Apontamentos do espanto na crise da covid-19

Neste texto de Cremilda Medina, professora titular da Escola de Comunicações e Artes da USP, uma leitura sensível e complexa da prática jornalística em tempos de pandemia

 26/06/2020 - Publicado há 4 anos     Atualizado: 29/06/2020 as 17:27
Imagem: Jornal da USP

Discutir jornalismo nunca é demais. O jornalismo é um dos pilares da democracia, a instituição que aponta, critica, debate os problemas e os desafios de uma sociedade. Se é essencial no dia a dia, em tempos normais, torna-se dramaticamente imprescindível em épocas de crise. Como a atual, em que uma pandemia capotou o modus vivendi global.

A jornalista Cremilda Medina, professora titular da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, debruçou-se com seu grupo de pesquisa, Epistemologia do Diálogo Social, “sobre os relatos, narrativas e comentários que vêm se sucedendo nas mídias” em relação à covid-19. O texto a seguir é uma importante contribuição acadêmica para o debate sobre o papel do jornalismo na superação deste angustiante e desafiante momento enfrentado por todos nós.

Luiz Roberto Serrano

Primeiro momento: o despertar dos espantos

Cremilda Medina, março/abril de 2020

Dedico estes apontamentos ao
jornalista Marcello Bittencourt,
amigo e profissional histórico da
Rádio USP, que nos deixou em
abril de 2020, vítima do
novo coronavírus.

Durante o período da quarentena provocada pelo novo coronavírus, a produção de pesquisa do grupo que coordeno – Epistemologia do Diálogo Social – não ficou em isolamento. Pelos meios digitais disponíveis, fizemos reuniões e escrevemos reflexões resultantes do acompanhamento dos relatos, narrativas e comentários que vêm se sucedendo nas mídias. O caderno de apontamentos epistemológicos que se segue está composto de três momentos: primeiro, observações que alinhei de março a abril de 2020; segundo, acréscimos de maio, escritos por dois orientandos de doutorado na USP, Gean Gonçalves e Carolina Klautau; terceiro, uma leitura cultural que fiz sobre os depoimentos de 129 jornalistas, publicados no portal Jornalistas & Companhia, no início de junho.

Trata-se de um caderno de apontamentos aberto, de indicação de tendências em processo no vale das incertezas e do provisório.

Volatilidade, incerteza, complexidade, ambiguidade – quatro variáveis epistemológicas que Paulo Roberto da Silva Gomes Filho (coronel de Cavalaria do Exército) captou de bibliografia internacional para analisar o atual momento em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, na edição de 25 de março de 2020. Li com total sintonia o conteúdo de cada uma dessas quatro noções que o autor vincula à interpretação da atual pandemia e aos desafios decisórios das sociedades em estresse perante a expansão implacável da doença coletiva.

Para o autor, a volatilidade se manifesta na extrema velocidade dos acontecimentos; a incerteza, desencadeada pela volatilidade, provoca uma pluralidade contraditória e complexa de decisões; o que, aumentando o grau de incertezas na complexidade, leva à ambiguidade de perspectivas, discordâncias e discrepâncias culturais. Esse um caldo maldito na produção de sentidos que regem os discursos e as ações práticas no enfrentamento da adversidade planetária.

Não imaginei que, em seminários do fim dos anos 1980, ao trazer à pauta epistemológica dos saberes científicos e dos saberes cotidianos os desafios da Era das Incertezas – sobretudo no que tange às estratégias da comunicação perante a pluralogia social – tivesse hoje a atualização de tal avalanche de interrogantes. Estas, que estavam presentes nas últimas décadas de teoria e prática do Saber Plural (ou do projeto de pesquisa iniciado em 1990 na Universidade de São Paulo, sob o título “O discurso fragmentalista da ciência e a crise de paradigmas”), enfrentavam comportamentos e concepções que partiam da leitura do real na perspectiva reducionista, ignorando os fatos indetermináveis e apostando em precisas determinações. Mas agora, mergulhados no temporal da incerteza, da complexidade e do imponderável, numa velocidade desabalada e numa ambiguidade de interpretações, a antiga crise de paradigmas atinge a dimensão da vida e da morte.

Seguem-se apontamentos do espanto, alimentado acima de tudo pela frustração da promessa humanística da racionalidade tanto na experiência cotidiana quanto na reflexão analítica ou nas informações factuais das narrativas da contemporaneidade:

1 – Acrescentaria às variáveis da complexidade e da ambiguidade, as recorrentes dicotomias simbólicas que leem o Real. Nesta crise, seja ao abordar momentos precursores, seja na atual emergência da calamidade planetária, é difícil encontrar interrogações ou reticências que ampliem o horizonte estrito de dois lados. Mesmo ao mobilizar a ajuda da ciência para diagnosticar esta ou aquela solução, raramente se colhem informações que ultrapassam a lógica dual do isto ou aquilo. A área médica, diante de prescrições múltiplas e incertas de medicamentos ou de vacinas possíveis tende a oferecer à opinião pública, via meios de comunicação social, alternativas por vezes dissonantes; a pesquisa biológica ora parece competir na rota de quem chega mais rápido à decifração do vírus, ora reconhece um percurso unitário (e solidário) dos pesquisadores que, humildemente, não estabelecem prazos para a vitória contra o desconhecido inimigo.

Em meio aos relatos que não aplacam a inquietude e o medo, ainda se encontram vozes científicas que ensaiam armar nexos complexos não só sobre a natureza do vírus como as circunstâncias socioculturais, as geopolíticas e as demografias em que o inimigo comum opera. Todos os dias, porém, repórteres, comentaristas e âncoras clamam pela voz científica mais reducionista que complexa, mais “didática”, persuasiva, do que reticente, aberta à recepção. Há momentos humanizados quando o médico e pesquisador se torna vítima da doença ou, no extremo, é mais um número nos óbitos: então, diante da impotência individualizada, a área médica afunda no espanto comum a todos os habitantes do planeta.

