Brasília, “traço do arquiteto”

Por Alecsandra Matias de Oliveira, professora do Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc) da Escola de Comunicações e Artes da USP

 31/01/2023 - Publicado há 1 ano

2023 mal começou e a capital de nosso país tem tomado os noticiários. Nos primeiros dias, vieram de lá as imagens da posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e, entre elas, cenas de intenso simbolismo, tais como a subida da rampa, a imensa bandeira tremulando sobre a multidão e, em especial, a transmissão da faixa presidencial feita por oito representantes da diversidade brasileira.

Passados sete dias, seguiram-se notícias estarrecedoras: gritos de intervenção, invasão dos espaços institucionais dos três poderes, roubo e destruição de patrimônio público. Acostumada a ser o centro nervoso da política do País, Brasília tornou-se, literalmente, campo de batalha. E nessa disputa, seu capital simbólico, assim como a noção de bem público, foram colocados à prova pelos extremistas.

Arrisco-me a pensar que, talvez, grande parcela da população não tenha compreendido, com profundidade, o ataque à democracia e à cultura nacional. Nesse ponto, cabe a indagação: como valorizar objetos e obras que parecem ser de usufruto apenas das elites? Para algumas pessoas, não faz sentido dizer que o Congresso é a “casa do povo”, quando ali elas não se sentem representadas. Outras não entendem os danos às artes, exceto quando os prejuízos são vertidos ao plano financeiro – mesmo assim, para esses, como os bens são públicos, eles não têm dono (o “de todos” é igualmente “o de ninguém”).

Já os golpistas sempre desprezaram a história e as artes; frequentemente, pedem pela volta da ditadura; não reconhecem as pinturas de Di Cavalcanti, as esculturas de Brecheret e Ceschiatti, os murais de Athos Bulcão ou ainda a própria arquitetura da cidade, classificada pela Unesco como patrimônio mundial desde 1987. De fato, as depredações que ocorreram nos dão prova do estado de recalque e ignorância dos vândalos.

Diante desses últimos eventos, proponho uma breve incursão sobre o campo das artes visuais em Brasília – tomada aqui como síntese da potência e, simultaneamente, da debilidade do coletivo chamado “povo brasileiro”. Como nos lembra o crítico de arte Frederico Morais, “Brasília nasceu como obra de arte”, e adjacente à sua criação, existiu um projeto, liderado pelas elites intelectuais e políticas, que envolvia valores estéticos do Modernismo e da modernização.

Os parâmetros deste projeto eram intensamente marcados pelo concretismo, pela institucionalização da arte e pela abertura à internacionalização. Acrescentem-se ainda o mecenato estatal e o embate entre as tendências figurativas e abstratas – esta oposição, manifesta no cenário nacional, teve repercussões no projeto da capital. E isso pode ser visto, por exemplo, na presença de telas de Di Cavalcanti e Djanira Volpi, em paralelo às obras construtivas de Rubem Valentim e Sérgio de Camargo.

Assim, a cidade-capital tornou-se, sobretudo, o paradigma utópico, racional e desenhado que divide natureza e civilização (cerrado e urbis). Nessa perspectiva, a pontuação dos espaços como marcos simbólicos e o incentivo às obras de arte integradas à arquitetura foram ações essenciais. Para os artistas, a cidade estetizada era a oportunidade de realizar projetos ousados, monumentais, e que poderiam redefinir uma nova identidade para o Brasil moderno, industrializado e progressista.

Nesse itinerário, o ano de 1958 tornou-se fundamental. À época, transferiu-se do Rio de Janeiro para Brasília a equipe de Oscar Niemeyer, entre eles, arquitetos, calculistas, técnicos, engenheiros e o artista Athos Bulcão, ou seja, desde antes de sua fundação a arte integrou os planos de construção da cidade. Muitos outros artistas foram convidados à distinção dos principais edifícios públicos da cidade, entre eles: Mary Vieira, Sérgio de Camargo, Franz Weissmann, Victor Brecheret, Bruno Giorgi, Maria Martins, Alfredo Ceschiatti, Cândido Portinari e Rubem Valentim. A integração da arquitetura às demais artes era a ideia central nessa missão cívico-pedagógica que envolvia a construção da brasilidade e a afirmação da modernidade.

Alguns estudiosos, como Angélica Madeira, professora do Departamento de Sociologia da UnB, afirmam que a arte e os artistas foram imprescindíveis para a cidade legitimar-se como capital (política e simbólica). O apelo como centro difusor de tendências radicais nas artes visuais era vital para superar a antiga capital – o Rio de Janeiro – e firmar o Planalto Central como o “Brasil do futuro”. Dentro dessa lógica, em 1959, por exemplo, o congresso da Associação Internacional dos Críticos de Arte, capitaneado por Mário Pedrosa, reuniu, ainda na cidade em construção, artistas e críticos de renome mundial.

