Apesar de ser proibido desde 1941, o jogo do bicho sempre esteve presente no cotidiano das cidades brasileiras. Parecia funcionar como uma espécie de amortecedor para uma sociedade desigual, estratificada, que oferecia poucas oportunidades de ascensão social. O sonho de “fazer a boa” acabava mantendo acesa a esperança de driblar o destino e enriquecer a partir de um golpe de sorte. Reformar ou derrubar o sistema se tornava menos urgente enquanto houvesse a chance de pegar um atalho para o sucesso. Bastava acreditar nos próprios sonhos e “acertar na cabeça”.
A proximidade do bicho com a cultura popular se fortaleceu pelo financiamento do futebol e das escolas de samba, instituições que também ajudavam a fugir da dura realidade cotidiana. A vida ficava mais leve e festiva com futebol, samba e a esperança viva de ficar rico. Essa tolerância velada com o jogo, contudo, permitiu às autoridades faturarem com a proibição e a venda de facilidades, criando uma cultura do “arrego” que aproximou policiais, contraventores e criminosos.
Compreendi alguns dos efeitos colaterais desse convívio quando estava escrevendo o livro A República das Milícias – dos esquadrões da morte à era Bolsonaro. Lobo, um miliciano aposentado, me contou em uma entrevista sobre o medo que seus chefes tinham dos bicheiros. Seu grupo era liderado por dois policiais cascas-grossas, temidos por todos, que só abaixavam a cabeça para os chefes do bicho. Lobo se lembrou de uma ocasião em que um bicheiro pediu para colocar maquininhas de caça-níquel na área de sua milícia em troca de uma comissão. Os milicianos, no entanto, aceitaram a instalação das máquinas sem cobrar nada, para evitar problemas.
Enquanto escrevia o livro, as investigações sobre o assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes, ocorrido em 2018, trouxeram mais elementos para confirmar o poder da contravenção na cena criminal fluminense. Foi revelado que os bicheiros vinham contratando matadores especializados, recrutados até de dentro do Bope. A impunidade era garantida porque o bicho tinha no bolso alguns investigadores e delegados da divisão de homicídios, o que garantia ao grupo carta branca para matar.
A proibição, portanto, nunca reduziu o poder dos capos. Depois de décadas de proibição, porém, nos últimos cinco anos, sem muito debate ou alarde, os jogos, em suas diversas modalidades, invadiram a realidade brasileira como um tsunami, entrando por todas as brechas. Afetou a economia popular, sobrecarregou hospitais, atingiu crianças, promoveu a evasão de divisas e passou a lavar dinheiro do crime. As casas de apostas regulamentadas passaram a fazer propagandas em camisas de times, estádios, campeonatos e programas esportivos. Incentivavam, ao mesmo tempo, a disposição individual para o risco e a meta de aumentar o patrimônio sem trabalhar.
Apesar das sucessivas crises econômicas, enriquecer parecia um objetivo ao alcance de todos. As próprias redes sociais, principal palco dos jogos, mostrava como esse sonho era concreto, celebrando a ostentação e o consumo de pessoas vindas de baixo, que brindavam com champanhe em iates ou em frente de carros importados. A prosperidade se tornou o propósito maior de muitas trajetórias, como se a riqueza fosse um fim em si mesmo, sinônimo de virtudes, sinal da graça divina.
Nesse mesmo ambiente virtual, contudo, a economia formal também avançava, dando prosseguimento a uma mudança estrutural irreversível. No Brasil, o e-commerce já representa cerca de 17% das vendas no varejo brasileiro. O dinheiro eletrônico, aos poucos, assumiu o lugar do papel moeda, mudança que se acelerou depois da criação do Pix, que movimentou em maio 2,1 trilhões de reais no País. O ladrão-moderno percebeu que o espaço virtual se tornou mais seguro e lucrativo para a prática de crime do que as ruas.
Junto com as bets, os jogos de azar, as rifas, os cassinos e a ostentação, vieram os golpes financeiros e o estelionato, mudando o perfil do crime contra o patrimônio no Brasil. O último Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública revelou uma mudança importante nas modalidades de crime contra o patrimônio no Brasil. Os estelionatos passaram de 426,8 mil casos em 2018 para 1,965 milhão em 2023, um crescimento de 359% em cinco anos. Já os roubos em geral (a transeuntes, comércio, residências, banco e carga) caíram de 1,506 milhão para 870,3 mil no mesmo período, uma redução de 42%.
O estado de São Paulo, que registra mais da metade do total absoluto de estelionatos no País, foi um dos que puxou essa tendência. Os mais de 750 mil casos em 2023 representam uma taxa 1.670 ocorrências por 100 mil habitantes, a segunda maior do Brasil, um pouco abaixo do Distrito Federal. Já os roubos registraram no ano passado 265 mil casos e taxa de 597,8 casos por 100 mil habitantes, 6,7% menor do que no ano anterior e a sexta maior do Brasil.
Cresceu também em 2023 o total de furto de celulares (494,3 mil), que ultrapassaram os casos de roubo (423 mil). O furto, como nas modalidades das gangues da bicicleta, segundo análise do FBSP, propicia a possibilidade de o ladrão conseguir entrar no aparelho antes de ser bloqueado, o que facilita acesso às redes e contas do proprietário para aplicação de golpes financeiros variados.
As possibilidades de ganhar e lavar dinheiro também aumentaram com a profusão dos sites de jogos. No Brasil, cresceu ainda o faturamento da venda de cocaína pelas facções brasileiras para o mundo, diante do estreitamento dos negócios com as máfias internacionais. O surgimento das bitcoins ampliou oportunidades de transações internacionais à margem da lei e novas tecnologias de lavagem passaram a despontar. Nesse ambiente, parece cada vez mais desafiador separar o dinheiro legal do ilegal.
O mundo da economia informal e ilegal se sofisticou: o faturamento do crime, os instrumentos de lavagem, os profissionais especializados nesse tipo de trabalho, tudo parece bem à frente da capacidade de reação do Estado, cujas instituições estão longe de conseguir controlar e punir esses desvios. Com o descrédito do Estado e da política, resta o salve-se-quem-puder, como se a vida fosse uma corrida individual pela sobrevivência.
Os laços de confiança se fragilizam, a mentira impera, a falta de caráter se torna natural e corriqueira, misturada a um moralismo retrógrado. A criação de um projeto coletivo, capaz de seduzir as mentes e apontar propósitos que vão além da vontade individual de enriquecer, parece ser o meio de evitar o caminho apressado para a ruína. Talvez, porém, a consciência da mudança só venha depois que estivermos arruinados.
_______________
(As opiniões expressas pelos articulistas do Jornal da USP são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do veículo nem posições institucionais da Universidade de São Paulo. Acesse aqui nossos parâmetros editoriais para artigos de opinião.)