Márcia Gazzarolli e Cícera Vieira teriam todos os motivos para se revoltarem e perderem as esperanças na democracia. Ambas tiveram seus filhos mortos pela polícia de São Paulo, há quase uma década, período em que passaram a lutar de forma corajosa e altiva por justiça. Elas nadam contra a corrente, seguindo uma estratégia pacifista e ordeira que, infelizmente, deram poucos resultados concretos. Os assassinos de seus filhos seguem impunes.
Elas podiam buscar vingança contra os que atacaram suas famílias, como defendem muitos homens que entrevistei ao longo dos anos: matadores convictos, que atuam no crime ou na polícia e que enxergam os homicídios como instrumentos de poder e como forma de fazer justiça.
Esses discursos em defesa de uma violência redentora, produtora de ordem e de obediência, fazem sucesso surpreendente nos dias de hoje. Estão nos territórios e nas prisões, propagados por milicianos e faccionados, e são reproduzidos nos parlamentos pelas bancadas da bala, unindo homens armados que buscam enriquecer e ampliar seu poder a partir do medo e da sensação de desordem, que leva mais gente a clamar por salvadores sanguinários. Bom para eles.
As falas e as ações de Márcia e Cícera vão no sentido oposto. Elas possuem compromisso com a vida, com a ordem legítima, não imposta, sempre em diálogo com as instituições, mesmo quando não são ouvidas. Representam aspirações civilizatórias, acreditam na ação de um Estado democrático que protege direitos. Sabem que armas e violência, quando usadas sem controle, são sinônimo de covardia. Mesmo depois de quase uma década sem resposta das autoridades, elas continuam a peregrinar por delegacias, defensoria, Ministério Público, universidades, tentando convencer a Justiça a punir os criminosos que vitimaram seus filhos e evitar que outras mães passem o mesmo que elas.
Insistem em cobrar o cumprimento das regras porque sabem que a justiça, quando feita pelas próprias mãos, gera mais desordem, violência e produz ciclos de vingança incessantes. As duas integram o movimento Mães da Leste, com cerca de 30 integrantes, que deixaram o luto para defender a vida, a ordem democrática e o Estado de Direito.
As mães se tornaram personagens importante nesse universo da violência policial no Brasil. Começaram sua militância ainda nos anos de 1990, com as mães que denunciavam a chacina de Acari, no Rio de Janeiro. Depois, lutaram para chamar a atenção da sociedade nas chacinas da Candelária e de Vigário Geral, também no Rio. Em 2006, mães da Baixada Santista denunciaram os assassinatos de seus filhos pela polícia paulista e criaram o movimento Mães de Maio, cujo nome se inspirava nas Mães da Praça de Maio, movimento argentino que cobrava punição contra os crimes da ditadura no país. Durante e depois da repressão no Brasil, a ação política e a luta de mães como Eunice Paiva, Clarice Herzog, Zuzu Angel, entre outras, que tiveram parentes mortos e torturados, foram fundamentais para constranger o regime.
Essa rede materna não parou de se ampliar porque, infelizmente, a violência policial também se expandiu territorialmente pelo Brasil. Foram criadas a Rede de Comunidades e Movimentos contra Violência (RJ), as Mães de Manguinhos (RJ), as Mães da Baixada (RJ), as Mães do Curió (CE), as Mães do Cabula (BA), Mães do Xingu (PA), Mães de Paraisópolis (SP), entre outros grupos, que buscam se conectar e se apoiar. A força dos movimentos das mães está ancorada na dignidade dos valores que representam. Renunciam à própria segurança, suportam ameaças, correm risco de vida, na defesa de um ideal utópico de civilidade e de respeito.
Ouvi-las, quase sempre, como se pode notar nesta conversa que tivemos com Márcia e Cícera no Núcleo de Estudos da Violência da USP, parece nos aproximar de questões sagradas. Elas tratam de valores coletivos estruturais, que garantem desde sempre a sobrevivência humana na Terra. Uma moralidade voltada para a reprodução da vida. O contraste com a celebração atual das guerras, das armas, mortes e conflitos, torna suas falas ainda mais arrebatadoras.
Márcia, por exemplo, nasceu em São Paulo e cresceu no Itaim Paulista. Ela se casou ainda jovem e teve quatro filhos. Montou um minimercado com o marido para sustentar a família. Acabou vivendo momentos dramáticos ligados à violência doméstica. Enquanto pôde, tentou manter o casamento e se mudou para Santa Isabel, no interior paulista, para ver se a relação melhorava.
Na cidade, soube que uma sobrinha, que tinha sérios problemas com drogas, teve um filho com problemas de saúde, que seria doado no dia seguinte. Ela foi procurar a menina, que estava em um bar. Ouviu dela que não tinha condições de criá-lo e que a única maneira da criança sobreviver era em outra família.
