usp_o.php Revista USP 117 – Dossiê 6: E la nave va: Fifa, CBF e o Brasil sob a tempestade política – Jornal da USP

Foto: Ivo Gonçalves/PMPA – Flickr CC

E la nave va:
Fifa, CBF e o Brasil sob a tempestade política

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Flavio de Campos
Luiz Guilherme Burlamaqui

resumo

O ensaio tem como objetivo comparar as recentes crises políticas da Fifa e da CBF relacionando-as à crise política que culminou com o golpe jurídico-parlamentar que destituiu Dilma Rousseff da presidência da República em 2016. Com esse intuito, o texto procurou se debruçar sobre as denúncias de corrupção e lavagem de dinheiro, delações e prisões de autoridades e os desdobramentos e abalos às estruturas de poder das duas entidades organizadoras do futebol.

Palavras-chave: futebol; Fifa; CBF; crise política.

abstract

This essay seeks to compare the recent political crises involving FIFA and the Brazilian Football Confederation (CBF), linking them to the political crisis which led to the legal-parliamentary coup which ousted Dilma Rousseff from presidency in 2016. With that goal, this text seeks to address reports of corruption and money laundering, whistle-blowing and authorities being arrested; and the developments and the shockwaves in the power structures of those two soccer governing entities.

Keywords: soccer; FIFA, CBF; political crisis.

Em outubro de 2015, o suíço Joseph Blatter renunciou à presidência da Fifa quatro dias após ser reeleito, pela quinta vez consecutiva, por ampla maioria no Congresso da Fifa. Às vésperas do Congresso, vários de seus aliados de longa data, como Jack Warner e Jeffrey Webb, de Trinidad e Tobago e das Ilhas Cayman (Concacaf – Confederação de Futebol da América do Norte, Central e Caribe), Chuck Blazer, dos Estados Unidos, e o paraguaio Nicolas Leoz, foram acusados ou presos pelo FBI em uma ação quase hollywoodiana. À sequência das prisões do FBI, seguiu-se o golpe econômico. McDonald’s, Visa e Coca-Cola assinaram um documento exigindo a saída do presidente, ameaçando cortar o financiamento da Fifa. Sem sustentação política ou econômica, restou a Blatter a renúncia, a fim de evitar ao menos que as acusações e as investigações avançassem sobre a sua figura.

Comandada pelo FBI, a principal investigação diz respeito ao pagamento de propina e suborno nos contratos entre empresas e cartolas. Tal processo investigativo foi possível graças a uma lei criada em 1977 pelo governo Jimmy Carter – a foreign corrupt practice act – que permitiu à justiça americana investigar e legislar as empresas estadunidenses off-shore, ou seja, fora dos limites físicos do território dos Estados Unidos, ou ainda agentes internacionais, que se valeram do sistema bancário dos Estados Unidos para receber suborno ou propina. Via de regra, as propinas incidiam sob os direitos de transmissão. Graças à intermediação das empresas de marketing, os dirigentes favoreceriam determinados grupos empresariais. Boa parte do que deveria ser arrecadado por essas entidades terminava nas mãos dos dirigentes de futebol latino e centro-americanos. Assim, os chamados direitos de transmissão – isto é, o direito que as empresas de comunicação pagam às federações pela possibilidade de transmitir os campeonatos nacionais – estão no centro da investigação. Muitos dos campeonatos que assistimos de forma rotineira – como a Copa do Brasil, a Copa do Mundo e a Copa América – foram alvos de investigação. Os valores dos contratos de direitos de transmissão eram pagos às empresas de marketing esportivo – como a Traffic, de J. Hawilla –, que, por sua vez, eram as responsáveis pelo repasse do “suborno” aos dirigentes.