Nesse tumulto, também se convocam os matemáticos, requisitados para expor seus modelos da pandemia; estatísticas daí decorrentes repercutem nas entrevistas aos jornalistas, em geral, duas possibilidades. Novamente aparecem dicotomias de dados numéricos que oscilam na figuração de curvas em direção ao pico da montanha ou em direção ao planalto. (Os jornalistas lidam mal com as estatísticas e os técnicos que as formulam em modelos matemáticos também não conseguem apresentar múltiplas leituras da realidade epidemiológica que as abstrações numéricas tentam captar. E quando transpõem o campo positivista das afirmações, para lançar dúvidas, os repórteres não captam a humilde posição científica e repetem no dia seguinte a mesma expectativa de dados e gráficos assertivos, definitivos, o velho conceito de certo e errado e não da inserção dos dados em um contexto.)

Mergulhados no caos, os trabalhadores das frentes de saúde, pública ou privada, administram um estresse que se torna visível na comunicação coletiva também numa dicotomia: ou a ameaça anunciada de falta de equipamentos para cuidar dos infectados ou a ameaça à própria vida. Sujeitos plurais tanto nas especificidades profissionais quanto nas biografias, são reduzidos, na maioria das histórias, a um anonimato ou nomes ilustrativos sorteados para o elogio grupal de palmas ou para compor os trágicos números de óbitos. (Um dia, talvez, haverá tempo para a autoria mediadora e termos à disposição histórias de vida que simbolizem a densidade dos protagonistas sociais da pandemia. Por enquanto, aqui ou ali, se olhem rápidos perfis, sejam profissionais da saúde, registros dos que morrem vítimas da doença ou personagens do cotidiano à deriva.)

Em meio a esses quadros binários, em que a produção simbólica pende para um lado ou para o outro, quero ressalvar que se encontram fontes científicas e algumas autoridades de saúde com discursos complexos. Num tom mais moderado, sem elocução de superioridade ou agressividade, assumem a angústia diante dos desafios da experiência inusitada, da incerteza na pesquisa e do imponderável da doença não domada. Ao apresentar informações inconclusivas, a ciência atualizada expõe para aqueles que insistem no desejo do conhecimento definitivo e do conforto das certezas, uma dose gradual e muito educativa da natureza complexa dos fatos que nos cercam.

Já os jornalistas – comentaristas, âncoras ou repórteres -, com raras e destacadas exceções, lidam mal com aprendizado, no dia a dia, da pauta incerta no escuro da pandemia. Quem afunda nos acontecimentos, parece não se valer da noção de processo, dos conflitos a ele inerentes, da intrincada intercausalidade de forças que regem os fatos, deixando para trás o velho conceito de causa e efeito numa linearidade previsível.

2 – Na manifestação representantes políticos da sociedade ou na ação que desenvolvem sob a rubrica de políticas públicas, o discurso toma o rumo de sempre, como se a complexidade humana e de todos elementos naturais coubesse ou numa concepção única de um monólogo esquizofrênico ou na dicotomia situação/oposição. Há quanto tempo pesquisadores que nos inspiram no Projeto Plural, abordam a pluralidade, a diversidade, os múltiplos polos de abordagem da prática política contemporânea? Daniel Innerarity, um deles, reconhece a dificuldade para administrar politicamente os conflitos do dialogia ( da pluralogia, digo eu). Isso em situações de aparente normalidade, imagine-se no caos em que nos encontramos com a covid-19. Muitas palavras se dividem em dois campos e seus vocalizadores se acham certos para tentar fazer vingar o seu discurso.

O Brasil vive essa situação em torno do comando duplo em conflito de duas verdades: isolamento horizontal ou isolamento vertical como políticas opostas de dois extremos nas tentativas de enfrentamento da infecção. Se, no País, a dualidade vem sendo lida como um duelo entre saúde pública e economia, na Suécia e Dinamarca, são políticas opostas contra o vírus – “enquanto dinamarqueses adotam isolamento mais radical, suecos mantêm escolas, bares e restaurantes abertos” (matéria publicada no jornal O Estado de S. Paulo, na edição de 28 de março de 2020). Não é um espanto que dois países cuja separação são apenas oito quilômetros e uma ponte, tenham duas reações políticas opostas? E não é um espanto que em abril a Suécia, diante da expansão não controlada da doença, tenha que se reequacionar, reconhecendo como certa a estratégia que antes recusou?

3 – A gravidade das situações sociais, posta a nu perante a invasão indiferenciada do vírus, revela de modo cruel os saldos históricos da desigualdade humana – do saneamento à distribuição de qualquer ordem de riquezas acumuladas, da condição de trabalho à educação e à saúde coletiva. As imagens urbanas das sociedades mais desfavorecidas escancaram “comunidades” sem a estrutura comunitária tal qual a desenhou o mapa simbólico da civilização, na retórica das Luzes. Se no século passado se debatiam os fracassos da racionalidade iluminista, hoje, a humanidade de todas as latitudes – e penso sempre na África em primeiro lugar – que projeto se pode escrever para este abalado século XXI? Falo na África, porque quando, em Moçambique, ensaiava captar em seus escritores, como e o que sonhar naquela situação de miséria que minha experiência de repórter percebia, perguntei, em 1986, ao poeta Calane da Silva, se era possível sonhar nessa terra. Ele me respondeu:

ainda achas que temos sonhos
ainda achas que estamos vivos
não achas que nós, vivos,
estamos perdidos
pessoano não sou
venho do bairro limítrofe
onde a pólvora do mundo
conosco acabou

(Calane da Silva escreveu de improviso a reposta à minha pergunta num guardanapo, em Maputo, na noite de 20 de setembro de 1986.) Meu livro sobre os escritores africanos de língua portuguesa traz como epígrafe este poema e em sua homenagem formulei minha esperança no título, Sonha mamana África (1987). E agora, Calane, o que a “pólvora” do novo coronavírus fará?

