Resposta imune ajuda a identificar bactéria que causa problema renal

Intensidade da reação de células do intestino pode servir de marcador para bactéria que produz toxina

 04/10/2019 - Publicado há 5 anos
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Microscopia eletrônica mostra microvilosidades intestinais com a bactéria STEC EH41, que pode chegar aos seres humanos por meio da carne bovina e romper a barreira do intestino, alcançando o sangue e podendo provocar complicações nos rins – Foto: Reprodução / Revista Microorganisms

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Algumas bactérias da espécie Escherichia coli, causadora de diarreia, produzem uma toxina chamada Shiga, que ao chegar ao sangue é responsável por graves problemas nos rins. No entanto, nem todas essas bactérias, que podem chegar aos seres humanos por meio da carne bovina, causam esse tipo de complicação. As razões da diferença foram pesquisadas pela Faculdade de Medicina da USP (FMUSP). O estudo analisou a resposta imune das células do intestino (enterócitos) e comprovou que algumas bactérias possuem genes que provocam uma reação tão rápida e intensa que lesiona os enterócitos, facilitando a chegada da toxina ao sangue. Os resultados da pesquisa ajudarão a aprimorar a identificação da bactéria pela vigilância sanitária e epidemiológica.

O trabalho, descrito em artigo da revista científica Microorganisms no mês de julho, teve a colaboração de pesquisadores do Instituto de Física de São Carlos (IFSC) e do Instituto de Matemática e Estatística (IME) da USP. “As bactérias Escherichia coli que produzem a toxina Shiga são chamadas de STEC e em geral são associadas à diarreia, mas também podem causar Síndrome Hemolítico-Urêmica (SHU), quando a toxina atravessa a barreira intestinal, entra na corrente sanguínea e acaba por causar lesão renal e insuficiência renal”, relata o professor Carlos Alberto Moreira Filho, do Departamento de Pediatria da FMUSP, que coordena a pesquisa. “Crianças com menos de cinco anos são o grupo com maior risco de desenvolver a síndrome.”

Silvia Yumi Bando: reservatório natural de bactérias STEC são carne e fezes de bovinos, o que torna detecção essencial para vigilância sanitária – Foto: Jorge Maruta / USP Imagens

O reservatório natural das bactérias STEC são a carne e as fezes de bovinos, o que torna sua detecção essencial para a vigilância sanitária.

“No Brasil, já foi identificado um sorotipo de STEC (O113:H21), que não foi encontrado em pacientes com SHU”, explica a pesquisadora Silvia Yumi Bando, primeira autora do artigo sobre a pesquisa. “Entretanto, na Argentina, Estados Unidos, Austrália e Japão, além de países da Europa, esse mesmo sorotipo está associado à síndrome”.

Os pesquisadores compararam os genes da O113:H21 isolada no Brasil (Ec472/01) com os da bactéria identificada em um paciente na Austrália (EH41). Eles constataram que a Ec472/01 não expressa o gene dicA, um regulador de virulência (ou seja, da capacidade do vírus se multiplicar e provocar doenças), e que promove a expressão de outros genes, associados à ocorrência da SHU, na bactéria EH41.

A diferença no repertório genético entre duas bactérias da mesma espécie levou os cientistas a pesquisarem qual a resposta das células superficiais do intestino delgado (enterócitos) à presença de cada uma delas. “Como as bactérias causam diarreia, seu ambiente é o intestino, ao qual precisam aderir para criar colônias. Assim, a toxina é transportada através da corrente sanguínea até os rins, podendo causar SHU”, relata Silvia. “Os enterócitos possuem microvilosidades, que formam uma espécie de ‘tapete’ para facilitar a absorção de nutrientes pelo intestino. Elas são o primeiro lugar onde as bactérias se fixam.”

Alterações genéticas

Na esquerda, imagens de microscopia eletrônica das alterações nas células do intestino (enterócitos) e destruição das microvilosidades intestinais após três horas de interação entre enterócitos e bactérias STEC. Na direita, análise temporal das redes de coexpressão gênica dos enterócitos, que variam em intervalos de 15 minutos, durante interação com bactéria. Clique na imagem para ampliar – Imagem: Cedida pelos pesquisadores

Os experimentos com as bactérias foram realizados em laboratório, em culturas de células derivadas do intestino humano, conhecidas como Caco-2. “Elas imitam as microvilosidades para reproduzir o microambiente intestinal”, aponta a pesquisadora. As bactérias são colocadas no meio de cultura e durante três horas é analisado se elas aderem às microvilosidades e as destroem para formar colônias. “No final do ensaio, a bactéria que causa a síndrome levou os enterócitos a alterações genéticas mais rápidas, inflamação e morte (apoptose), enquanto a que não causa a síndrome provocou menos alterações, principalmente na estrutura das células (citoesqueleto) e uma resposta imune moderada.”

Para avaliar de modo detalhado as mudanças nos enterócitos, foram usadas as técnicas de microscopia eletrônica, para verificar as características externas (fenotípicas), e a análise temporal da rede de expressão gênica global (transcriptoma), que identifica as diferenças em nível molecular. “A microscopia revelou que a bactéria EH41 causa uma destruição muito mais intensa das microvilosidades”, aponta o professor Moreira. A análise do transcriptoma mostrou que as interações entre os genes dos enterócitos, em resposta à bactéria, mudavam a cada 15 minutos. “Em apenas uma hora de exposição, já havia um padrão de resposta inflamatória e de morte celular. Em resumo, a EH41 leva a uma resposta diferente dos enterócitos, provavelmente devido à sua maior virulência e patogenicidade.”

A análise genética dos enterócitos foi feita por meio da visualização em 3D das redes de expressão gênica, realizada por um software desenvolvido no IFSC pelo professor Luciano da Fontoura Costa e o pesquisador Filipi Nascimento Silva. Também foi realizada a identificação dos genes associados aos diferentes intervalos de resposta às duas bactérias. A criação dos modelos matemáticos adotados na pesquisa teve a colaboração do professor Roberto Marcondes César Junior, do IME, por meio de um projeto temático da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), na área de ciências da computação.

“Normalmente, são usados algoritmos (fórmulas matemáticas) de aprendizado de máquinas, que são abastecidos com dados para ‘aprender’ a fazer a identificação”, aponta o professor do IME. No estudo realizado pela FMUSP, foram usados dados de expressão gênica (transcriptômica). “No entanto, os dados existentes não eram suficientes. Assim, foi preciso estudar o problema com especialistas e desenvolver um modelo matemático que compense a falta de dados e permita fazer a visualização científica, ou seja, interpretar os resultados dos experimentos.”

Professor Roberto Marcondes César Júnior: estudo desenvolveu modelo matemático para interpretar resultados dos experimentos – Foto: Jorge Maruta / USP Imagens

O professor Moreira ressalta que a pesquisa atesta a importância do estudo dos fatores ambientais que influenciam a virulência das bactérias STEC, inclusive a passagem pelo trato digestivo bovino e humano. “Os resultados abrem perspectivas para identificar novos marcadores moleculares de virulência e patogenicidade das bactérias, que serão úteis para a vigilância epidemiológica”, destaca. “Além disso, as conclusões da pesquisa ajudarão a entender os mecanismos de indução de resposta imune que podem levar a condições graves, como a SHU.”

 

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Mais informações: e-mail carlos.moreira@hc.fm.usp.br, com o professor Carlos Alberto Moreira Filho, e silviayumibando@gmail.com, com Silvia Yumi Bando


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