Regina Silveira: “cosa mentale”

Por Alecsandra Matias de Oliveira, professora do Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc) da Escola de Comunicações e Artes da USP

 12/01/2023 - Publicado há 1 ano     Atualizado: 13/01/2023 as 16:38

Na contramão de qualquer tentativa de categorização, a pesquisa de Regina Silveira (Porto Alegre, 1939) é perturbadora. A leitura das suas obras é tarefa complexa. Qualquer tentativa de cognição tende ao fracasso, caso não considere as diversas camadas interpretativas, entre elas: a mente inquieta da artista; o emprego das técnicas (da xilogravura ao digital) e a modulação de discurso (histórico, contínuo, disruptivo e crítico).

Nas suas obras, os conceitos e os modos de ver tencionam limites. O ponto de fuga renascentista, por exemplo, operação tida como lógica, é o meio de obtenção do absurdo e, sobretudo, as distorções da perspectiva questionam os modelos dominantes de representação do espaço. Sob os pressupostos platônicos, em alguns trabalhos, as sombras indicam a impossibilidade de se transpor o real para o representado.

Pairam os enigmas. Somem-se os meios, aos materiais e aos temas, a cada obra o espectador se depara com referências nem sempre aparentes. Seus enunciados causam proposital estranhamento. Aos moldes de De Chirico “(…) as criações parecem-me ainda mais misteriosas que os criadores”. Cada obra faz-se de enigma; uma conversa entre Regina Silveira, a história e a pesquisa da arte no Brasil nas últimas quatro décadas.

Na verdade, a artista é agente de transformação do que se conta e do que se pensa sobre a arte. Sua experiência está ligada ao ensino e à pesquisa artística. Sua prática orienta e, acima de tudo, instiga à reflexão sobre o “fazer artístico”: entre 1969 e 1973, ela lecionou na Universidade de Porto Rico. Em 1980, obteve mestrado, com a exposição Anamorfas, no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP) e defendeu o doutorado com a série chamada Simulacros, em 1984 – esses dois trabalhos foram precursores: abriram as portas às poéticas visuais na pós-graduação da Universidade de São Paulo.

Ressalte-se que a institucionalização da pesquisa do artista – algo que muitos estudiosos chamam de artistic research – tornou-se ação pioneira no Reino Unido, no Brasil e no Japão, entre os anos de 1970 e 1980. Porém, essa preocupação com o curso de mestrado e doutorado dos artistas ainda é nova em países, tais como, Holanda, Áustria, Suécia e Portugal. Na França, por exemplo, entre idas e vindas, a institucionalização da pesquisa artística ocorreu apenas nos anos 2000.

Além de instaurar as poéticas visuais no nível da pós-graduação, nas décadas posteriores, ela foi docente da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) e da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), sendo responsável pela formação de muitos artistas, tais como, Rafael França (1959-1991), Mônica Nador (1955), Iran do Espírito Santo (1963) e tantos outros que passaram por seu campo de influência.

Rompendo a falsa dicotomia artista/professor, Regina Silveira entende a arte como cosa mentale, sendo assim, ela evidencia o aspecto conceitual da arte e dá justa importância aos aspectos operativos. Da experimentação ao rigor do projeto, não existe fidelidade a nenhum instrumento de expressão – para ela, o artista deve ir à procura dos códigos, ferramentas e materiais necessários a cada tarefa que se propõe. Isso explica os mais diversos meios, tais como a pintura, a gravura, o desenho, a tapeçaria, a fotografia, o vídeo, a instalação e a imagem digital.

O diálogo entre a artista e a história da arte brasileira não se esgota nos modos de sua produção. Está também nos temas e questões que suscitam, entre eles, as relações entre arte, política, poder, memória, comunicação e gênero – neste último o centro da questão não está na discussão sobre o feminino em seus trabalhos; está na ousadia dos grandes projetos voltados à arte em ambientes públicos (esfera, ainda hoje, predominantemente, masculina). Em entrevista realizada a pouco, ela disse que é preciso que mulheres enfrentem as grandes escalas e, confirma: “Eu penso que o meu trabalho é sempre um trabalho de mulher, porque sou uma mulher no mundo”.

Recentemente, Regina Silveira tem intensificado a divulgação de suas pesquisas e trabalhos. Foi presença destacada na 34ª Bienal de São Paulo, com duas instalações: Dilatáveis (1981-2000) e Paisagem (2021). A pesquisa da série Dilatáveis deriva de seu doutorado Simulacros. Nela, apropria-se de fotografias retiradas de impressos de grande circulação e as reproduz usando a heliografia, assim, deu início ao emprego das projeções distorcidas – aspecto-registro de sua produção posterior. As figuras e sombras desproporcionais remetem-se à vida política e cultural dos anos de ditadura militar. Já Paisagem é um labirinto de vidros transparentes e cravejados por balas de revólver. Com efeito, o vidro é furado e impresso em máquina digital com tinta cerâmica (mesma natureza do vidro), depois queimada em alta temperatura para se fundir ao vidro temperado. São marcas de balas falsas, mas revivem o discurso da insegurança pública no cotidiano dos grandes centros urbanos e lembram da violência que sempre esteve presente nos processos de estruturação da sociedade brasileira. Com o término da 34ª Bienal de São Paulo, a instalação seguiu para a Usina de Arte, em Água Preta, na Zona Mata Sul de Pernambuco

