O que nos resta é olhar para dentro

Por Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP

 08/09/2022 - Publicado há 2 anos

O Brasil passou pelo 7 de Setembro apreensivo, inseguro, sem saber o que vem pela frente. No dia seguinte, o País acordou como um adolescente em crise de identidade, que se olha no espelho e não consegue se reconhecer. A confusão mental dos últimos anos seguia a todo vapor.

Tudo parece imprevisível. Este artigo, por exemplo, deveria ter sido entregue antes do Dia da Independência, mas pedi para adiar porque não sabia o que esperar da data. Seria apenas um dia normal ou estaríamos entre os escombros? Por mais sofisticado que seja o modelo para prever o futuro, a bola de cristal insiste em falhar. Já havia sido assim em 2018, quando o terremoto Jair Bolsonaro pegou a todos de surpresa.

As imagens da festa dos 200 anos, no entanto, não fugiram muito do esperado. Havia gente de verde e amarelo entusiasmada, com os rostos pintados, segurando cartazes para manifestar apoio à reeleição do político mais infame dos últimos dois séculos, que, como se esperava, falou muitas bobagens e infringiu as leis.

Era a celebração da ruptura, a festa de uma nação dividida por um profundo fosso cognitivo. A sensação é de conviver com pessoas que, mentalmente, estão em outra galáxia, mesmo que compartilhem o mesmo território. Se sintonizássemos a mesma realidade, elas não festejariam os últimos quatro anos de tragédias.

O pior, contudo, não é apenas a profundidade do fosso, mas a quantidade de gente do outro lado. Eles podem ser a maioria entre nós. É assustador, eu sei, eu sei. Mas, infelizmente, não há muito tempo para os maus bofes, nem para ficar impressionado. É justamente nessas horas que os cientistas sociais, os jornalistas, os historiadores, os filósofos, os teólogos, entre outras profissões cuja tarefa é pensar sobre pessoas, a sociedade e os espíritos, precisam trabalhar.

É necessário dar um passo atrás, respirar fundo, para observar o quadro geral: de cima, de perto, de baixo, do lado, por fora, por dentro, para tentar refletir e descrever o que se passa. Não resta outra saída para as ciências humanas, mesmo que a gente não alcance as respostas, porque, talvez, não exista para onde fugir. Quem sabe estamos programados pela nossa inteligência autocentrada a nos destruir e acabar com a vida no mundo.

Não sei, talvez, quem sabe. Não tenho a resposta, mas é uma boa pergunta. A inteligência humana caminha para causar a destruição do mundo? Podemos tentar refletir sobre isso, mesmo que a proposta soe pretensiosa. Mas não há como negar que estamos em maus lençóis. Eu, pelo menos, não negarei, neste espaço que me foi oferecido pelo Jornal da USP.

Humildemente, ao longo dessa jornada, quero compartilhar com o leitor um olhar menos engajado, mais afastado, como o de um repórter durante uma guerra, fotografando enquanto tudo pega fogo. É uma tarefa muitas vezes triste, nem sempre possível, mas necessária. Precisamos relatar; falar sobre; descrever a respeito.

Deve-se olhar o ódio de perto, sentir seu cheiro, ver sua cor, sua forma. É preciso conhecer o medo, saber identificar os conflitos, compreender suas causas e as dores de todos os lados envolvidos. Todo jornalista ou cientista social precisa ser um pouco voyeur, o cara encostado na parede, anotando em seu bloquinho, enquanto o mundo acaba.

Certa objetividade é preciso, em homenagem à verdade, que talvez nunca seja alcançada ou nem exista, mas que deve ser buscada. É o pouco do que nos resta: tentar olhar para dentro, nesse longo e sofrido processo de autoinvestigação, racionalizar a respeito de nós mesmos, transformando em palavras e discurso aquilo que se viu, quase sempre feio. Assim podemos amadurecer, como um adolescente inseguro, que se deita no divã para encarar sua crise de identidade. Nessa viagem interna, devemos esquecer nossas projeções, a imagem de quem sonhamos ser, para tentar saber, talvez sem nunca conseguir, quem somos nós.


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