4 – Reflexões, análises e diagnósticos, comportamentos culturais e propostas de educação higiênica coletiva, pinceladas de contextos dramáticos nos hospitais, nas filas da Caixa Econômica para retirar informações e auxílios emergenciais – eis imagens do desespero como nunca se viu perante a morte e o despejo dos anônimos, invisíveis, deserdados ou simplesmente infectados em valas comuns. Eis o espanto de uma história coletiva, nacional, grupal, individual.

Nunca a reportagem presencial foi tão requisitada para ensaiar narrativas dos limites humanos. A recepção, essa misteriosa, imprevisível recepção, ainda não se anestesiou perante o desfile da tragédia da impotência, mas enviou um recado ao Jornalismo clássico – notícia boa não é notícia –, reverteu essa afirmação técnica que tanto alimenta o denuncismo, e solicitou histórias de protagonistas exemplares, coletivos solidários, janelas de afirmação do humano ser que soltam a voz do apertamento emocional. E a reportagem, aqui e ali, tem ido ao encontro desse barco à deriva, aliás como sempre o fez a poética no Gesto da Arte desde que o Sapiens o registrou na pedra.

Questão que se coloca a boa parte dos comentaristas e de jovens jornalistas: como atuar numa produção simbólica assertiva em lugar de interrogativa? Como ensaiar a decifração de uma realidade cifrada, que escapa das lógicas pré-estabelecidas para diagnósticos e de prognósticos? Como observar o painel dos espantos sem a tentação única do simplório denuncismo? Como motivar a reversão de atitudes egocêntricas na prevenção, sem o tom arrogante de quem sabe das coisas? Como se deixar impregnar, pelos cinco sentidos, da experiência inquieta de perguntas sem respostas, da esperança e da dor no cotidiano dilacerado?

Imagem: LNNY Blog/Ilenia Tesoro

Segundo momento: acréscimos à reflexão

Inquietações que surgem

Gean Gonçalves, doutorando em Ciências da
Comunicação na ECA-USP, maio de 2020

Em Ato presencial, mistério e transformação (2016), Cremilda Medina, como autora, jornalista, pesquisadora e professora, defende a relevância para a comunicação e para a pedagogia da interação face a face, a experiência que integra os cincos sentidos, frente à euforia das relações à distância e dos suportes tecnológicos. A pandemia trouxe de fato o lembrete coletivo da importância do contato presencial, do convívio? Ou ela irá endossar ainda mais entrevistas e trocas de informação pela internet e pelo telefone no jornalismo e ampliará o sistema de ensino à distância?

A mortalidade, esse dano da doença, que o jornalismo enfrenta diariamente em outras pautas por meio da reflexão comunicacional de como narrar a tragédia, a morte e o luto, nesse momento, podem deixar novas propostas narrativas, estratégias de solidariedade? Enfrentamos o vício da estatística: dos gráficos que informam números em crescimento exponencia e números que não comunicam vidas perdidas. Mas há projetos como o Inumeráveis, um memorial dedicado à história de cada uma das vítimas do coronavírus no Brasil, que culminou na capa de O Globo do dia 10 de maio de 2020: “10 mil histórias. Evento mais letal no Brasil em 102 anos, pandemia da covid-19 chegou ontem oficialmente a 10.627 mortes. Para que a dimensão humana da tragédia não se perca na frieza das estatísticas, O Globo homenageia as vidas reunidas em um memorial virtual”.

Também fiquei inquieto com uma pergunta lançada pela BBC em uma reportagem intitulada “Coronavírus: por que países liderados por mulheres se destacam no combate à pandemia?” (BBC, 22 de abril de 2020). Longe de reduzir essa avaliação a uma questão biológica, ou cultural dos sexos, que a solução à crise está na imitação de políticas de outros contextos ou aferir que a questão de gênero resume quem tem mais eficiência, homens ou mulheres, há, no entanto, um componente de gênero (cultural) na condução da saúde: mulheres são 70% das profissionais da área no mundo. Poucas são as chefes de Estado no mundo (Islândia, Finlândia, Dinamarca, Alemanha, Nova Zelândia, são algumas), mas elas têm obtido resultados mais positivos. Isso revela, ao meu ver, que há pluralidade e outros afetos políticos, outros caminhos que elas levam mais em consideração: percebem distintos grupos com múltiplos graus de vulnerabilidade e não subestimam a gravidade da pandemia; adotam uma comunicação mais próxima e clara com a população, há mais solidariedade às pessoas atingidas pelos efeitos econômicos da pandemia. Em contraposição, as lideranças masculinas tendem a seguir estratégias semelhantes entre si e mais simplistas, com metáforas bélicas no enfrentamento dos dilemas da pandemia.

Caberia ainda pensar que fomos abalados pelas oscilações políticas de indignação, pelas ondas de desinformação, pelos acirrados discursos de ódio e de que algum modo, no momento, esses comportamentos culturais e midiáticos causam ainda mais nebulosidade sobre como iremos avançar nesse contexto? Se notícia boa não é notícia. Como dar importância as narrativas jornalísticas sem reforçar o véu positivista que cobre as principais atividades de imprensa no País: o valor da verdade, da imparcialidade ao reportar os fatos.

Só perguntas, mais perguntas

Carolina Klautau, doutoranda em
Ciências da Comunicação pela ECA-USP

Saber lidar com as incertezas é apontado por Edgar Morin como um dos sete saberes necessários à educação do futuro. A ideia é defendida pelo sociólogo francês no livro com este mesmo nome, publicado no Brasil em 2001. E quase vinte anos após a primeira edição da obra, a realidade nos coloca exatamente num lugar de que saber lidar com as incertezas é mais do que uma habilidade, mas uma questão de sobrevivência.