Não seria exagero dizer que a crise institucional da Fifa desatou uma rede política longeva, construída em 1974 com a eleição do brasileiro João Havelange à sua presidência. Vista por muitos acadêmicos e jornalistas como um evento único na história das organizações esportivas internacionais, a eleição de Havelange marca a ascensão do primeiro presidente não europeu à Fifa. Para a literatura, essa eleição tem sido seguidamente descrita como uma espécie de rebelião do sul global contra a hegemonia europeia (Dietschy, 2013, pp. 279-98.) Na vitória contra o inglês Stanley Rous, Havelange sagrara-se com a ampla maioria dos votos da África, do Oriente Médio, da América do Sul e do Caribe. Aqui, é importante dizer que o sistema político jurídico da Fifa, amplamente baseado no princípio liberal de que todos são iguais perante a lei, reconhece a igualdade jurídica dos membros, estabelecendo um voto por país dentro do Congresso da Fifa. Reunido bianualmente, o Congresso da Fifa é órgão soberano da entidade, responsável por eleger o presidente, alterar os estatutos, formar os comitês, etc. Por conta dessa estrutura jurídico-política, Havelange conseguiu ser eleito com os votos das nações periféricas, algo que seria virtualmente impossível em instituições análogas, como a Federação Internacional de Atletismo (IAAF) ou mesmo o Comitê Olímpico Internacional (COI).

À época, a Fifa atravessava grave crise política internacional. É quase consenso de que o final da década de 1960 marca o primeiro momento em que a questão dos direitos humanos emerge como problema na esfera pública internacional. Organizados ao menos desde 1968, os países africanos começaram a boicotar de forma sistemática as competições esportivas internacionais que incluíssem a África do Sul. Embora suspensa desde 1961 pelo Congresso, o Comitê Executivo da Fifa se mostrava reiteradamente ambíguo em relação à questão do apartheid, flertando com a readmissão da África do Sul à entidade no começo da década de 1970. Essa política de boa-vizinhança é diametralmente oposta quando se observa a atitude do Comitê Executivo diante do problema da República Popular da China. Esta, por sua vez, havia se retirado da entidade em 1958 e, a partir de 1971, começara a ensaiar um retorno. Amparado nos Estatutos da Fifa, o Comitê Executivo proibiu a qualquer membro afiliado o direito de realizar partidas contra clubes ou a seleção nacional da China. Em 1973, o estopim da crise foi a obrigatoriedade da realização do jogo entre Chile e União Soviética no Estádio Nacional, poucas semanas após o golpe de Augusto Pinochet, quando o estádio era ainda palco de tortura e execuções sumárias. Esse episódio levou a uma reação pública da sociedade civil contra a decisão da Fifa.

Havelange não hesitou, ainda que à revelia do governo brasileiro, em se posicionar de forma abertamente contrária ao apartheid na África do Sul e a favor do retorno da República Popular da China à Fifa. Mais do que isso, a plataforma eleitoral de Havelange trazia consigo a promessa de um novo mundo. No centro de sua proposta, estavam os chamados programas de desenvolvimento técnico, que haviam sido criados em 1964 pelo próprio Rous, mas que agora ganhavam uma nova dinâmica. Com o patrocínio da Coca-Cola em 1976, Havelange pôde expandir esse programa em uma plataforma global. Em 1977, Havelange escreveu ao presidente da Federação Camaronesa de Futebol, afirmando pretender

“[criar um sistema que torna possível] instaurar um domínio esportivo e no futebol, em particular, uma nova ordem internacional onde a diferença entre os países altamente desenvolvidos e o resto dos países diminua pouco a pouco, para que, enfim, se atinja um melhor equilíbrio de forças, fator de paz e compreensão mútua entre os povos”.

Nos tempos da Guerra Fria, a crença de que se poderia alcançar o desenvolvimento econômico de forma progressiva e universal era de tal forma difundida, que tinha ecos mesmo no plano esportivo. Naquele momento, o exemplo do Brasil do “milagre econômico” era utilizado como showcase de sucesso. Com planejamento, bom uso da ciência, disciplina estrita e suporte do Estado, todas as nações seriam capazes de alcançar o tão sonhado desenvolvimento econômico (Escobar, 1995).

A plataforma de Havelange foi de tal sorte bem-sucedida que ele foi reeleito sucessivamente por cinco congressos, sem rivais e aclamado por unanimidade em todas as ocasiões. Sob a sua tutela, a Copa do Mundo Fifa dobrou o número de participantes (de 16 para 32). Em 1994, a realização da Copa do Mundo nos Estados Unidos significou a conquista da última fronteira da Fifa. Em 1998, Havelange saiu consagrado como o homem que transformou a história da Fifa. Mesmo para críticos de sua gestão, como o jornalista Juca Kfouri (2016, p. 183), “até 1974 […] a Fifa era uma entidade predominantemente centrada nos interesses do futebol europeu. […] é inegável que foi o cartola brasileiro [Havelange] o responsável pela mudança, que transformou a Fifa numa empresa transnacional”.

