“Hey boy, o que você está fazendo aqui”

Por Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP

 07/12/2022 - Publicado há 1 ano

Quase 30 anos depois, ainda me emociono ao ouvir a batida lenta, junto com a base do baixo e do teclado agudo que antecedem a letra de Fim de Semana no Parque, dos Racionais MCs, clássico da banda lançado em 1993. É um dos mais belos hinos de São Paulo, cidade em que moro e que se transformou junto com o grupo. Parte dessa história está no fantástico documentário Racionais: Das ruas da cidade para o mundo, da diretora Juliana Vicente.

Meio sem querer, acabei aparecendo no filme durante um show dos Racionais no Vale do Anhangabaú, ocorrido em novembro de 1994. O sucesso do quarteto tinha despertado reação da Polícia Militar paulista, que proibiu o grupo de cantar a música O Homem na Estrada em cima do palco. O argumento era de que a letra tinha um palavrão contra a corporação: “Te chamarão para sempre/ de ex-presidiário/ não confio na polícia raça do c…”. Era a mesma PM que dois anos antes havia liderado o massacre do Carandiru, com 111 mortos.

Eu ainda estava começando no jornalismo e tinha conseguido uma credencial para fotografá-los durante o show. Apareço no documentário batendo as fotos no momento em que a PM sobe ao palco para prendê-los, diante de um público de dez mil pessoas. O show, que transcorria em paz, acabou virando uma imensa confusão, com pedras e surras na plateia. A arbitrariedade escandalosa dos policiais teve pouca repercussão na imprensa.

Minha geração é a mesma de Mano Brown, que nasceu em 1970, um ano antes de mim. Vivemos na mesma cidade, mas em mundos opostos. O abismo social que separava nossa realidade podia ser identificado de diversas formas, mas a diferença que mais me impressionava era a da expectativa de vida. Como jornalista, sempre perguntei aos homens moradores de bairros periféricos da minha idade quantos amigos deles tinham sido assassinados. Morando no centro, a minha resposta era zero. A deles, não raro, chegava às dezenas – alguns me diziam ser impossível contar, tamanha a quantidade. Muitos deles denominavam-se sobreviventes ao passarem dos 25 anos.

Educado em escola privada, branco, criado em família de classe média, quando comecei a ouvir Racionais eu era o “playboy” da letra incisiva e direta do disco de estreia, lançado em 1990. As músicas ainda não tinham o mesmo lirismo dos álbuns que viriam. Lembro do impacto ao ouvir Hey Boy e depois de assisti-la cantada com raiva pela banda e pelo público em um show. Pela primeira vez, ouvia o ódio de classe articulado em uma letra de música para descrever a São Paulo recém-urbanizada, com suas favelas e periferias. “Hey boy o que você está fazendo aqui/ Meu bairro não é seu lugar/ E você vai se ferir/ Você não sabe onde está/ Caiu num ninho de cobra/ E eu acho que vai ter que se explicar/ Pra sair não vai ser fácil.”

O LP de 1993, Raio-X do Brasil, que tinha Fim de Semana, O Homem na Estrada e Mano na Porta do Bar, se tornaria um divisor de águas na cultura paulistana. “Existe uma São Paulo antes e depois dos Racionais”, me disse certa vez a educadora Dagmar Garroux, fundadora e presidente da Casa do Zezinho, instituição educacional do Capão Redondo que transformou a vida de centenas de jovens. Nunca mais me esqueci dessa sentença porque era disso que se tratava.

Com Brown e os Racionais, um novo discurso do jovem urbano de periferia começou a se articular. A honestidade e o talento do grupo tornaram públicos uma raiva e um mal-estar que muitos preferiam fingir, cinicamente, que não existiam. Eles representavam a geração dos filhos ou netos dos migrantes que vieram das zonas rurais para morar nas periferias da cidade e trabalhar nas indústrias nos anos 1950 e 1960. A geração deles, nascida e crescida na São Paulo dos 70 e 80, passou pela depressão econômica e encarou a falta de emprego e de futuro.