Como evento integrante da rede de expansão da Bienal, o MAC-USP organizou mostra retrospectiva chamada Outros paradoxos. No mesmo período, Regina Silveira desenvolveu a série de tapetes Tropicals, executada sob medida para o lobby do hotel Rosewood no projeto Cidade Matarazzo, com imagens paródicas dos bichos brasileiros. E, simultaneamente, a artista inaugurou a Fauna Mix, exposição de cinco tapeçarias na Luciana Brito Galeria, Touch, instalação de grandes dimensões na recém-criada Galeria Hugo França, em Trancoso, e exposição individual da Galeria Bolsa de Arte, em São Paulo. Com grande capacidade de trabalho, organização e diversidade de proposições, Regina Silveira tem movimentado o cenário atual da arte nos últimos dois anos. Haja vigor!

A retrospectiva 0utros paradoxos não foi completa (mas, foi uma das mais completas) de sua trajetória. O acervo do MAC-USP tem expressivo número de obras da artista e, nos últimos tempos, recebeu mais duas doações da artista que reforçaram sua presença como destaque da coleção – aqui cabe uma digressão: o MAC-USP, em 2018, em parceria com o Paço das Artes, realizou a mostra Paradoxo(s) da arte contemporânea, na qual Regina Silveira foi o cerne para a seleção de obras de artistas contemporâneos que, de certo modo, trataram de questões fomentadas pelo seu repertório. No centro dessa mostra, o Paradoxo do santo (1994) era a obra referencial – essa experiência mais uma vez mostra de modo concreto o campo de influência da artista/professora.
O abrigo do MAC-USP às propostas e às exposições de Regina Silveira merece reflexão aprofundada porque, de acordo com o artista francês Daniel Buren, “expor em um museu é também expor o museu”, então, a trajetória dessa artista conta sobre as escolhas institucionais do museu, sobre suas políticas patrimoniais e artísticas ao longo desses anos – expor seu percurso estético é também o discurso da contribuição do MAC-USP para a formação da arte contemporânea nacional.

Entre tantas parcerias entre Regina Silveira e o MAC-USP, pontuamos as primeiras experiências com o vídeo no Brasil. Elas aconteceram nos espaços do museu, a partir da compra de uma câmera Portapack, pelo então diretor, Walter Zanini. Artistas como Regina Silveira, Gabriel Borba, Carmela Gross e José Roberto Aguilar tiveram suas primeiras experiências ligadas ao vídeo nesse ambiente de museu-laboratório criado nos anos de 1970.

“Não há heróis para um serviçal.” Hegel.

Retornando a Outros paradoxos, o título refere-se à instalação Paradoxo do santo (1994). E, por que novamente essa obra? O motivo para sua eleição talvez esteja na sua potência. Nela, a artista traz o imaginário latino-americano a partir da religião e do militarismo. A sombra do Monumento a Duque de Caxias (1960), escultura equestre de Victor Brecheret (1894-1955), feita em homenagem ao patrono do exército brasileiro que comandou as tropas na Guerra do Paraguai, é projetada a partir da pequena imagem de madeira de São Tiago, patrono militar da Espanha que inspirou as batalhas contra os mouros. As distorções de perspectivas enfatizam o paradoxo visual e conceitual entre um general sombrio com a espada e um ingênuo santo de madeira. Silveira atua aqui como o serviçal que despe o herói; interroga o santo. Convém dizer aqui que o Monumento às Bandeiras também foi tomado como apropriação pela artista em Monudentro (1987 e 2001). A exemplo, então, a ideia de paradoxo está pressuposta em produções anteriores e posteriores.

Assim, a criação de Paradoxo do santo poderia ser levada à posição de obra-síntese? Os que tendem a responder que sim levam em conta que muitas obras seguem os aspectos formais e materiais desta instalação. Já os que pendem para o não entendem que outros trabalhos resultam de um processo criativo que guarda coerência, mas envolve conceitos e motivações diversas e, por isso, são criações inovadoras e, às vezes, sem relações com paradoxos, isto porque podem ser enigmas, sombras, labirintos etc.

Então, de fato, qualquer tentativa de categorização da obra de Regina Silveira torna-se frágil. Isso foi perceptível quando se percorreu os painéis e vitrines que abrigaram proposições expressionistas, construtivas e conceituais. As mais distintas referências (objetos banais, multidões contidas em containers, escadas, figuras geométricas, sombras, heróis, santos, labirintos, pegadas de animais etc.), além dos sons de algumas instalações que nos remetem a tiroteios, aos barulhos do dia e da noite ou ainda a rangidos mecânicos. A exposição ainda apresentou esboços dos projetos, estudos de algumas obras, maquetes, vitrines com documentos e vídeos informativos – subsídios de concreção às nossas perguntas e formulações sobre o processo criativo da artista-professora.

Por fim, muitas vezes, as experiências de Regina Silveira posicionaram a USP como uma das primeiras e mais consistentes instituições a dar suporte à artistic research – hoje, tendência mundial. Mas o campo de influência de Regina Silveira segue além de suas inquietações e experimentações; ele envolve seus diversos alunos; constitui públicos e desperta, sobretudo, para a pesquisa e reflexão teórica.

(As opiniões expressas pelos articulistas do Jornal da USP são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do veículo nem posições institucionais da Universidade de São Paulo)


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