Nesse período de intensa transformação, foi Blatter quem esteve a seu lado quase o tempo todo. Em 1976, Blatter assumiu a posição de diretor na Fifa, encarregado justamente de tomar a frente dos programas de desenvolvimento. Com uma carreira sólida na indústria manufatureira, Blatter era o homem responsável por viabilizar o financiamento dos programas. Em 1981, Blatter tornou-se o secretário-geral da entidade, substituindo seu genro Helmut Käser. Nas palavras do historiador Paul Dietschy, a ascensão de Blatter à posição de secretário-geral marca uma ruptura no interior da própria Fifa. Se seus predecessores tinham uma formação em direito, Blatter era, essencialmente, um homem da indústria (Dietschy, 2014). Em 1998, as mesmas redes tecidas por Havelange em 1974 asseguram uma vitória de Blatter contra o então presidente da União das Federações Europeias de Futebol (Uefa), o sueco Lennart Johannson. Novamente, o teatro político fazia representar um embate entre o resto do mundo versus a Europa, personificado pelos dois candidatos. Desta vez, além dos votos conseguidos por Havelange, Blatter contava ainda com os votos da extinta União Soviética. Com a desintegração do bloco socialista em dezenas de repúblicas, o peso do Leste Europeu fora paradoxalmente ampliado dentro da própria Fifa. Blatter seria eleito com larga vantagem, dando continuidade ao legado de Havelange.

De um jeito ou de outro, o ponto aqui é que as semelhanças entre as crises institucionais de 1974 e 2014 são inúmeras, em que pese as consequências de ambas terem sido radicalmente distintas. Nos dois casos, o historiador deve atentar para o fato nem sempre óbvio de que a Fifa e as demais instituições esportivas não devem ser examinadas como associações que existem à parte do mundo social (Bourdieu, 1990). Nesse sentido, deve-se levar em conta as fraturas sociais abertas por duas conjunturas internacionais: nomeadamente, a crise política de 1968 e o crash econômico mundial em 2008. A crise de legitimidade pela qual passa a Fifa não é, de forma alguma, um episódio isolado, produto de maior ou menor habilidade deste ou daquele líder, mas parte de um cenário internacional em metamorfose. Essa crise, portanto, deve ser entendida à luz de um contexto mais amplo de crise de representação política pela qual passam as instituições tradicionais do liberalismo.

Dessa forma, a hecatombe de 2008 trouxe consigo uma série de contestações à ordem capitalista internacional. Em 2011, a criação do bloco do Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) foi a consolidação de um projeto coletivo do Sul, que visava a criar um bloco coeso, capaz de fazer frente à União Europeia e aos Estados Unidos. Uma das estratégias desse grupo foi atuar na esfera pública internacional tendo a diplomacia esportiva como um dos pilares para difundir sua marca no plano global. Nesse sentido é que se compreende, em um curto espaço de tempo, a realização dos Jogos Olímpicos de Verão em Pequim (2008), da Copa do Mundo na África do Sul (2010), dos Jogos Olímpicos de Inverno em Sochi (2014) e até mesmo, mais recentemente, do Mundial Sub-17 na Índia (2017). Esses eventos eram vistos como janelas de oportunidade para apresentar ao mundo a capacidade de organização e o sucesso econômico desses países. Paralelamente, a agenda desses países foi ao encontro das aspirações das organizações esportivas internacionais. Diante de uma série de movimentos da sociedade civil – principalmente na Europa Ocidental –, que se recusava a sediar os Jogos Olímpicos e, em menor escala, a Copa do Mundo, devido aos altos custos, elas encontraram nesses países suporte institucional e financeiro para dar seguimento às suas ações (Cornelissen, 2010).