Mas, antes mesmo desta publicação, a noção e sua importância já vinham sendo tensionadas na Universidade de São Paulo, no início da década de 1990, pelo grupo de pesquisa “O discurso fragmentalista da ciência e a crise de paradigmas”, liderado por Cremilda Medina, e que gerou uma série de livros que fazem parte do projeto Saber Plural. Médicos, químicos, escritores, jornalistas, artistas, físicos e mais uma porção de outros pesquisadores, de diversas áreas do conhecimento, se reuniam para debater a crise dos modelos explicativos, a postura reducionista das formas de apreensão do mundo e o aprisionamento do conhecimento em disciplinas. Também ganhava destaque a problematização do determinismo e o caminho das incertezas, justamente, como uma via possível à tentativa de diminuir os fenômenos do mundo a uma postura de causa e efeito.

Das tantas aproximações entre o caminho percorrido pelos pensadores brasileiros (nos anos de 1990) e pelo sociólogo francês (no início dos anos 2000) está, justamente, o reconhecimento de que é preciso levar em consideração, lidar e incluir a incerteza como uma das respostas do mundo diante dos nossos questionamentos, angústias e ansiedades. Mundo este que é, ele mesmo, volátil, incerto, complexo e ambíguo.

Em “Apontamentos do espanto na crise covid-19” (2020), Cremilda Medina mobiliza algumas noções que já fazem parte de sua visão de mundo (ambiguidade, complexidade, pluralogia, signo da relação e a narrativa jornalística autoral), para tentar compreender as questões que se colocam diante dos nossos olhos, neste exato momento, e para refletir sobre como o jornalismo, como narrativa da contemporaneidade, tem lidado com o terreno pantanoso sobre o qual temos pisado diariamente.

Quando o isolamento social vai chegar ao fim? Teremos vacina? Quantas vítimas o coronavírus vai fazer no Brasil e no mundo? Quais políticas públicas serão desenvolvidas para que os estragos econômicos e sociais sejam minimizados? As empresas vão sobreviver? Nós, como espécie, vamos sobreviver? Não há, neste momento, respostas. Só perguntas. E muitas perguntas.

Em 2020, precisamos lidar com as incertezas de viver num período histórico que, a todo momento, nos confronta com o par de opostos complementares mais antigo de todos e que a mitologia, esse saber ancestral, não cansa de tentar articular: a tensão entre vida e morte. Vale ressaltar que não é exclusividade da segunda década do século XXI a convivência com as incertezas – mas é certo que ter a consciência de que está circulando por aí um vírus que já matou mais de 500 mil pessoas no mundo inteiro agrava, consideravelmente, a nossa situação como espécie e humanidade. Dito de outra forma, “agora, mergulhados no temporal da incerteza, da complexidade e do imponderável, numa velocidade desabalada e numa ambiguidade de interpretações, a antiga crise de paradigmas atinge a dimensão da vida e da morte“ (MEDINA, 2020).

Se existir já é um desafio travado cotidianamente, especialmente por aqueles trabalhadores que atuam nos serviços essenciais ou que estão na linha de frente de combate ao vírus, como narrar essa existência? Como ser jornalista, repórter, e falar sobre um assunto que possui mais interrogantes do que respostas? Para Medina, parece que ainda estamos longe de uma mirada complexa de toda a situação. Para ela, “mesmo ao mobilizar a ajuda da ciência para diagnosticar esta ou aquela solução, raramente se colhem informações que ultrapassam a lógica dual do isto ou aquilo”. Ou seja, nos afastamos dos opostos que se complementam e nos aproximamos da “descomplexificação” do real: a percepção do mundo sob um olhar dicotômico.

A dicotomia, por sua vez, não é fruto da falta de informações. Pelo contrário: parece que vivemos, também, uma pandemia de informações (o que já foi até chamado de infodemia), de dados, gráficos e estatísticas. Só que dados, gráficos e estatísticas sem contextualização pouco informam e orientam; eles nos deixam, na realidade, mergulhados em um ambiente caótico. Parece que a grande batalha particular do jornalismo não é a contra o vírus, mas contra a lógica positivista que ainda impera na tentativa de narrar o real – os sujeitos plurais, os protagonistas do cotidiano, as histórias de vida ficam relegadas ao segundo plano da narrativa, enquanto os números assumem a linha de frente. Só que números, mesmo que expressivos, não causam tanto espanto e sensibilidade quanto um nome, um rosto.

É por meio da articulação entre os números e as histórias de vida que o jornalismo pode tentar se aproximar da compreensão da complexidade na qual estamos mergulhados, assumindo, como os cientistas, uma postura de humildade, preferindo “lançar dúvidas” a atuar no “campo positivista das afirmações”. Quem diria que, um dia, a ciência poderia flertar mais com a incerteza do que o jornalismo que tem na própria incerteza, ela mesma, a sua matéria-prima? Sim, porque o que irrompe sem avisos e sem pedir licença no real é aquilo que o jornalismo narra – só lembrar de alguns dos valores-notícias da área.

Então, para onde correr? Para onde pode o jornalismo se voltar nesse momento em que pisamos em areias movediças? Para as histórias de vida e para as especificidades das biografias “que simbolizem a densidade dos protagonistas da saúde” (MEDINA, 2020). O olhar atento aos sujeitos plurais, a incorporação dos dados e a contextualização tem a chance de ser uma boa combinação para narrar, de forma complexa e sensível, nosso período.

