Há uma perversão na política de inclusão quando ela se torna excludente. Uso a palavra perversão em seu sentido etimológico, a partir do latim perversus, que diz daquilo que se afastou do que é certo e tornou-se o seu contrário, malicioso, rancoroso e corrompido. Entendo que cuidar da inclusão supõe ampliar o reconhecimento e fomentar a participação das pessoas, com suas diversidades, em todos os espaços socialmente valorizados. Pressupõe a identificação e a descontinuidade das lógicas de exclusão.
Embora alguns estudos venham reiterando que no Brasil o preconceito é de aparência e não de origem, outros indicam que no País, efetivamente, as pessoas não costumam assumir seus preconceitos. Estudos que consideram pardos como exclusivamente afro-brasileiros, ignorando o apagamento histórico das identidades indígenas na formação das categorias étnico-raciais, estão equivocados. O manejo de informações para a produção de discursos científicos sem o devido cuidado pode orientar desastrosamente políticas públicas, a princípio, bem-intencionadas.
Diante disso, considero importante atentar-nos para o que significam dados sobre a situação étnico-racial para além da consciência individual do preconceito. Escutas atentas ao sofrimento das pessoas apontam a incidência de burnout, hipervigilância e ansiedade intensas em quem passa por situações traumáticas, presentes também em quem precisa se esforçar para esconder aspectos da aparência que são socialmente depreciados ou que possam indicar vínculos com uma origem étnico-racial desfavorável. Práticas culturais afro-brasileiras e indígenas, como a capoeira, terreiros, sotaques, cantos, danças e outras manifestações da espiritualidade foram e continuam sendo fortemente perseguidas com muitos episódios de violência explícita a cada ano. Embora poder se esconder, em alguns casos, possa parecer uma vantagem, ter que se esconder é, quase sempre, traumático.
Segundo o Censo, as taxas de homicídio no Brasil são maiores entre pessoas pardas e a proporção de pessoas abaixo da linha de pobreza também é maior entre pessoas pardas (parte delas são pessoas de origem afrodescendente, mas não só, pois pardo é também apagamento da memória de ser indígena). Entre as mulheres, também são as mulheres pardas que sofrem com a maior taxa de homicídio.
Outros dados populacionais, por exemplo, sobre educação, podem ajudar a refletir que, embora as condições de acesso e permanência entre pretos, pardos e indígenas sejam muito piores que as de pessoas situadas nas outras categorias étnico-raciais, elas não são homogêneas entre os PPIs e nas diferentes regiões do País. Quase sempre as diferenças entre pretos e pardos são mínimas, mas não é somente uma questão relativa à cor da pele. Junto com ela, outras leituras das questões étnico-raciais no Brasil precisam ser consideradas.
Incluir supõe considerar amplos aspectos determinantes do fenômeno visado, em vez da redução de sua complexidade. No caso das identidades étnico-raciais, supõe avaliar o impacto histórico de como as categorias foram inventadas, com quais finalidades e seus pressupostos. Mas, então, como lidar com potenciais fraudes quando começa a haver, timidamente, a aplicação de ações afirmativas de inclusão étnico-racial? Como ser cuidadoso quando há necessidade de lidar com situações que envolvem grande número de pessoas, como, por exemplo, processos seletivos com milhares de candidatos?
Na grande maioria dos casos, a materialidade das evidências é facilmente detectável, por exemplo, na aparência, e não exige maiores investimentos. Ou seja, os estudos da aparência são importantes e se aplicam num primeiro filtro, superficial, mas efetivo e praticamente necessário. Na menor parte dos casos, que pode, eventualmente, levantar alguma suspeita, outros movimentos de inclusão são demandados. Por exemplo, a inclusão da história pessoal, que traz elementos importantes da existência coletiva das pessoas, dado que as identidades são construções sociais relacionais e não substâncias naturais independentes das relações.
Quando o foco de uma política de inclusão recai sobre a criação de critérios para excluir pessoas de uma categoria autodeclarada, corre-se o risco de produzir divisões e conflitos desnecessários, colocando pessoas umas contra as outras, em vez de contribuir para o papel formativo da consciência histórica do pertencimento. A consciência histórica, em psicologia, diz do processo social de formação da subjetividade pessoal em relação ao coletivo. Ou seja, em relação ao campo de pertencimento social das pessoas, seus significados são expressos na memória representada das experiências vividas.
As políticas públicas que visam incluir, sem corromper, precisam reconhecer a história das relações coletivas e pessoais nas situações em foco, em vez de negar categoricamente o que vem do outro a partir dos olhos de quem vê de fora. É relevante olhar com atenção para como se deu a construção do posicionamento étnico-racial que a pessoa faz de si para se autodeclarar. Realizar a inclusão de dados relevantes significa não tratar, de antemão, o outro como potencial fraudador, mas considerá-lo como alguém que tem algo a dizer sobre uma realidade que demanda maior aprofundamento. A preocupação em incluir é que deve guiar o procedimento. Ainda assim, a exclusão pode acontecer nos casos em que, mesmo efetivadas as tentativas de diálogo, contempladas as materialidades e a consciência histórica, ainda assim não for possível instaurar um processo formativo em que as partes envolvidas se sintam satisfeitas.
_______________
(As opiniões expressas pelos articulistas do Jornal da USP são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do veículo nem posições institucionais da Universidade de São Paulo. Acesse aqui nossos parâmetros editoriais para artigos de opinião.)