O imaginário sobre a Amazônia ainda hoje traz ideias ligadas à natureza intocada, ao exótico e aos “índios selvagens” – o território seria um imenso “deserto verde”. Nesse modelo, os aspectos humanos e socioculturais transformam-se em mistério conveniente – como se na região não vivessem ribeirinhos, indígenas e negros. Saber da existência dessas pessoas é algo fundamental para o entendimento da diversidade do País.
De certo modo, a literatura e as artes colaboraram para esse “desconhecimento” sobre as populações amazônicas. Isto porque muitas produções apresentaram a região como habitada essencialmente por povos indígenas primitivos e isolados – essa imagem submeteu etnias à homogeneização e adensou o preconceito destas serem “gentios” ou “selvagens”.
No século 19, por exemplo, “o mito do bom selvagem” surgiu na literatura nacional e se desdobrou na pintura e na escultura por meio da representação de personagens, como Moema, Iracema, Ceci e Peri. Essas figuras estavam em produções de Rodolfo Bernardelli, Victor Meirelles, Rodolfo Amoedo, Horário Hora, entre outros artistas acadêmicos.
Nesse ideário, o Romantismo atribuiu aos nativos o status de aristocracia autóctone: eles eram belos e valentes guerreiros. A idealização do “nacional” tinha como cerne o épico colonizador somado ao “bom selvagem”, num território mítico – o Brasil. Os temas eram sempre relacionados à natureza exuberante, o “índio” não deixava de ser um “fruto da terra”. Os indígenas eram apresentados como seres da natureza; eles integrariam a paisagem.
Nem todas essas imagens dizem sobre a Amazônia, tal como a conhecemos – o conceito teve início na virada do século 18 para o 19, com o geógrafo Alexander von Humboldt. O termo Amazônia surgiu por volta de 1866, quando a floresta se abriu ao mundo com a navegação estrangeira no Rio Amazonas e o ciclo da borracha. Já a ideia deste lugar como sendo a “última fronteira do país” aliás, foi uma invenção do Império retomada pela República.
No Modernismo e seus desdobramentos, tais como o Manifesto Pau-Brasil, o Movimento Verde-Amarelo e o Manifesto Antropofágico, as intenções da arte e da literatura passavam pela busca das raízes do País; pelas suas culturas nativas, particularmente suas matrizes indígenas e negras. Cabe aqui dizer que essa busca se deu em meio ao que seria “selvagem” ou “primitivo”. Assim, a modernidade do negro e do indígena, na visão dos modernistas, projetada e vivenciada a partir de Paris, residia em manifestações exteriores – algo que Oswald de Andrade entendia como sendo as duas “forças étnicas” brasileiras.
Diferentes modernistas elegeram os índios, os negros e os mestiços como tema para suas investigações. Essa predileção tornou-se o primeiro indício do que seria, anos mais tarde, a “invenção” da brasilidade. Os negros e os povos ameríndios surgiram com mais intensidade por volta de 1927-1928, quando ocorre, de certa forma, uma inflexão no movimento modernista. E aqui, mais uma vez, a região amazônica entra para as artes e literatura como a inspiração aparente. Obras como Macunaíma (1928), de Mário de Andrade, e Cobra Norato (1931), de Raul Bopp, são exemplos desta adoção dos mitos e lendas indígenas, além da descrição da paisagem.
Nas artes visuais, Vicente do Rego Monteiro e Victor Brecheret exploraram intensamente a figura do “índio”, as lendas e os mitos amazônicos. Para Rego Monteiro, a cerâmica da região, especialmente a da Ilha de Marajó e da região do Tapajós, são fontes de inspiração para a formação de seu estilo, com formas e cores características. Já Brecheret empregou as formas e curvas desestruturadas para representar figuras indígenas. São exemplos desta prática as esculturas Drama Marajoara (1951) e Drama Amazônico (1955).
As artistas mulheres ligadas à modernidade também recorreram aos atributos amazônicos. A obra Antropofagia (1929), de Tarsila do Amaral, não deixa de ser um registro do imaginário modernista que intencionou a criação de uma identidade brasileira. Outra obra de Tarsila, A Cuca (1924), embora não retrate diretamente a Amazônia, captura a exuberância da natureza tropical – aspecto característico da região. A série Amazônia (1943), de Maria Martins, é composta de um conjunto com textos de autoria da artista sobre cada um dos personagens criados ali: cobra grande, Iacy, boto, Iara, Iemanjá – nas esculturas surge a simbiose formal entre vegetais, animais e seres míticos.