Como atuar numa produção simbólica assertiva em lugar de interrogativa? Como ensaiar a decifração de uma realidade cifrada, que escapa das lógicas pré-estabelecidas para diagnósticos e de prognósticos? Como observar o painel dos espantos sem a tentação única do simplório denuncismo? Como motivar a reversão de atitudes egocêntricas na prevenção, sem o tom arrogante de quem sabe das coisas? Como se deixar impregnar, pelos cinco sentidos, da experiência inquieta de perguntas sem respostas, da esperança e da dor no cotidiano dilacerado? (MEDINA, 2000).

As perguntas que finalizam os “apontamentos do espanto” de Medina podem até continuar sem resposta, mas o caminho para tentar responde-las passa por uma possibilidade: a do exercício do signo da relação, da reportagem presencial. Caminho esse, aliás, que não é possível apenas em um contexto de pandemia causada pelo novo coronavírus, mas, sim, sempre que o jornalismo quiser tentar uma compreensão e não a explicação do real.

A relevância da presentificação dos corpos para a narrativa, inclusive, tem sido apontada por jovens jornalistas como uma das principais atitudes para a realização de uma reportagem complexa e que reconhece e centraliza o lugar dos protagonistas sociais do cotidiano no texto jornalístico. Essa visão foi possível após a realização de uma atividade na disciplina de reportagens especiais, do curso de Jornalismo, na Universidade Anhembi Morumbi. O exercício consistia em estudar uma grande reportagem e conversar com o repórter sobre seu processo de diálogo com personagens, escritas de texto, apuração, inspirações e dificuldades. Dos 15 jornalistas com quem os alunos conversaram, todos, sem exceção, situaram que suas melhores reportagens foram realizadas sob o signo da relação – quando se estabeleceu um encontro de corpos, permeado pelos cinco sentidos, em muito mais do que uma entrevista, um diálogo entre duas, ou mais, pessoas, com suas personalidades complexas.

Mas, voltando ao jornalismo inserido no contexto do espanto, ainda seguindo a linha da importância de ir ao encontro do Outro e dos cinco sentidos mobilizados para a narrativa, podemos encontrar respiros de repórteres que parece que conseguiram entender a importância das histórias de vida e como elas podem nos sensibilizar, muito mais, do que os números e gráficos descontextualizados.

O “bom exemplo” vem da Itália, escrito pelo repórter espanhol Daniel Verdú, dois dos países mais atingidos pelo vírus, para o portal El País. A publicação de março de 2020, já na manchete, pode sensibilizar o leitor: “Saída do confinamento na Itália cheia a café”. Mesmo quem nunca foi à Itália, tem a chance de ser impactado pela matéria. Basta, talvez, gostar de café e, é claro, de caminhar por aí.

Imagem: Reprodução

Terceiro momento: impressões coletivas

Cremilda Medina, junho de 2020

Foram necessárias duas semanas para ler e anotar as vertentes simbólicas nos depoimentos de 129 jornalistas brasileiros. Ação de grande significado do portal Jornalistas & Companhia, dirigido por Eduardo Ribeiro, a quem presto homenagem, a ele e sua equipe, por essa trabalhosa operação. Como estudiosa e profissional da comunicação social, não poderia perder a oportunidade de me debruçar sobre o pensamento coletivo de uma oportuna amostra de como se pensa o Jornalismo no País. Se a pandemia da covid-19 provocou este espaço de reflexão, em que, inclusive, me convidaram também a participar do conjunto de depoimentos, foi para mim muito rico anotar neste caderno de apontamentos tendências de leitura cultural do fenômeno social em que atuam jovens e velhos jornalistas, profissionais de várias regiões e de mídias, das tradicionais às da era digital no Brasil.

Alinho, a seguir, os principais temas dos 129 depoimentos, sem nomear autores, apenas alinhando posições acumuladas nas anotações que fiz de cada um. Um convite que reforço para o leitor do portal para ele próprio traçar seu itinerário. Da minha leitura cultural, sem pretender induzir a minha interpretação, alinhavo oito tendências nos depoimentos que responderam às duas questões propostas por Jornalistas & Companhia: que lições e qual o legado da atual experiência profissional na pandemia do novo coronavírus?

1 - Jornalismo sério, independente, fundamentado

A grande maioria dos profissionais que fizeram sua leitura da produção simbólica nas atuais práticas jornalísticas brasileiras, enalteceram o revigoramento dos valores tradicionais perante as ameaças das notícias falsas, distribuídas em redes sociais. Rigor na apuração, correção e compromisso com a sociedade têm atribuído credibilidade e aumentado a confiança na informação qualificada produzida por profissionais que prezam por sua autonomia e os princípios clássicos. Para esses, o Jornalismo tem mostrado força, na crise da pandemia, no confronto com a voz oficial e sobretudo nas frequentes hostilidades do governo Bolsonaro. Nesse sentido, a imprensa (lato senso) assume o papel histórico de ator em uma democracia. Para os profissionais, a informação sólida é a principal munição. Informação e análise, dizem alguns. Há os que apontam uma carência: sobra opinião e falta reportagem.

De qualquer forma, nas circunstâncias de difícil trânsito externo para a reportagem, os depoimentos salientam uma cobertura de porte auxiliada pelo aprendizado com a inteligência de dados. Também se observam as dificuldades para trabalhar com precisão no contexto de aceleração e acúmulo de informações que circulam nas infovias. Os mais eufóricos arriscam diagnosticar que esta é a melhor e mais completa ação do jornalismo brasileiro. Há até quem se sinta muito estimulado por esse indomável movimento que torna a expressão mais sedutora. Mas lá vem a tônica de grande parte destas vozes: acima de tudo, ética, conhecimento e experiência qualificam a informação jornalística. Por isso, há quem advogue o aprimoramento da investigação para que se diferencie do “lamaçal do mundo digital”. Ou que reconheçamos, o jornalismo na sua essência, uma atividade de baú de luxo em meio à whatsappização. Vence o tom positivo da profissão – afinal, afirmam, a população aprendeu com o Jornalismo a salvar vidas.