As investigações do FBI produziram um paradoxo ao criar as condições para que justamente a Europa pudesse retomar o poder político perdido no interior da Fifa, ainda em 1974. No Congresso especial de 2016, a gravidade da crise era visível no discurso dos candidatos à presidência da Fifa. O medo era um só: de que a Fifa pudesse perder o monopólio do futebol espetáculo, em uma eventual ruptura das federações nacionais ou mesmo dos clubes. Era preciso, nas palavras dos candidatos, salvar a Fifa, resgatá-la da “maior crise” de sua história. Fosse quem fosse o vencedor, era preciso evitar que um futebol sem a Fifa emergisse. O poder da Fifa é, essencialmente, um poder simbólico. Sem legitimidade política, estariam lançadas as bases para o seu desaparecimento.

A pulverização dos candidatos indicava a existência de um vazio de poder: desta vez, eram seis candidatos, um recorde na história da entidade. O príncipe Ali Bin Al-Hussein, da Jordânia, o secretário geral da Uefa Gianni Infantino, o presidente da Federação da Libéria, Musa Bility, o presidente da Confederação Asiática, o xeique Salman bin al Khalifa, o ex-diplomata Jerome Champagne e o empresário sul-africano Tokyo Sexwale. O secretário-geral Gianni Infantino era o representante da Europa e tinha como principal rival o xeique Salman Khalifa. Amplamente apoiado pela mídia, sob a bandeira da transparência e da luta contra a corrupção, Infantino repetiu uma série das estratégias criadas por Havelange: prometeu ampliar o número de vagas na Copa do Mundo e, além disso, doar anualmente US$ 5 milhões a todas as federações nacionais da Fifa. Estas duas promessas estão ligadas, pois aumentar o número de vagas da Copa do Mundo significa, ao menos em tese (pois o efeito prático pode ser o inverso), mais recursos com a venda de direitos de televisão e com bilheterias. Assim como Havelange, Infantino rodou o globo, e estima-se que os custos totais de sua eleição tenham sido algo em torno de 500 mil libras. Desta vez, não havia um tema que mobilizasse a África em conjunto, como a questão do apartheid mobilizara em 1974, ou a América do Sul e nem mesmo o mundo árabe, que, em 1973, havia se unificado em face da ascensão de Israel. Infantino soube se beneficiar do enfraquecimento das confederações, mobilizando as federações nacionais de forma isolada.

Assim como a vitória de Havelange em 1974, a eleição de Infantino trouxe a promessa de uma “nova Fifa”, mais transparente. De um jeito ou de outro, ele foi ainda mais radical do que Havelange nas suas primeiras ações. Os símbolos criados por Havelange e Blatter foram colocados imediatamente em xeque – a Copa das Confederações foi o primeiro, mas não será o último. Infantino pretende extinguir o torneio. A disputa sobre o legado de Havelange afetou até mesmo o funcionamento do Museu da Fifa. Criado por Blatter, o museu teve seu funcionamento ameaçado, alegando falta de recursos. A Fifa também passou a perseguir judicialmente os dirigentes envolvidos nos escândalos de corrupção, a fim de obter ressarcimentos legais. Depois da vitória de Infantino, em março, Havelange faleceu em junho, em meio às festividades dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. A Fifa não declarou luto oficial. A hora era a de virar a página.

No que se refere à CBF, é interessante notar que a crise originada internacionalmente teve suas pinceladas verde-amareladas. Delação, favorecimento, corrupção e indignação seletiva são ingredientes semelhantes ao enredo político que acabou desencadeando o golpe jurídico-parlamentar que afastou a presidente Dilma Rousseff em agosto de 2016 e estabeleceu um Estado de exceção no Brasil.
Preso nos Estados Unidos em 2013, o jornalista e empresário J. Hawilla, proprietário da Traffic, reportou os esquemas de propina nas transações dos direitos de transmissões de televisão pela CBF, em acordo de delação às autoridades estadunidenses. Sócio de um dos herdeiros da poderosa família Marinho, que comanda o maior império de mídia do país, e detentor de uma cadeia de TV no estado de São Paulo afiliada à Rede Globo, confirmou o suborno sistemático pago a dirigentes de clubes.

