triplicando investimentos em energia renovável (eólica e solar) na América Latina. Esse domínio tem motivado mudanças políticas e tarifárias, como a recente decisão do Canadá de impor uma taxa de 100% sobre carros elétricos fabricados na China, além de tarifas de 17% a 34 % pela União Europeia.
No âmbito social, o Fórum Nacional de Transição Energética (Fonte) talvez seja a maior novidade do plano apresentado pelo governo, ao propor um diálogo contínuo entre seus membros e a sociedade, promovendo discussões sobre a transição energética. Como pesquisadora do tema, considero essa iniciativa importante, entendendo que não basta afirmar que a transição energética precisa ser justa em uma sociedade que, por si só, não é justa. Abrir o debate ao público nos permitirá compreender as prioridades de investimento em produção e distribuição de energia, além de discutir a partilha de benefícios e os impactos das energias eólica e solar, que muitas vezes são vistas de forma “prometeica”, mas sem considerar os impactos subjacentes e que nem sempre a lei consegue contemplar.
Sabendo que a transição energética ampliará a mineração e seus impactos, a participação da sociedade, bem como a partilha de benefícios às comunidades diretamente impactadas por essa mudança de escala, tem sido motivo de debate em várias partes do mundo. Em Portugal, por exemplo, um estudo sobre uma mina de lítio no norte do país propôs a criação de um Fundo de Desenvolvimento Comunitário, financiado pela empresa promotora da mina e gerido por uma fundação sem fins lucrativos. Essa fundação seria administrada por uma maioria de representantes dos governos locais e da comunidade, incluindo associações locais e ONGs, com a possibilidade de participação do governo central, da empresa exploradora e de um perito independente procedente da academia. Além do financiamento da Fundação, o mesmo estudo menciona que está previsto que os 3% de royalties se distribuam da seguinte forma: entre 0,75% e 1% para o município onde se localiza a exploração, e o restante, até completar 3%, para o governo central.
Esse modelo de partilha pode servir de inspiração para o Brasil, especialmente no contexto do Projeto de Lei 4367/2023, que propõe a criação do Fundo Social do Lítio. Embora essa proposta não preveja uma partilha direta de benefícios, o aumento da receita fiscal para as administrações locais é significativo. A proposta visa alterar a legislação referente à Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM), elevando a alíquota sobre a exploração do lítio e estabelecendo uma contribuição adicional destinada ao novo fundo, com o objetivo de aumentar a receita destinada ao desenvolvimento das regiões impactadas pela mineração.
Apesar de parecerem um avanço na política de partilha de benefícios para as comunidades locais, muitas vezes apontadas como zonas de sacrifício, serão estes mecanismos suficientes para trazer o tal desenvolvimento que os planos e mais planos tanto apregoam? Parafraseando a indagação de Drummond de Andrade: “E agora, José? A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou, e agora, José?” E pergunto eu: após mais uma transição energética, que desenvolvimento ficará ou virá para os “Josés” do Brasil?
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