Eles negavam a cultura rural dos pais – vista, muitas vezes, como anacrônica e atrasada no ambiente moderno das cidades – e criaram uma identidade própria, urbana, masculina, que não abaixava a cabeça para as humilhações que oprimiram seus ancestrais. Tornaram-se alvo preferencial da polícia, que agia como se São Paulo vivesse uma guerra contra os moradores das periferias, jovens e negros. O estigma carimbava a alma com a pecha de suspeito. Essa geração ainda testemunhou os conflitos autodestrutivos e as rixas que dizimaram boa parte dela, enterrada no São Luís, o Cemitério dos Jovens.

Mano Brown e os Racionais foram seus porta-vozes. Mais do que música, era também informação. Os Racionais e os rappers se definiam como a “CNN da periferia”. Seus discursos, replicados em CDs e fitas K-7, rompiam com as barreiras impostas pelos jornais, rádio e televisão e inspiravam milhares de bandas de artistas periféricos.

Em maio de 2006, voltei a encontrar Brown por acaso nas ruas do Capão Redondo. Estava fazendo uma reportagem numa posse de hip-hop chamada Negredo, que ficava do Fundão, bairro de origem de parte dos Racionais. Era uma matéria importante, logo depois dos ataques feitos pelo Primeiro Comando da Capital (PCC). Dezenas de policiais foram assassinados por criminosos em um fim de semana. Em resposta, a polícia partiu para a vingança e ao longo de nove dias fez cerca de 200 execuções suspeitas em bairros pobres, no que ficou conhecido como “Crimes de Maio” e deu origem ao movimento Mães de Maio, com as mães das vítimas dos atentados.

Os grupos de hip-hop estavam ajudando a denunciar o massacre. Alguns comparavam o drama dos moradores das periferias com o dos palestinos, ambos considerados povos inimigos e covardemente massacrados. Eu estava na rua com o escritor Ferréz, com o rapper Gaspar, do Grupo Z`África Brasil, e com os membros da Negredo, quando passou um Cadillac azul-claro, de colecionador, com Mano Brown e o pivô Serginho, da Seleção Brasileira de Vôlei. Eles pararam para conversar conosco. Apesar do contexto trágico, senti o peso pulsante da cultura paulistana naquela rodinha. O título da matéria foi Na São Paulo dividida, rappers viram Al-Jazira da periferia. Eles davam voz às vítimas e aos dissidentes.

Esse diálogo tenso e honesto, inventado pelo hip-hop, aproximou a cidade ao tornar seus sentimentos mais humanos e compreensíveis. Junto com os movimentos sociais de educação, saúde, moradia, somados aos movimentos negros, feministas, LGBTQIA+, foram decisivos para a transformação da cidade. São Paulo é violenta, continua sendo injusta e desigual, mas melhorou porque seguiu viva, intensa, resistente, honesta, produzindo novidades e aprendendo e ensinando a conviver com as diferenças.

Os homicídios, em 20 anos, caíram mais de 80% e a capital paulista se tornou, proporcionalmente, a menos violenta do Brasil. Eu tive o privilégio de testemunhar essa redução, algo imenso, enorme, que transformou as periferias. Mano Brown, que assustou um playboy curioso três décadas atrás, atualmente é um dos artistas mais respeitados do Brasil, assim como a geração de rappers que ajudou a formar, como Emicida, Djonga, Criolo, entre outros. Os rappers não são mais vistos como alienígenas. Eles fazem parte da vanguarda cultural brasileira, transcendendo raça, gênero e classe. São a ponta de lança.

Na semana passada, os Racionais foram celebrados na Unicamp. O livro Sobrevivendo no Inferno, com letras do disco de 1997, já era tema no vestibular da universidade. Na plateia lotada havia diversos alunos negros. O perfil dos estudantes da USP também vem se tornando mais plural, ambos fenômenos decorrentes dos dez anos da Lei de Cotas. São Paulo pode ser brutal, mas melhorou. O pesadelo continua ameaçador, mas existem vitórias para serem celebradas. Devemos festejar os Racionais MCs.


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