Os mais variados modos de investigação sobre a Amazônia foram empregados por esses artistas. Alguns sustentaram suas ideias em estudos etnográficos, tais como O Selvagem, de José Vieira Couto de Magalhães, e Poranduba Amazonense, de Barbosa Rodrigues. Ou nos mitos taurepang e arekuna sobre Makunaimî, transcritos pelo antropólogo Theodor Koch-Grünberg, que inspiraram Mário de Andrade. Tem-se ainda o uso de compêndios, como o Dicionário Tupi-Guarani, do jesuíta Antonio Ruiz de Montoya. E, ainda, através de expedições, como as de Raul Bopp e Mário de Andrade.
A historiografia atual revê essas fontes de pesquisas. No Romantismo e no Modernismo, as referências indígenas vêm de fontes indiretas – “uma presença que se dá pela ausência”. Diversos estudos apontam o olhar do “outro” dessas produções sobre a população amazônica – em certo grau, uma interpretação ou apropriação; uma perspectiva externa e, por que não, eurocêntrica? Nada mais do que uma “brasilidade” construída a partir de parâmetros externos, incapaz de lidar com a diversidade da região. Nas artes, a imagem que prevalece é a do binômio natureza-índio – mesmo que seja uma “natureza” e um “índio” que apenas existem no campo das ideias. Prova disso é a invisibilidade de uma parcela da população amazônica: os negros. Mas, existem negros nesta região?
Sim. Historicamente, nos séculos 18 e 19, pessoas escravizadas de Vila Velha da Santíssima Trindade, atual Mato Grosso, deslocaram-se para as terras que, atualmente, integram o território de Rondônia. A partir de 1870, nos ciclos do ouro e da borracha, foi significativo o aumento da migração de pessoas negras para a Amazônia. Nas duas primeiras décadas do século 20, por exemplo, chegaram muitos afro-caribenhos, de Barbados e outras partes do Caribe, para trabalhar como mão de obra qualificada na construção da estrada de ferro Madeira-Mamoré, com mais de 360 quilômetros de extensão e inaugurada em agosto de 1912.
Então, entre a população negra amazônica, existem descendentes de africanos escravizados que se estabeleceram em comunidades autossuficientes, mas também afrodescendentes que se misturaram com povos indígenas e colonizadores europeus.
Nos dias atuais, manter a invisibilidade da “Amazônia negra” é desconsiderar a presença de 150 comunidades quilombolas das 3.500 existentes no Brasil, segundo a Fundação Palmares. É também desconsiderar redes formadas por mulheres negras do Amazonas, tais como a Rede Fulanas – Negras da Amazônia (NAB), a Casa Ninja Amazônia e Articulação de Organizações de Mulheres Negras (AMB) – todas engajadas na luta antirrascista e na defesa ambiental.
É evidente que o apagamento desta população amazônica não se resume ao imaginário constituído pela arte, mas também é algo empreitado pelas políticas e mídias nacionais e internacionais – como já mencionado – esconder os povos indígenas, os ribeirinhos e os negros e tornar a Amazônia “terra desabitada” é um projeto de dominação territorial.
Artistas da região têm revertido essa ideia: Berna Reale, conhecida por suas performances, aborda temas de violência, injustiça social e o momento sociopolítico contemporâneo; Denilson Baniwa, a partir de instalações, pinturas e performances, propõe a conexão entre os mundos indígenas e o ocidental. Para ele, a arte é instrumento de luta; Éder Oliveira tem em seu repertório a força dos retratos – o artista mostra as pessoas, a vida e a identidade cultural amazônica; e Laíza Ferreira trabalha as memórias ancestrais e a identidade, produzindo colagens e fotografias que mantêm vivas as tradições e histórias de sua comunidade.
Merece destaque Marcela Bonfim, que lida diretamente com a população negra com o seu projeto (Re)conhecendo a Amazônia Negra: povos, costumes e influências negras na floresta. Esse trabalho é uma profunda pesquisa sobre a presença e contribuição dos afrodescendentes na Amazônia, especialmente em Rondônia.
Por meio da fotografia, Bonfim registra a vida das comunidades quilombolas e afro-amazônicas. Suas imagens capturam o cotidiano, as tradições e a resistência cultural dessas comunidades, oferecendo uma nova perspectiva sobre a negritude na Amazônia. São fotografias de rituais em terreiros de candomblé, festejos religiosos, penitências etc. Seu trabalho não apenas enfatiza a riqueza cultural dos povos afrodescendentes na Amazônia, mas também propõe novas formas de enxergar o corpo negro, desafiando estereótipos e preconceitos.
Parece que a Amazônia, aos poucos, deixa de ser aquele lugar debatido e decidido por “gente de fora”. Artistas, preocupados com novas abordagens e temas que giram em torno das memórias, sustentabilidade e identidade cultural da região, surgem com narrativas que contam sobre si e seus habitantes.
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