O sequestro do Rio de Janeiro

Por Daniel Afonso da Silva, pesquisador do Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais da USP

 11/10/2024 - Publicado há 2 meses     Atualizado: 14/10/2024 às 12:36

Irlanda, novembro/dezembro de 1710. René Duguay-Trouin, oficial da marinha real francesa, preparava a sua esquadra para emboscar um cargueiro inglês vindo da Índia quando começaram a chegar as notícias do fracasso da expedição de Jean-François Duclerc no Rio de Janeiro. O comandante Duclerc, nascido em Guadalupe e também oficial da marinha da França, na liderança de pouco mais de oitocentos homens, cercara a Baía da Guanabara no dia 17 de agosto anterior com clara intenção de afanar riquezas em ouro e víveres que aquele porto escoava aos montes para o mundo inteiro. Entretanto, por subestimar a força de combate das milícias locais, acabou facilmente interceptado, aprisionado e ampla e duramente humilhado. Seus homens mais ordinários foram encerrados na Casa da Moeda e pelos conventos e mosteiros da cidade. Os mais graduados e sofisticados e, por isso, considerados perigosos, foram enviados para a Bahia e Pernambuco.

Duclerc ficou dias no colégio dos jesuítas e dias no Forte de São Sebastião. Até que, por novembro/dezembro, foi enviado para uma casa-prisão nas proximidades do centro da vila do Rio de Janeiro, quando os colonos luso-brasileiros ainda promoviam festas para comemorar a vitória sobre o vilão e sobre, simbolicamente, a França.

Não era a primeira vez que bandeiras francesas acessavam terras e mares ibéricos nas Américas. Milhares de milhas dali, Duguay-Trouin, legítimo terror dos navios, recebeu essas más-novas e as transformou em justificativa para atravessar o Atlântico para, enfim, ver de perto a pujança da cidade-mundo que era o Rio de Janeiro; que havia mais de dez anos alimentava de ouro a capital de sua metrópole, Lisboa, e as capitais dos inimigos do rei de França, Londres e Amsterdã.

Sem nenhuma hesitação, esse já afamado corsário francês retornou da Irlanda à França e à sua Saint-Malo para organizar a empresa. A essa altura, o sentimento de honra ferida cobria todo o reino do rei Luís XIV. Corria a boca pequena o tratamento nada cortês que os prisioneiros franceses vinham recebendo dos lusitanos e brasílicos nas terras do Brasil. As notícias eram horríveis. Algumas até informavam que havia prisioneiros franceses morrendo de sede e fome. Tudo demasiado cruel e humilhante. De maneira que não foi custoso a Duguay-Trouin conseguir rapidamente fiadores para seu empreendimento.

Sob o pressuposto de fazer honrar o nome da França, seis empresários de Saint-Malo, assim, prontificaram-se em financiar a expedição. Três desses avalistas foram designados diretores de armamento. Com a intercessão do rei, milhares de voluntários foram recrutados por toda a França e muitos outros vinham sem nem mesmo ser chamados. Soldados especializados dispersos pelos mares de Holanda, Portugal e Espanha também vieram para a Saint-Malo em caráter de urgência.

Oficiais em comando, dispostos nos mais diversos portos da França e de aliados da França, foram instados. Nesse momento, 1711 já entrado em meses, chegou o informe da morte do comandante Duclerc no Rio de Janeiro. O que fez aumentar a ira dos franceses. E, como consequência, a notícia de uma vingança implacável foi se espalhando às rápidas por todo o espaço europeu.

Em fins de maio, Duguay-Trouin, que fazia de Brest o seu centro de comando, decidiu partir às pressas antes que os planos fossem malogrados por investidas inimigas. Assim, no dia 2 de junho, ele partiu de Brest rumo La Rochelle e depois para Rochefort e para as Ilhas Canárias – por certo, Tenerife. Mês e pouco depois, todos aportados nessa ilha espanhola, 17 navios com 700 canhões, 10 morteiros e mais de 5.500 homens iniciavam, então, a sua rota para os trópicos com direção ao Rio de Janeiro.

Ainda em águas profundas do Atlântico, Duguay-Trouin discutiu com os demais comandantes a possibilidade de fazer escala na cidade da Bahia e bombardear todos os navios de bandeira inimiga antes de partir para o Rio de Janeiro. A ideia foi recebida com atenção, mas foi perdendo a força ao passo que os dias foram passando e a tripulação foi ficando cada vez mais esgotada diante da lentidão que ventos contrários impunham ao deslanchar das naus.

Ainda havia o cálculo de risco de eventual derrota na Bahia. Naqueles anos de guerra de sucessão ao trono de Espanha, que era um conflito de dimensão internacional, a marinha francesa vinha amargando duros e variados malogros. Era grande o receio de perder mais homens, navios e dinheiro. Optou-se, então, pela objetividade. Decidiu-se singrar direto até o Rio de Janeiro.

Direto ao alvo, em começos de setembro, os soldados franceses avistaram as terras do Brasil. Era a manhã do dia 12 quando a Guanabara ficou ao alcance de suas mãos.

O tempo estava feio. Escuro. Cheio de nevoeiro. Prenúncio de chuva, soluços de chuvisqueiro.

O governo da capitania estava a par de tudo. O rei da Inglaterra, através do rei de Portugal, mandara avisar.

Sem, entretanto, mesurar o que aguardavam, lusitanos e brasílicos seguiam a postos para tentar conter o vingador. Mas quase em vão. Bombardearam os navios de Duguay-Trouin e cerca de trezentos homens franceses vieram a pique. Um e outro navios tiveram uma e outra parte danificadas. Mas, ainda naquele dia 12 de setembro, os franceses conseguiram se instalar na Gamboa e na Ilha das Cobras.

Nos dias seguintes, no 13 e no 14, a cidade do Rio de Janeiro foi, então, totalmente bombardeada e definitivamente sitiada.

Quinhentos franceses foram, em primeiro ato, desembarcados em terra. Outros quase cinco mil seguiram alerta. E isso, no conjunto, representava mais de três vezes o contingente de soldados a disposição da cidade do Rio de Janeiro, que não possuía mais que 12 mil pessoas como população.

Com medo, pavor e ódio, o governador geral da capitania autorizou a deserção de todos. Soldados e gente comum. Ele notou que qualquer tentativa de reação poderia produzir tragédia ainda maior.

No dia 14 de setembro, Duguay-Trouin decretou a cidade oficialmente sequestrada. O júbilo dos franceses nisso tudo foi imenso. O nobre sequestrador havia cumprido a sua tarefa.

Para a devolução da cidade, o preço foi de dois milhões de libras francesas. Esse resgate seria pago 50 dias depois com 600 quilos de ouro, 610 mil cruzados portugueses, 100 caixas de açúcar, 200 bois e dezenas de escravos.

________________
(As opiniões expressas nos artigos publicados no Jornal da USP são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do veículo nem posições institucionais da Universidade de São Paulo. Acesse aqui nossos parâmetros editoriais para artigos de opinião.)


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.