No âmbito mais particular, levanta-se uma questão: esses heróis de linha de frente irão ampliar a autonomia do jornalista? Outras perguntas frequentes: apurar, checar, rechecar sem sair de casa? No conflito com as fake News, ficará permanente outra interrogação do consumidor de informação – será que isso é verdade? Os mais antigos na profissão, que conhecem a resistência cultural e física em outras crises, reafirmam não dúvidas de mudança radical do fenômeno, mas a afirmação da chave essencial – a conquista da credibilidade ou a ideologia da verdade há de vencer.

Acréscimos espalhados ao longo dos 129 depoimentos: chega de jornalismo declaratório, atenção à informação regional, local, aprofundar a cobertura em saúde e ciência (meio abandonada nos últimos tempos), o Brasil das periferias e suas histórias merecem seu lugar nas narrativas da contemporaneidade.

2 - E as redações vão acabar?

Numerosos depoimentos ensaiam a avaliação de uma mudança importante – o trabalho remoto e o fim do jornalismo impresso marcarão a nova fase. Há dúvidas quanto essa transformação causada pelas circunstâncias atuais. As posições se multiplicam em três vetores: o grupo que alimenta a esperança de que o convívio da redação volte – tão importante para a discussão de pauta, as trocas de conteúdo e as relações humanas dos próprios profissionais -, ainda que, como em outras etapas históricas, as salas de redação possam encolher; o grupo entusiasta das tecnologias aposta na multiplicação de mídias digitais e o fim dos conglomerados tradicionais; e grupo que torce pelo equilíbrio entre as situações extremas e visualizem no futuro a possível a construção de modelos híbridos. Para os que defendem as clássicas salas de redação, é aí que o conteúdo se sobrepõe à forma, o planejamento e a edição à improvisação, o núcleo apurador na elaboração da notícia às fake news. Claro, nos tempos digitais, a edição requer mais velocidade, mais agilidade.

Para os produtores independentes de veículos alternativos, não há como fugir da força da internet. As publicações segmentadas enfrentam como não poderia deixar de ser a velha questão do jornalismo regido por princípios sólidos, porque já se desfez, segundo alguns analistas deste dossiê, a ilusão de democratização dos meios nas redes, que acabou em novas concentrações e na avalanche de notícias falsas. Por outro lado, parece que em tempos de isolamento e de trabalho remoto, há, para uma parte dos profissionais, a reafirmação da rua – o repórter em trabalho de campo não seria superado na coleta doméstica. “Parece que estou fazendo jornalismo em Marte”, queixa registrada em um depoimento.

Entre ganhos e perdas, mesmo para quem não é otimista, seremos, a partir da pandemia, menos propensos aos boatos das redes sociais. Deverá imperar também a diversidade de mensagens, de públicos. Rádio, televisão e webs consolidaram suas posições, mas, dizem os mais ponderados, editar será uma operação mais complexa que não se resolve só no home office. Alguns estrategistas consideram esta uma boa oportunidade de fidelizar os consumidores de informação jornalística, o que significa, no fundo, estar mais atento às demandas da cidadania. A criatividade desafiará os jovens desta profissão, tão reconhecida no momento. Se com o celular, a grande vedete, os profissionais se acham no centro da cena, uma jornalista experiente confessa em contraponto: ficamos menos valentes, destemidos, mais virtuais, menos pessoais. Outro jornalista da velha geração é sereno: nosso futuro é uma obra aberta.

3 - Ameaças no mercado de trabalho

Uma boa parte dos depoimentos acentuou a nova crise no mercado de trabalho; nova, porque ocasionalmente vem à tona esse crucial tema. Desta vez é para valer – muitos repórteres perderam o emprego. Além dos que foram vítimas da covid-19, adoeceram e morreram. Diante dos limites trágicos do exercício profissional do Jornalismo, afloram desejos e novas expectativas nos testemunhos:

  • – Junto com os profissionais da saúde, os do jornalismo ganham novas forças para lutar por seus direitos;
  • – As empresas, ao mesmo tempo que vão investir em tecnologia, tenderão a valorizar os trabalhadores da comunicação social;
  • – Haverá estímulo para empreendedores no jornalismo como em outras atividades do mercado na era pós-industrial;
  • – A retração econômica é um motor de criatividade;
  • – O reconhecimento e expansão de coletivos das periferias está em alta.
  • – Há um novo desafio: manter e expandir o número de pessoas dispostas a pagar pela informação de qualidade.
  • – Torna-se visível a necessidade de capacitar os novos profissionais na formação jornalística (os professores universitários da área sublinham essa emergência nos cursos tradicionais).
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Imagem: Pixabay

4 - Terceira, quarta guerra?

Os mais dramáticos apontam, nos depoimentos, a função do jornalista como correspondente de guerra. Várias guerras: os que olham para a História e as duas guerras mundiais do século XX, falam da terceira, a do novo coronavírus. Nessa pandemia, foi preciso deixar certas letargias, segundo a leitura dos que se remetem à atual Terceira Guerra Mundial. Por exemplo, abandonar a letargia do press-release, da informação oficial e seus bastidores, sair das mininotas, da visão rasa do mercadismo, não ter como omitir, pelo contrário escancarar, a desigualdade social, a exclusão e a invisibilidade humana. Em determinado diagnóstico, hoje só uma pequena parcela vocalizaria a opinião de aluguel. Nesse conflito, os correspondentes de guerra são alvos de ataque numa polarização entre jornalistas e poderes. Até o dia 15 de maio, dá conta um testemunho, a mais trágica consequência da guerra contra a covid-19 – 64 jornalistas morreram.

