Um arquiteto que sonhou a cidade para os cidadãos

Livro da Editora da USP traz textos de e sobre Rodrigo Lefèvre, que criticou o desenvolvimentismo na arquitetura

 03/10/2019 - Publicado há 5 anos
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Casa de Thomas Farkas, projeto de Rodrigo Lefèvre, em coautoria com o arquiteto Ronaldo Duschenes e colaboração do arquiteto Félix Alves Araújo – Foto: Reprodução/Arquitetura Moderna Brasileira – Edusp

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“Rodrigo era um jovem aos 46 anos. Foi para a África tentar realizar um sonho cuja realização era impossível no Brasil. Largou tudo para seguir uma ideia, já tinha feito isso antes. Desafiou o silencio imposto pelo regime militar em 1969. Foi calado. Ficou preso durante um ano.

Acho que era um cara teimoso que não se conformava com a sujeição, com a alienação e com essa morte em vida que nos impuseram e que nos impede de realizar nossos sonhos, aparentemente tão simples como transformar em escola uma faculdade de Arquitetura.

Rodrigo alimentava sonhos que envolviam o coletivo geralmente. Seria tão mais fácil se ele sonhasse com uma nova marca de carro ou com um prêmio na anual do IAB (Instituto de Arquitetos do Brasil).”

Nesses parágrafos, a professora Hermínia Maricato, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, sintetiza a trajetória de Rodrigo Lefèvre (1938-1984). O texto, publicado em julho de 1984, é citado em Arquitetura Moderna Brasileira – Uma Crise em Desenvolvimento, lançado pela Editora da USP (Edusp). O livro reúne textos de Rodrigo Lefèvre, com a organização da professora Ana Paula Koury, da Universidade São Judas, em São Paulo, doutorada pela FAU e pós-doutora pelo Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP.

“’Uma Crise em Desenvolvimento’ é o título que foi dado por Rodrigo Lefèvre a um artigo que escreveu em 1966, questionando a positividade do desenvolvimento brasileiro”, explica Ana. “Expressa a crítica ao desenvolvimentismo, elemento essencial para a compreensão do legado de Lefèvre à cultura arquitetônica e urbanística brasileira.”

Ana Koury organizou o volume de 456 páginas em três partes. A primeira traz a trajetória de Lefèvre, com informações dos currículos guardados em seu acervo pessoal integrado à biblioteca da FAU e também das teses e dissertações de Miguel Buzzar e Humberto Pio Guimaraes. A segunda parte traz os textos que Lefèvre escreveu. Foram organizados segundo temas que abordam a polêmica sobre o desenvolvimento; ensino e profissão; urbanismo; e o que foi nomeado de utopia. A terceira parte reúne artigos que fazem referências a textos de Lefèvre e obras escritas sobre ele.

“Muito se acusou Rodrigo Lefèvre e a sua geração pela crise da arquitetura ou ‘por terem trocado a pena pelo fuzil’, em referência ao seu engajamento na luta armada.”

 

Casa Pery Campos, projetada por Rodrigo Lefèvre: destaque para a abóbada – Foto: Reprodução/Arquitetura Moderna Brasileira – Edusp

 

Ana Paula Koury reuniu o material com critério e cuidado. Ela propõe uma reflexão sobre as principais perguntas que orientaram a seleção dos textos apresentados. “Qual o lugar de Rodrigo Lefèvre na história da arquitetura brasileira? Qual o seu legado como professor das várias escolas em que lecionou? Em que medida sua arquitetura e suas ideias permaneceram?” Ela observa: “Muito se acusou Rodrigo Lefèvre e a sua geração pela crise da arquitetura ou por terem ‘trocado a pena pelo fuzil’, em referência ao seu engajamento na luta armada e ao suposto abandono da prática de projeto”.

Rodrigo Brotero Lefèvre nasceu em São Paulo no dia 9 de fevereiro de 1938. Começou a lecionar na FAU logo depois de se graduar, em 1962. “A retomada de seu legado contribui para uma aproximação histórica mais consistente ao projeto moderno das vanguardas brasileiras e à sua crise na contemporaneidade”, explica Ana. “Como professor, teve uma preocupação pedagógica que é recorrente em seus textos sobre ensino. Para ele, a autonomia do aluno era uma estratégia fundamental para alcançar a inovação tecnológica e social na arquitetura. Preocupado em formar agentes de transformação, e não um séquito de admiradores, parece ter sido capaz de ambas as coisas. Suas contribuições para as gerações seguintes foram muitas. Ativo na organização do Sindicato dos Arquitetos, formou uma geração de arquitetos urbanistas engajados com a construção de canais institucionais e que tiveram um papel estratégico durante a redemocratização do País”. Em 1983, Lefèvre deixa a sua atividade docente na FAU para trabalhar na implantação de um projeto de formação de pessoal e de gestão de serviços de saúde em Guiné-Bissau, na África. Morreu um ano depois, vítima de um acidente automobilístico ocorrido naquele país.

“Enquanto isso, em cada lugar, os grupos que mantêm o monopólio das posições do poder político e social, cada vez mais, atuam não só no sentido de manutenção de estruturas anômalas, mas também no sentido de propor transformações mistificadoras que só na aparência correspondem à demanda do processo de democratização.”

O artigo “Uma Crise em Desenvolvimento”, de Lefèvre, traz reflexões que se ajustam ao Brasil de hoje. O leitor é conduzido aos valores da arquitetura em prol da coletividade. Começa o texto assinalando: “De uma estrutura social estratificada, determinada por valores relativos à posse da terra e à posição na hierarquia social – atribuídos aos homens pela tradição –, o capitalismo aparece dinamizando-a ao permitir certa e relativa mobilidade na escala social com base na disputa dos bens de produção, estabelecendo um novo sistema de valores ao acondicionar uma nova estratificação à divisão social do trabalho. Em ambas as estruturas os valores – mercadoria, preço, dinheiro, etc. – aparecem de forma reificada, ocultando a essência de relações entre os homens.”

O livro lançado pela Editora da USP (Edusp) – Foto: Reprodução

Neste artigo, o professor da FAU, que atuou com Sérgio Ferro e Flávio Império, assevera: “Enquanto isso, em cada lugar, os grupos que mantêm o monopólio das posições do poder político e social, cada vez mais, atuam não só no sentido de manutenção de estruturas anômalas, mas também, e quando se faz necessário pelo acúmulo de pressões sociais, no sentido de propor transformações mistificadoras que só na aparência correspondem à demanda do processo de democratização”. Lefèvre observa: “Enquanto as propostas de atendimento concernentes à arquitetura não forem com esse mesmo sentido mistificador, os arquitetos serão progressivamente excluídos da vida pública.”

Nas suas páginas finais, o livro traz fotografias de projetos de autoria de Lefèvre – como a Casa Pery Ramos, em que se destaca uma cobertura em forma parabólica, e a Casa Thomaz Farkas, na Praia de Pernambuco, no Guarujá (SP) -, mas o leitor pode se ressentir da falta de uma imagem do arquiteto.

Arquitetura Moderna Brasileira – Uma Crise em Desenvolvimento, textos de Rodrigo Lefèvre e organização de Ana Paula Koury, Editora da USP (Edusp), 456 páginas, R$ 48,00.


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