O interesse da arte moderna pelas questões que envolvem o inconsciente e, no seu limiar, a loucura, sempre foi um tema de fascínio. Diversos teóricos e artistas europeus, entre eles, Michel Foucault, Gilles Deleuze e Jean Dubuffet, dedicaram-se aos estudos sobre o possível ponto de convergência entre loucura e processo criativo. Igualmente, os dadaístas, surrealistas e outras vanguardas artísticas investiram esforços na investigação sobre essas conexões.
A busca por novos parâmetros formais orientou artistas e críticos ligados à arte moderna. Nessa jornada, o foco estava no aspecto “irracional”, no espontâneo e na expressão livre do fazer artístico. Nesse ponto, o interesse pela arte africana, pelos pintores autodidatas e pelas obras dos loucos marcou as proposições modernas. Já no Brasil, o que existiu evidenciou-se como singularidade do modernismo frente à loucura, mostrando-se ainda como um campo aberto para novas abordagens e pesquisas.
Recentemente, o livro Aprender com a loucura – modernismo brasileiro e arte contemporânea global, de Kaira M. Cabañas, conta sobre esse processo. Em pouco tempo, o livro passou a integrar a lista de referências obrigatórias para a discussão sobre esse assunto, particularmente quando se trata da ligação entre museu e manicômio. Além desse resgate, Cabañas questiona como a experiência da “arte dos loucos” é vista dentro do sistema da arte global e como agora essas questões são encaradas pela contemporaneidade.
Em Aprender com a loucura, a autora reexaminou o modernismo brasileiro, adjacente às novas abordagens médicas no tratamento psiquiátrico entre 1940 e 1960 – período no qual se firmou uma interação entre críticos e curadores voltada à produção vinda de hospitais psiquiátricos (coloque-se, nesse contexto, as ideias de Art Brut de Dubuffet e a experiência do fazer artístico como ação terapêutica).
Cabañas joga luzes sobre três coleções de obras vindas da produção interna de hospitais psiquiátricos brasileiros: Juquery, Engenho de Dentro e Colônia Juliano Moreira. Com origem na criação “espontânea” de pacientes mentais, hoje essa produção é designada como “arte” e está em importantes acervos. Note-se que a produção dos alienados (e não os seus criadores) foi aceita pelos museus brasileiros. No livro, a autora também compartilha percursos balizados pela interação arte-loucura, entre eles, Nise da Silveira, Mário Pedrosa, Osório César e Arthur Bispo do Rosário.
A hipótese da autora, assumida nas páginas do livro, concentra-se em “desaprender sobre a loucura”. Esse “desaprender” envolve a compreensão de como o trabalho expressivo, realizado por pessoas com sofrimento psíquico, extrapolou o domínio da medicina e seguiu para as artes. Para Cabañas, a chave do entendimento dessa dimensão está em “desaprender o que antes se pensava saber…”. E um desses desaprenderes está na trajetória de Arthur Bispo do Rosário (Japaratuba, 1909/1911- Rio de Janeiro, 1989).
Permitam-me, aparentemente, abandonar algo que se poderia chamar de “resenha” de Aprender com a loucura, para aprofundar preocupações sobre o capítulo A contemporaneidade de Bispo. Não se trata de desprezo por outros pontos tratados no livro, mas o enfoque sobre Bispo do Rosário nos faz pensar sobre a densidade de suas exclusões sociais; sobre a interseccionalidade que envolve psicopatologia, a raça e a classe social – ponto que sabemos também está entre as motivações da pesquisadora.
Como esse artista outsider tornou-se o escolhido para representar o Brasil na Bienal de Veneza de 1995? Ao classificar seus trabalhos como arte contemporânea, o sistema da arte respeitou o indivíduo Arthur Bispo do Rosário? Essas questões são levantadas por Cabañas e elas nos direcionam por entre fatos e considerações. O que devemos “desaprender” da história contada sobre Bispo do Rosário? A resposta não é simples.
Logo na abertura do capítulo A contemporaneidade de Bispo, existe a transcrição de um trecho do filme O prisioneiro da passagem: Arthur Bispo do Rosário (1992), de Hugo Donizat:
Visitante: Ele é capaz de fazer, né … É, isso não é qualquer pessoa que tem capacidade, isso é uma glória pro senhor, né?
Bispo: Não, não é uma glória, não, eu faço porque sou obrigado, se eu pudesse não fazia nada disso.
Visitante: Não eu tô dizendo, eu acho que o senhor tem honra em fazer.
Bispo: Não, não senhora, eu sou obrigado senão eu não fazia isso, não, tá entendendo?
Visitante: Tá muito bem, eu gostei muito de seus trabalhos.
Bispo: Eu escuto voz e as voz me obriga a fazer tudo isso.
E o diálogo continua ainda por mais algumas linhas, mas a essência do desconforto já está neste registro. A arte para Bispo não é honra ou resultado de um processo criativo prazeroso, pelo contrário, ela é obrigação – imposição da voz. Ao mesmo tempo, a interlocutora parece não compreender que não há prazer ou orgulho em ser artista e, por sinal, durante sua vida, Bispo recusava o rótulo de “artista”: dado o caráter divino de sua tarefa, sua missão era bem maior, era o executor das obras que as vozes lhe ordenavam.
Sendo assim, a inserção das suas obras no léxico da arte contemporânea pode ser problematizada, uma vez que o criador das peças não se reconhecia como artista. O atributo estético às suas peças foi dado por outros. Como não trair a intencionalidade da obra de Bispo do Rosário? E, ainda, como não sobrepor as visões de críticos e curadores, preocupados em tensionar o conceito de arte à sua vida-obra? Para essas questões, as respostas são complexas, mas intuímos que é preciso desaprender sobre o percurso e a inserção de Bispo do Rosário no circuito de exposições de arte.