Márcia foi até a casa da sobrinha para ver a criança, que estava chorando no berço. Quando pegou o menino no colo, ele parou de chorar. Era frágil, magro, vulnerável e tinha uma sonda na barriga, Márcia logo se apaixonou. Foi assim que seu caçula, o quinto filho, chegou a sua casa. Todos passaram a chamá-lo de Renatinho – apesar de ele ter sido registrado pela mãe biológica como Peterson.
Renatinho nasceu com problema no esôfago e inicialmente tinha que ser alimentado pela barriga por sonda. Depois vieram papinhas e alimentos líquidos. Foram anos de visitas ao hospital, o que levou a família a voltar a São Paulo. Todos chamavam Márcia de louca, diziam que a criança iria morrer em suas mãos, mas ela nunca desistiu. Renatinho fez uma cirurgia aos seis anos e cresceu forte e se alimentando bem.
Na adolescência, contudo, passou a ter problemas com drogas. Marcia chegou a interná-lo e a testemunhar sua luta para mudar seus hábitos. “Mas ele só fazia mal para ele e para mim. E me prometia que iria parar, ele queria parar”, diz. Talvez a compulsão tivesse sido herdada da mãe biológica, ela pensava. Márcia continuava ao lado do filho.
Depois de sair da clínica, Márcia viu Renatinho melhorar. Ele vinha tomando remédios que o ajudavam. Estava engordando. Gostava de trabalhar com carros, montava e desmontava motores. Fazia bico no restaurante da mãe, entregando comidas. Ela estava esperançosa, animada. Mas Renatinho encontrou os policiais da Força Tática e sua história de luta e de superação acabou sendo interrompida.
Foi durante uma abordagem policial, ocorrida no dia 18 de março de 2015, em plena luz do dia, às 15h30. Os policiais pararam Renatinho, o algemaram e ficaram com ele 40 minutos numa longa sessão de chutes e safanões. Depois de apanhar muito, ele entrou na viatura pedindo para testemunhas avisarem sua mãe que ele estava sendo levado.
Para chegar até ao hospital, do local, gastava-se cerca de um minuto, mas a polícia o entregou às 18h04, desmaiado. Pouco depois, foi declarado morto. Tinha 21 anos. As marcas de agressão no corpo, o sangue na viatura, o vídeo da abordagem não foram suficientes para indiciar os policiais suspeitos e abrir um processo. O inquérito segue aberto, inconclusivo, dez anos depois.
Já Matheus, filho de Cícera, tinha 20 anos quando foi morto, em novembro de 2016. Os autores do crime eram policiais civis. No dia do homicídio, eles faziam vigília desde a manhã na Favela Mario Cardim, na Vila Mariana, onde Cícera morava e atuava como presidente da associação de moradores. Os policiais civis estavam presentes, segundo suspeitas de Cícera, para extorquir os meninos da biqueira local, como costumavam fazer.
Alheio ao movimento, Matheus foi para a casa da sogra jantar, em uma das oito vielas da comunidade. Quando saiu para comprar refrigerante, viu um dos policiais, em trajes civis, enforcando um de seus amigos no meio da rua. Foi ajudá-lo a se soltar, quando o outro policial, também em trajes civis, disparou contra ele. Acertou no peito. Depois, os outros acabaram de executá-lo. A esposa e o filho estavam saindo de casa e viram Matheus sendo morto e colocarem trouxinhas de maconha em seu bolso.
Cícera buscou justiça. Ajudou a identificar os policiais, apesar de pressões e ameaças. Um dos acusados chegou a ficar um mês preso, mas o inquérito não avançou e foi arquivado. Ela não desistiu de lutar e graças ao seu esforço e apoio da Defensoria Pública, o caso pôde ser reaberto.
Cícera, Márcia, assim como outras mães dessas redes longevas, além de buscar justiça, tentam, sobretudo, conseguir apoio para tratar da saúde mental do luto pelos filhos. A briga acaba sendo uma maneira de fugir da depressão, mas muitas não conseguem e vão morrendo pelo caminho. Conversando com elas, o que mais me impressiona é que, por serem defensoras dos direitos humanos, elas, assim como outros militantes da área, continuam sendo estigmatizadas como defensoras de bandidos. Acusação que não poderia ser mais falsa, injusta e covarde. Como é possível ver em suas trajetórias, elas defendem a vida, a ordem legítima, o Estado de Direito. Os perpetuadores da desordem e do crime são os policiais violentos e seus defensores, que iludem a população prometendo a lei e a ordem violenta, mas que se beneficiam de seus superpoderes para enriquecerem praticando crimes.
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