A prisão e a delação de J. Hawilla ocorreram durante a virada política após as Jornadas de Junho no Brasil (Singer, 2013). Em meio às movimentações que anteciparam e embalaram a Copa das Confederações, as críticas contra o aumento das tarifas das passagens dos transportes públicos articularam diversas outras demandas sociais, entre as quais o fim da violência policial, verbas para educação e saúde e a estrutura política vigente.

Organizadas por entidades e grupos ligados à Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa do Mundo (Ancop), as ações denunciaram também a organização da Copa no Brasil, a construção das arenas esportivas, a remoção forçada de populações subalternizadas e a violação da soberania nacional com a Lei Geral da Copa. Ao evocar o padrão Fifa para os serviços públicos, empunhava-se, com intensa ironia, uma série de bandeiras reivindicatórias arriadas durante os governos petistas.

O combate à corrupção, evocado na crise da Fifa, tomou corpo no Brasil a partir de março de 2014, com as revelações da operação Lava Jato, empreendida pela Polícia Federal e insistentemente divulgada pela grande imprensa brasileira. A mesma motivação havia sido acionada para afastar, por processos diversos, os presidentes Manuel Zelaya, de Honduras (2009), Fernando Lugo, do Paraguai (2012), e Otto Pérez Molina, da Guatemala (2015). A conjuntura política era marcada pela desestabilização de governos populares na América Latina. Literalmente, em meio à Copa do Mundo de 2014, o Brasil era a bola da vez.

A vulnerabilidade das autoridades e dos dirigentes esportivos brasileiros diante das suspeitas e acusações em relação à organização da Copa do Mundo – e também de toda a agenda esportiva nacional, que incluíra Jogos Pan-Americanos (2007), Jogos Mundiais Militares (2011), Copa das Confederações (2013), Jogos Mundiais dos Povos Indígenas (2015), Jogos Olímpicos e Jogos Paralímpicos (2016) – deveu-se a uma série de arranjos que culminou na aproximação da burocracia lulista com a cartolagem esportiva.

Do turbulento encerramento da Comissão Parlamentar de Inquérito da CBF/Nike, em junho de 2001, que opôs a chamada “bancada da bola” ao presidente da comissão, Aldo Rebelo (PCdoB), e foi encerrada sem a votação do relatório do deputado Sílvio Torres (PSDB) às gestões do Ministério dos Esportes a cargo do PCdoB, operou-se uma grande composição que consagraria a opção tecnocrática para os megaeventos esportivos.
Ao mesmo tempo em que se excluía a participação popular, alardeava-se um legado de desenvolvimento e um terraço de oportunidades para justificar as medidas e os gastos públicos. As antigas vozes discordantes passaram a entoar, em uníssono, o canto de sereia que justificava as obras encaminhadas pelas grandes empreiteiras e as negociações acerca dos direitos de transmissões e patrocínios. Mais uma vez na história brasileira, o centrismo invertebrado, com a conciliação e a incorporação de antigos adversários, marcava o jogo político (Campello de Souza, 1988).
A crise da Fifa atingiu em cheio o poder do dirigente Ricardo Teixeira, presidente da CBF por 23 anos, entre 1989 e 2012, ex-genro e herdeiro político de João Havelange. Além de dinamizar os negócios da CBF e articular politicamente federações e clubes de futebol, Teixeira fomentou e colaborou para a consolidação da “bancada da bola” no Congresso Nacional, responsável por defender os interesses da cartolagem no parlamento e impedir ações investigativas sobre os dirigentes esportivos brasileiros. Note-se que seu primeiro mandato à frente da CBF coincidiu com o processo de democratização do país e o fortalecimento do Poder Legislativo. Não por acaso, pesa sobre a CBF uma série de denúncias de financiamento de campanhas eleitorais para a composição da bancada da bola, cujos integrantes também poderiam ser identificados como coronéis do futebol.
Entre muitas de suas realizações, tais coronéis conseguiram o arquivamento da CPI mista que investigaria os negócios entre os investidores russos e britânicos da MSI (Media Sports Investment) e o Sport Club Corinthians, em 2007, com o apoio de parlamentares da base do governo, incluindo petistas e comunistas. Como mais um indício dessa acomodação política, em 2006, o presidente Lula sancionou a lei que criou a Timemania, uma loteria que tem como finalidade ajudar os clubes de futebol a saldarem suas dívidas com o INSS, Receita Federal e FGTS.