Mas ainda se aponta uma quarta guerra, a de uma classe profissional atuante, vibrante contra um governo obscuro. E tudo que compõe a luta contra a desinformação. Há, em particular, referências ao conflito com o Ministério da Saúde e os seguidos desencontros de informação técnico-científica. Os jornalistas que viveram os anos 1960-70 da ditadura militar, assombram os mais jovens com a atual ameaça à democracia. Nas três frentes dos confrontos – pandemia, economia e ataques do governo -, só mesmo a afirmação do velho e insuperável repórter guerra.

Num ato de contrição, um dos experientes profissionais escreve um rodapé: é preciso reconhecer um erro das coberturas jornalísticas pré-pandemia – o aparente desprezo pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Dada a importância (inclusive perante o quadro internacional desse serviço público), espera-se que a pauta do futuro continue acompanhando de perto as demandas do dia-a-dia das pessoas. Nesse mesmo depoimento, diante do panorama interminável da violência urbana que recheia as edições, lamenta o jornalista que a Arte esteja ausente.

5 - Na trilha dos serviços

Alguns jornalistas recuperaram o ancestral eixo de informações, aquelas que cumprem a prestação de serviços. Mas implícita à elegia da comunicação social nestes tempos de pandemia, há quem afirme, com convicção, que tal serviço público é movido pela força da sobrevivência. O bem público que o jornalismo presta mobiliza, no caso atual, as vozes dos especialistas, os dados disponíveis, estatísticas exemplificadas em histórias humanas e toda a gama de serviços voltados para comunidades locais, nacionais, bem como a articulação com o panorama internacional. Para certas reflexões, não se trata de simplesmente noticiar serviços, mas abordá-los com edição crítica. Não se entra em detalhes quanto a essa autoria articuladora das informações, a não ser a velha e repetida desconfiança perante a oferta oficial. A bem do equilíbrio entre trabalho de campo (reportagem de pautas generalistas ou especializadas) e a predominância de opiniões, comentários, editoriais, aparece a valorização dessa coluna vertebral jornalística – a prestação de serviços.

6 - Flashes da intimidade

Não são muitos os profissionais que se permitem, no dossiê coletivo, abrir o coração para os sentimentos pessoais. Aparecem então os registros da insegurança, da experiência de trabalhar no domínio das incertezas e até mesmo do medo de contágio e da morte. Embora as emoções sejam domadas pela coragem e a necessidade de vir à tona com equilíbrio no processo de trabalho, como evitar dúvidas atrozes: o jornalismo que pratico está estimulando ou não o pânico social? Ou como na radicalização que se vive hoje, trabalhar pelos consensos? Ou, no tsumani de informações, como resolver escolhas? Mas, além de ter de lidar com todas as inseguranças, afirma-se a lição de que outra vez é preciso aprender a trabalhar com os próprios medos e dores. Outra vez porque alguns, mais antigos na profissão, se remetem a outras “guerras” vividas na frente da batalha.

Entre as anotações de intimismo, destaca-se uma sobremaneira sutil que expressa três sentimentos à flor da pele. O primeiro, a descoberta de que o mistério existe; o segundo, que a verdade está em discussão, o que não é confortável para os que vivem de certezas; e o terceiro, o paradoxo da solidão no isolamento e, ao mesmo tempo, a conexão com uma grande teia de solidariedade. E a propósito deste distanciamento físico, há um depoimento que lembra a história do jornalismo brasileiro. O primeiro jornal (1808), editado por Hipólito da Costa no exílio em Londres, chegava aos leitores brasileiros.

Imagem: Pixabay

7 - E por falar em história...

Há uns poucos audaciosos que entendem a presença atual do jornalismo com um novo capítulo da História do Brasil. Expõem as seguintes tendências que dariam substância à afirmação:

  • – Aprender a lidar com o conhecimento plural;
  • – Revalorizar as instituições;
  • – Desenvolver empreendimentos jornalísticos mais sólidos;
  • –  Praticar o jornalismo reconhecido como esfera pública, não como fábrica de notícias;
  • – Reduzir o impacto disfuncional das redes sociais;
  • – Exercer um papel mais agudo no debate e ambiente político do País.
  •  
  • Neste novo capítulo analisado por um profissional, outro lhe apõe um contraponto, um único erro histórico: exibir por demais Jair Bolsonaro…

8 - Linguagem, conhecimento do conhecimento (epistemologia)

Todos os sete itens aqui propostos como tendências temáticas são muito significativos para quem estuda o Jornalismo, seja na universidade (graduação e pós-graduação) seja na ação jornalística dos que estão em campo e se preocupam em aprimorar suas práticas profissionais. No entanto, chego agora a anotações muito próximas da reflexão epistemológica da linguagem jornalística e seus desafios atuais, manifestos na cobertura da pandemia ou projetados para o período pós-pandemia.

Uma observação preliminar sobre a linguagem está registrada em alguns depoimentos: em se tratando de informações urgentes, vale mudar o critério de esmero na forma e prevalecem os conteúdos. Por exemplo, imagens imperfeitas de celular ou de ambientes não produzidos para ir ao ar na televisão. O que dispensa a edição jornalística dos enquadramentos formais sedutores, mas, em compensação, veicula mensagens dramáticas da circunstância humana na pandemia.

Vale também outra emergência na comunicação social: o deslocamento das fontes que usualmente se fazem representar nos meios de comunicação para as periferias de exclusão ou invisibilidade raramente abordadas nas mídias tradicionais. Indica-se aí um rumo social da cobertura jornalística há debatido na teoria, mas longe da pauta cotidiana. No fundo, o antigo apelo, sair dos microfones oficiais para a voz dos que não são ouvidos.