Então, parte-se do que é sabido: na construção da história da arte brasileira, Arthur Bispo do Rosário é conhecido por ser o criador de uma rica produção, composta de bordados, assemblages, estandartes e distintos objetos. Suas obras foram confeccionadas durante um período no qual a psiquiatria empregou terapias tais como a lobotomia, os eletrochoques e outros procedimentos radicais para controlar os considerados doentes mentais.
Algumas fontes indicam que o surto psicótico de Bispo aconteceu em 1938, quando, aos 29 anos, conduzido por um exército imaginário de anjos, ele andou pelas ruas da cidade do Rio de Janeiro com um destino: ele foi se “apresentar” na Igreja da Candelária. Peregrinou pelas várias igrejas enfileiradas na Rua Primeiro de Março e terminou no Mosteiro de São Bento, onde anunciou aos padres que era um enviado, o Messias, o incumbido de “julgar os vivos e os mortos”.
Às vésperas do Natal ele, que dizia ser Jesus Cristo, foi interditado pela polícia e, em seguida, enviado ao Hospital Nacional dos Alienados, na Praia Vermelha, onde em seu prontuário constava: negro, sem documentos, indigente.
Após algum tempo de internação, ele foi “etiquetado” como paciente número 01662, do pavilhão 10 da Colônia Juliano Moreira – esse era o lugar destinado aos “doentes perigosos”. Seu diagnóstico foi o de esquizofrenia-paranoica. Ele chegou à instituição agressivo, passou um tempo preso, mas logo aprendeu a lidar com o manicômio. Bispo havia prestado serviços à Marinha e era lutador de boxe. Forte e sisudo, rapidamente se tornou o “xerife” do seu pavilhão.
O excesso de truculência levou Bispo do Rosário algumas vezes para o isolamento. Num tempo de confinamento, ele escutou: “Está na hora de você reconstruir o mundo”. Assim, deu início a sua dolorosa e obsessiva produção de objetos para a sua salvação e do mundo.
Nos primeiros trabalhos, surgiu a escrita bordada em tecido, em seguida os objetos, depois as assemblages ou vitrines, os cetros das misses e, por último, as embarcações. Reuniu objetos mais ou menos enigmáticos, mas que eram do seu cotidiano, frutos do que se referia como uma visão, como, por exemplo, na confecção do “manto”, o traje de apresentação a Deus, quando de sua “passagem”. No fundo, a intencionalidade de seus objetos é marcada esteticamente e a obra diz sobre finitude.
No seu ateliê-cela, as peças de Bispo do Rosário eram conhecidas pelos médicos, funcionários da Colônia e o crítico de arte Frederico Morais. Aliás, nesse momento, para ver sua obra era preciso responder: Qual é a cor da minha alma? A cor era o azul – o mesmo daquele dos uniformes dos internos que ele desfiava e transformava em fio para seus bordados.
Mencione-se que Frederico de Morais foi o responsável pela participação de suas obras na exposição coletiva À margem da vida, em 1982, e depois de sua morte, em 1989, foi curador da primeira mostra individual, Registros de minha passagem pela Terra, realizada na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, bem como de sua retrospectiva, Arthur Bispo do Rosário: o inventário do universo, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ), em 1993. O trabalho do crítico forjou a contemporaneidade da obra de Bispo do Rosário. Cabañas nos confirma isso:
“Morais inventou não apenas o artista Bispo, como também estabeleceu o que constituía cada trabalho individualmente, dividindo e catalogando suas obras e conferindo-lhes tanto uma ordem conceitual quanto designações descritivas e do âmbito da história da arte”.
Já a inserção internacional da obra de Bispo do Rosário ocorreu durante a Bienal de Veneza, com curadoria de Nelson Aguilar. Nessa ocasião, suas peças respondiam à demanda de mostrar um representante que fugiu do suporte tradicional e mudou a função do espaço em que atuou. De fato, pode se dizer que estava exposta a contemporaneidade de Bispo, quando se observa que a beleza das peças não era aquela óbvia, mas aquela de quem usou a pobreza dos materiais e a aspereza de suas condições de vida para gerar impacto e transformação.
Assim, chegamos ao ato de desaprender: a partir das especificidades da vida-obra de Bispo do Rosário, conseguimos entender o que ele, certa vez, disse: “Os doentes mentais são como beija-flores: nunca pousam, ficam a dois metros do chão”.
Ou ainda, quando Ricardo Resende, o curador do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea, no minidocumentário Bispo do Rosário – Eu vim: Quem foi Bispo do Rosário (2022, Itaú Cultural), nos alerta que não devemos trair “a alma de Bispo do Rosário”. Quando um curador coloca um estandarte como tela fixado na parede, isso é trair! Mas, quando se expõe o objeto como é de fato, respeitando sua natureza e, principalmente as condições de sua criação, emerge a intencionalidade de Bispo e ali está a arte (e, mais ainda, a contemporaneidade).
Ao fim, concordamos com Cabañas, quando a autora nos recomenda abandonar o controle epistêmico (o psiquiátrico e o formalismo estético) para a análise da obra de Bispo do Rosário e entendê-la dentro de seus condicionamentos psicopatológicos, de raça e de classe social, mas ainda seguir além, compreendendo que a intencionalidade de sua proposição é a de “reconstruir o mundo”.
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