A renúncia de Teixeira em 2012 foi provocada pela revelação do recebimento de propinas milionárias da ISL (International Sport and Leisure), a primeira grande empresa de marketing esportivo do mundo, que comercializava os direitos de transmissão das competições da Fifa até falir em 2001. O processo criminal, iniciado em 2008, baseava-se em evidências de irregularidades e subornos a dirigentes da Fifa. Tal processo, que foi encerrado em 2010 mediante ressarcimento da Fifa à ISL, com a condição da manutenção do sigilo dos nomes dos envolvidos, teve uma curiosa reviravolta em 2012, quando a Justiça suíça declarou que o conhecimento dos dirigentes seria de interesse público.

Ricardo Teixeira foi alvo de diversas denúncias e escândalos, mas revelou imensa capacidade de resistência e articulação política para se esquivar de acusações como contrabando, improbidade administrativa, abuso de autoridade, especulação financeira, empréstimos fraudulentos, lavagem de dinheiro, recebimento de propinas e patrocínio de candidaturas com recursos da CBF.

Mesmo assim, pode-se dizer que Teixeira pacificou a cartolagem do futebol “como nunca antes na história do Brasil”. Por ironia, a antiga Confederação Brasileira de Desportos (CBD), da qual é originária a CBF, desmembrada apenas em 1979, no contexto da transição pactuada da ditadura para a democracia, não obteve tamanha estabilidade durante os idos da Primeira República. Àquela altura, estabelecera-se no país a chamada “política dos governadores”, por meio da qual se institucionalizara o regime que conferia autonomia às oligarquias estaduais em troca de apoio à articulação das oligarquias de São Paulo e Minas Gerais em âmbito nacional. Em troca de benesses federais, atuavam os coronéis, no plano municipal, que controlavam seus currais eleitorais e representavam o elo que fechava o encadeamento dos acordos políticos.

Pactos semelhantes encontravam mais obstáculos e resistências no que se refere ao futebol. A CBD foi criada em 1916, a partir da composição entre a Federação Brasileira de Futebol (FBF) e a Federação Brasileira de Sports (FBS). As rivalidades regionais entre os dirigentes de São Paulo e Rio de Janeiro, as disputas pelo futebol entre as elites e setores populares e a polarização amadorismo/profissionalismo marcaram a história do futebol brasileiro em suas primeiras décadas (Pereira, 2000; Franco Júnior, 2007). A eliminação da seleção brasileira na Copa do Uruguai em 1930, composta exclusivamente de jogadores que atuavam em clubes cariocas, chegou a ser comemorada por torcedores paulistas, que realizaram um enterro simbólico da CBD no Viaduto do Chá (Franco Júnior, 2007, p. 75).

Uma nova FBF existiu entre 1933 e 1937, disputando a direção do futebol com a CBD no contexto da transição do amadorismo para o profissionalismo, nos primeiros anos dos governos de Getúlio Vargas. Com a criação do Conselho Nacional dos Desportos (CND) em 1941, vinculado ao Ministério da Educação e Cultura, a CBD e as demais federações estaduais passaram a ser subordinadas e fiscalizadas pelo Estado e a serviço do projeto nacionalista e centralizador de Vargas.

Entre 1945 e 1964, à semelhança do arranjo político baseado na composição entre o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e o Partido Social Democrático (PSD), o futebol brasileiro foi comandado por dirigentes ligados à política populista. Formava-se uma oligarquia futebolística encastelada nos clubes e federações que se adaptaria e se incorporaria aos ditames da ditadura militar. As vitórias nas copas de 1958, 1962 e 1970 permitiram a manutenção desses dirigentes.

Em 1975, logo após o fracasso da seleção na Copa da Alemanha, o controle mais rigoroso do futebol brasileiro por parte dos militares afirmou-se por meio da Lei 6.251/75, que alçava novamente o CND como a instância máxima do esporte nacional. No mesmo ano, o almirante Heleno Nunes assumiria o comando da CBD, evidenciando o processo de militarização da direção dos esportes no país. A ampliação vertiginosa do número de equipes disputando o Campeonato Brasileiro, que chegou a reunir 94 agremiações em 1979, a adoção de fórmulas esdrúxulas nos certames, que provocaram distorções tornando campeões times que tiveram menor pontuação que os vices, a queda da média de público e o enfraquecimento financeiro dos clubes foram o legado deixado pela administração do futebol da ditadura.