Não por acaso, nas décadas seguintes, a Universidade de Brasília, idealizada por Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira, e os Salões Nacionais de Artes Plásticas tornaram-se focos de resistência à censura do regime militar, sendo campo aberto para o surgimento de poéticas contestatórias e marginais, como as de Nelson Leirner, Siron Franco, Gastão Magalhães e Cildo Meireles. No centro do poder, os artistas lidavam com a repressão e a ditadura. Nessas poéticas, valores ligados às rupturas, ao experimentalismo e à afirmação da linguagem conceitual estavam presentes.

Porém, as proposições inspiradas pela cidade não cessaram no seu projeto modernista, elas adentraram o comentário contemporâneo, convertendo a arquitetura da cidade e seus acontecimentos históricos em temas para a reflexão da arte atual. Fundado em 2001, como um grupo de estudos na Universidade Federal de Goiás, o Grupo Empreza, hoje, conta com nove membros: Aishá Kanda, Babidu, Helô Sanvoy, João Angelini, Marcela Campos, Paul Setúbal, Paulo Veiga Jordão, Rava e Thiago Lemos. Do trabalho coletivo, destaco aqui a performance Candango, com sua mais recente apresentação, ocorrida entre outubro e dezembro de 2021, no Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP. Nessa performance, os participantes do grupo, devidamente vestidos de executivos, trabalham, ao som de música sertaneja, numa construção com enxadas, pás, areia, cimento e tijolos – rememorando os trabalhadores braçais que edificaram Brasília.

De certo modo, Laercio Redondo, na série Lembranças de Brasília, 2012, ora em exposição na mostra Lugar Comum, no MAC USP, evoca a presença dos trabalhadores invisibilizados no processo de edificação da cidade. A pesquisa deste artista é motivada pela relação memória coletiva versus apagamento – a cidade, a arquitetura e a história surgem como tríade para seus trabalhos. Em Lembranças de Brasília, o processo de criação de Athos Bulcão é a chave para o entendimento da instalação: nele, a participação ativa dos operários na montagem e, até mesmo, na poética dos murais de Bulcão é lembrada. Laercio Redondo interessa-se pelas relações existentes entre trabalhador e artista, cidade e paisagem; ao mesmo tempo, ele reflete sobre a contribuição de Bulcão na recente história das artes visuais.

Da relação arquitetura versus paisagem somam-se as referências às curvas e aos edifícios ícones da capital. Fernando Lindote, por exemplo, apresenta a tela Brasília, 2013 – um díptico que retrata a dupla imagem do edifício do Congresso (numa primeira visão, o conjunto predial tal como é e, na segunda, invertido e espelhado) – as imagens assemelham-se à metáfora noturna entre o côncavo e convexo da arquitetura do monumento.

Incluo ainda, entre as proposições contemporâneas, a série fotográfica chamada Empossamento, 2003, de Mauro Restiffe. Nesses registros, o evento histórico da posse do primeiro presidente vindo da classe trabalhadora, Lula. A cidade “traço do arquiteto” recebia em suas vias a multidão – os trabalhadores ganharam protagonismo nessas imagens. Alguns críticos classificaram essas fotografias como a “desestabilização da arquitetura”. A propósito, Restiffe também fez registros fotográficos da posse de Jair Bolsonaro, em 2019. E a comparação entre esses dois momentos históricos foi exposta na 34ª edição da Bienal de São Paulo, Faz escuro, mas eu canto, realizada em 2021.

Para além dos trabalhos individuais, encerro esta reflexão (sem a pretensão de esgotar o assunto) com a exposição Brasil Futuro: as formas da democracia, com curadoria de Rogério Carvalho e Lilia Schwarcz, no Museu Nacional de Brasília – que integrou os festejos da posse do terceiro mandato de Lula. Com 180 obras, a mostra deu o tom de celebração da democracia, do resgate dos símbolos nacionais e de atenção às pautas do feminismo, da negritude, dos povos originários, do movimento LGBTQIA+ e da pluralidade.

De tudo, compreende-se que o ataque bolsonarista aos poderes da República teve duplo fracasso: no primeiro, a tentativa de golpe não desestabilizou as instituições democráticas – como era o seu objetivo mais imediato, e no segundo (e, talvez, mais profundo), pode ter causado danos materiais lamentáveis, perdas inestimáveis e cenas vexatórias, mas, no final, forneceu subsídios para o entendimento dos bens públicos, assim como deu novo vigor ao capital simbólico que tem Brasília como seu abrigo.

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