O jornalismo desumanizado, por falta de reportagem, também comparece como condição de narrar histórias de vida dos doentes, dos profissionais de saúde, dos inúmeros trabalhadores que não tiveram chance de fazer quarentena. Ver a vida acontecer, no cotidiano ora trágico, ora comum, ora lúdico sempre foi o eixo vibrante do protagonismo social (e anônimo) no jornalismo. (O que, aliás, as variadas expressões da Arte também atestam nos personagens de suas narrativas.)

É nesse cotidiano do humano ser (verbo intransitivo, não humilde verbo da voz passiva), que se descortinam os contextos coletivos para ampliar visões parciais e também aí eleger uma investigação com fontes especializadas que possam abrir a lente particular para diagnósticos e prognósticos de dimensão coletiva.

Mas para essa narrativa polifônica e polissêmica, é preciso sensibilidade (empatia) e complexidade (rigor racional), o que parece denotar, segundo alguns pensadores aqui reunidos, uma mudança de percepção e disponibilidade para mudar comportamentos reducionistas ou autoritários. Na metáfora usada por desses analistas, um olhar caolho que apenas capta um dos lados da história e dos protagonistas, olhar esse movido pelo pensamento único e pelo conforto das certezas.

A solução apontada nestas considerações não aporta nem nas facilidades tecnológicas, nem nas habilidades técnicas de um profissional multimídia. Para transitar no mundo das desigualdades sociais, das carências absurdas de saneamento básico ou de educação, para reconhecer os mapas complexos do local, regional, nacional ou global, o aparato de captação tranca nas mentalidades assentadas numa formatação de rotina.
Indicam alguns que é na rua que o filtro jornalístico aprende a lidar com incertezas, inseguranças, conflito de verdades e coragem nos enfrentamentos. Da viagem no mundo e dos encontros/desencontros com os parceiros contemporâneos surgem pautas renovadoras. Mesmo no mar de informações (tsumani, como foi nomeado por um dos jornalistas no dossiê), a autoria criativa descobre sua narrativa no calor dos acontecimentos. Viver é editar e quem vive com o radar fino e empático da captação, poderá filtrar com sensibilidade complexa, nunca com perfeição, mas em sintonia com a voz íntima da ética possível.

Há quem acuse a formação universitária de ser por demais teórica e pouco prática. A pesquisa que detecta deficiências pedagógicas, porém, não se limita a essa dicotomia, uma vez que em se tratando de mudança de mentalidades e comportamentos, tanto precisamos de reflexão para inspirar práticas e das práticas se extraem as questões para a reflexão. Mesmo na loucura da atual crise, os profissionais param e tiram da agitação incontida ou do isolamento depressivo, interrogantes sobre o Jornalismo. Mesmo porque está mais do que nunca evidente a sobrevivência profissional associada a uma marca. Pode até ser um lance de marketing, no entanto, um professor prediz para os novos alunos da profissão: já no segundo dia da faculdade, deve assumir o desafio de repórter e de autor.

Curioso que, entre essas considerações, duas chamam a atenção na epistemologia do jornalismo: a marca autoral dos profissionais depende da aprovação da sociedade, não um desejo vaidoso de se diferenciar; depois, quem garante que as boas intenções do autor chegarão para convencer as audiências coletivas ou as tribos digitais? (Tenho pra mim que recepção é mistério, por mais que se tracem metodologias de pesquisa para a quantificar e qualificar.)

A oitava parte deste itinerário temático tem o arremate que cola com a primeira, o novo jornalismo não seria a redescoberta do antigo? E lá vêm os faróis iluminados ao longo da história: rigor na apuração; zelo na linguagem; compromisso com o interesse público, defesa inegociável da democracia. Para um dos profissionais, o que se resume na boa e velha reportagem.

Não poderia encerrar esta leitura cultural sem referir o fecho em verso que Assis Ângelo escreveu para a edição especial de Jornalistas & Companhia. Não há companhia mais oportuna do que a produção poética de raiz brasileira, o cordel, para espelhar o imaginário coletivo. Junto com arte de tecer o presente na reportagem, o gesto da arte amplia a sensibilidade perante o Real. Assis Ângelo expande os ecos dos 129 jornalistas ao lhes dedicar um selo histórico:

Faz se importante dizer
Que num mundo sem imprensa
Seria difícil viver
Difícil também seria
Crer no homem como um ser

Ao longo dos versos, o autor vai rimando tempos míticos com o tempo da pandemia e o leitor navega da transcendência cultural às amargas circunstâncias da Covid 19. Mas o pano de fundo do jornalismo não sai de cartaz, insistindo no ato de reportar que, por altruísmo, supera o ódio e o radicalismo. Neste capítulo, o cordelista ataca de frente episódios do governo Jair Bolsonaro. Um diagnóstico cru: “Que bicho tem na cabeça?/ Um vírus doido, sem cura”.

Após a catilinária de opinião política, o cordel de Assis ngelo volta à elegia de profissionais, daqueles que fazem a história do jornalismo brasileiro. E numa justa homenagem dedica a palavra rimada àqueles que fazem parte desta edição especial de junho de 2020:

Estes tempos terríveis
De horror de pandemia
De luta contra a morte
De dor, de agonia
Aqueles que podem leiam
Jornalistas & Companhia

No fecho do dossiê, o jornalista que dirige o Portal ainda nos reservaria uma surpresa lúdica. (Salve: o gesto lúdico da arte é um ato emancipatório no caos da História.) Eduardo Ribeiro responde à homenagem de Assis a ele e ao editor executivo Wilson Baroncelli no canto do cordel:

Assis é amigo querido
Da Paraíba um talento
Pra São Paulo se mudou
Buscando o seu sustento
Aqui construiu a vida
Com garra de grande rebento

Baron é pra ele Barão
Edu sou eu com orgulho
Brincar de cordel com Assis
É música, não um barulho
Um lindo salto no céu
No mar um doce mergulho


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