O processo de transição democrática ameaçou alterar a estrutura do futebol brasileiro com a criação do Clube dos Treze, em 1987, responsável pela organização da Copa União, no mesmo ano. Naquela altura, as divergências entre os clubes e a CBF culminou na existência de dois campeões: o Flamengo, pela Copa União, e o Sport, pelo campeonato organizado pela CBF. Mas isso não representou uma ruptura definitiva e o Clube dos Treze não encaminhou a formação de uma liga nos moldes europeus. Pelo contrário.

O Clube dos Treze só voltaria a montar uma competição nacional em 2000, devido a recursos jurídicos que impediram a CBF de organizar o Campeonato Brasileiro. Desde 1988, o ímpeto dos clubes foi se arrefecendo e uma nova acomodação foi se consolidando. Significativamente, a competição de 2000 foi denominada Copa João Havelange, em homenagem ao então presidente de honra da Fifa, mentor e sogro de Ricardo Teixeira. A articulação dos clubes, a despeito de alguns enfrentamentos pontuais com a CBF, não implementou uma transformação profunda do futebol brasileiro e ficou restrita à discussão dos direitos e dos valores das transmissões das partidas de futebol, ou seja, ao butim a ser repartido entre os seus representantes. A defesa dos privilégios políticos de seus dirigentes e seus interesses era levada à frente, sobretudo, pela CBF liderada por Ricardo Teixeira, que, além de comandar a bancada da bola no Congresso Nacional, passara a se articular ao governo Lula para a organização da Copa do Mundo de 2014.

A renúncia de Ricardo Teixeira em 2012 permitiu a ascensão de José Maria Marin, o seu mais idoso vice-presidente. Ex-integrante do partido integralista de Plínio Salgado, Marin foi deputado estadual pela Arena, resoluto apoiador da ditadura e um dos responsáveis pela campanha que culminaria na morte do jornalista Wladimir Herzog em 1975. Posteriormente, em 1982, ocupou o cargo de governador de São Paulo, pelo PDS, substituindo Paulo Maluf. No mesmo ano, tornou-se presidente da Federação Paulista de Futebol, função que manteria até 1988. Além da presidência da CBF, exerceu o cargo de presidente do Comitê Organizador Local da Copa do Mundo de 2014 (COL). Em 2015, Marin foi preso em Zurique na operação do FBI que envolveu outros dirigentes da Fifa. Extraditado para os Estados Unidos, Marin foi condenado por integrar organização criminosa, fraudes e lavagem de dinheiro.

Seu sucessor, Marco Polo Del Nero, que já foi mencionado como integrante do Comando de Caça aos Comunistas (CCC) na década de 1960, presidiu a Federação Paulista de Futebol entre 2003 e 2015. Antes disso, havia integrado o Tribunal de Justiça Desportiva e exercido o cargo de vice-presidente durante a gestão de Eduardo José Farah. Assumiu a presidência da CBF em 2015 e também foi indiciado pela Justiça dos Estados Unidos por recebimento de propina em contratos da CBF e Conmebol. Por tais acusações, em dezembro de 2017, foi suspenso provisoriamente pela Fifa de todas as atividades ligadas ao futebol por 90 dias. Em janeiro de 2018, por meio de videoconferência, foi interrogado pelo Comitê de Ética da Fifa. Marco Polo Del Nero corre o risco de ser preso e extraditado para os Estados Unidos se sair do país.

Os sucessores de Teixeira mantiveram o modus operandi da CBF. Além das acusações que recaem sobre eles, pode ser notada uma origem política comum, cuja matriz é a ditadura militar. Percebe-se que a CBF, as federações e muitos dos clubes de futebol serviram como abrigo sob o qual se camuflaram alguns dos apoiadores e beneficiários da ditadura. Como uma grande Arca de Noé, as instituições esportivas serviram de meio de transporte para tais dirigentes navegarem pelas correntezas da democracia e até mesmo pelo dilúvio das crises da Fifa e da política no Brasil.
Em agosto de 2014, a direção da CBF inaugurou sua nova sede, no Rio de Janeiro. Em um suntuoso prédio, denominado à época “José Maria Marin”, também passou a funcionar o museu da entidade. Como notou o jornalista Cid Benjamin, um lapso significativo era perceptível na linha de tempo que serviu para balizar a história do futebol brasileiro: ao se referir ao ano de 1964, o evento lembrado foi o nascimento do Cinema Novo. Nenhuma referência sobre o golpe que depôs João Goulart. No entanto, a política está presente em outros marcos da cronologia elaborada no museu, como a Revolução dos Cravos em Portugal e a Queda do Muro de Berlim. Àquela altura, havia ainda um certo constrangimento em mencionar e vincular determinadas personalidades à ditadura militar. Mas muitos dos dirigentes esportivos de nosso país foram moldados a partir desse barro. Talvez seja uma espécie de pecado original do futebol brasileiro.

Se o vazio de poder, característica radiante nas últimas eleições da Fifa em razão da pulverização de candidaturas, também pode ser evocado com relação às eleições presidenciais de 2018 no Brasil, para a sucessão na CBF o quadro mostra-se bem diverso. A estrutura permanece firme e Marco Polo Del Nero conseguiu emplacar seu aliado e atual diretor-executivo da entidade, Rogério Caboclo, para o cargo de presidente da instituição, com candidatura única.

O colégio eleitoral foi formado pelas 27 Federações Estaduais, com peso três, pelos 20 clubes da série A, com peso dois, e pelos 20 clubes da série B, com peso um. Quase unanimidade, com apenas algumas defecções na série A: ausência do representante do Atlético-PR, abstenção do Flamengo e voto em branco do Corinthians.

Não há vazio de poder. Não há movimentos significativos de clubes, atletas, imprensa ou torcedores. Há um poder estruturado pelas oligarquias da bola, que, a despeito das turbulências nacionais e internacionais, mantêm-se fortificadas no controle da gestão do futebol brasileiro.

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FLAVIO DE CAMPOS é professor do Departamento de História da FFLCH-USP e coordenador científico do NAP/Ludens (Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre Futebol e Modalidades Lúdicas).

LUIZ GUILHERME BURLAMAQUI é doutorando em História Social na FFLCH-USP e pesquisador do NAP/Ludens.

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(1) Os únicos patrocinadores que se mantiveram fiéis a Joseph Blatter foram a Adidas, da Alemanha, a Kia, da Coreia do Sul, e Gazprom, da Rússia. Disponível em: https://www.theguardian.com/football/2015/oct/03/sepp-blatter-respite-fifa-sponsors.

(2) Os próprios membros do Comitê Olímpico Internacional indicam os seus membros afiliados. Nesse sentido, a maioria dos membros sempre foi de origem europeia, quadro que dificilmente se alterará. Sobre a IAAF, ver Krieger (2016).

(3) Arquivos da Fifa. Carta de João Havelange endereçada à Federação Nacional de Camarões, 11 de novembro de 1977.

(4) Sobre o golpe de 2016, ver Singer (2016).

(5) Lei 12.663/12.

(6) A respeito, ver Campos (2015).

(7) Tais alterações podem ser percebidas ao se comparar as resoluções das Conferências Nacionais do Esporte de 2004 e 2006 e o Plano Nacional de Esportes e Lazer de 2010. Do gerenciamento transparente de recursos com participação popular e a constituição de um Sistema Nacional de Esportes e Lazer passa-se à organização dos megaeventos esportivos e à pretensão de inserir o Brasil entre as dez principais potências esportivas do mundo. Ver Campos (2017).

(8) Com uma lembrança mitológica muito pertinente, o historiador Hilário Franco Júnior (2017, pp. 284-90) comparou o afastamento de Ricardo Teixeira à decapitação da Medusa.

(9) Disponível em: http://www.espn.com.br/noticia/432140_cbf-conta-a-historia-do-brasil-mas-esquece-a-ditadura-militar.

 

Bibliografia

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