usp_o.php Revista USP 118 – Opinião e classes sociais em Tietê – Jornal da USP

Foto: Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros USP – Fundo Antonio Candido de Mello e Souza

Opinião e classes sociais em Tietê

.Antonio Candido

“Eu tenho corrido terra,
Cidade, mais de corenta;
Tanta cidade bonita,
Só Tietê me contenta”
(Moda do batuque, em Tietê)

O presente trabalho é baseado numa pesquisa feita em Tietê, no mês de maio de 1943, quando o prof. Roger Bastide, acompanhado por assistentes e alunos das lª e 2ª cadeiras de Sociologia da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Pauto, foi àquela cidade a convite da prefeitura local assistir a um batuque. O material folclórico, então obtido, foi em parte utilizado pela prof. Lavínia Costa Vilela na sua tese de doutoramento. No presente artigo estudarei, não o material folclórico, colhido pelos assistentes profs. Lavínia Costa Vilela, Gioconda Mussolini, Gilda de Mello e Souza, José Francisco de Camargo e por mim próprio, mas a situação por mim observada nos quatro dias que sucederam ao batuque. Este se realizou num sábado; domingo, voltou para São Paulo a caravana chefiada pelo prof. Bastide. De acordo com ele, fiquei mais alguns dias em Tietê a fim de observar as reações despertadas pela festa na população local.
É preciso notar que, atualmente, poucas vezes se realizam batuques na cidade de Tietê e nunca no centro da cidade, tendo sido esta a primeira vez que as autoridades não só deram permissão para tal, como compareceram(1); que neles tomam parte sobretudo negros; que ao tempo da pesquisa o vigário local se esforçava por impedir a ocorrência das danças afro-brasileiras, consideradas por ele ocasião de escândalo e imoralidade; finalmente, que notamos, desde o momento em que se realizava o batuque, movimentos de desagrado por parte de vários tieteenses, seja por motivos morais, seja por orgulho local, ferido pela possibilidade dos visitantes menosprezarem uma cidade “em que se dança batuque”.
Durante as horas que este durou (das oito da noite às oito da manhã) foi possível sentir entre o grande número de pessoas presentes – pessoas gradas, gente média e miúda – sentimentos diversos e contraditórios. Imaginei, então, que a realização da festa, mais a circunstância excepcional da presença de um grupo de universitários, deveria ter provocado uma sacudidela na vida local; e, tendo-se tornado objeto de debates por vezes acalorados, seria excelente oportunidade para uma rápida sondagem sociológica – espécie de instantâneo, tomado num momento relativamente crítico. Na vida mais ou menos rotinizada das pequenas cidades, um acontecimento qualquer – jogo de futebol, roubo, visita oficial, etc. – provoca verdadeiros movimentos de opinião, durante os quais podemos desvendar certos mecanismos menos aparentes do comportamento.
Desde o instante da realização do batuque, podia-se perceber (e a investigação confirmou em seguida) que a pequena crise por ele provocada envolvia movimentos no orgulho local e na consciência de status. Daí a ideia de aproveitar a oportunidade e tentar uma análise da opinião pública de Tietê, em face da perturbação trazida pelo batuque e a presença dos pesquisadores. Análise necessariamente rápida, porque se tratava de focalizar pequena parcela de tempo, tanto quanto durasse a fase aguda da perturbação. A dificuldade inicial consistia, precisamente, em determinar a duração deste (digamos) momento social: a fase aguda da pequena crise na consciência coletiva.
De qualquer modo, pus-me imediatamente em campo e consegui ficar, direta ou indiretamente, a par da opinião de algumas centenas de pessoas, a absoluta maioria das quais abordadas sem nenhuma atitude de pesquisa, isto é, sem questionário, sem perguntas formais, sem demonstrar maior interesse além da palestra. Quando lidamos com gente do povo, no interior, sobretudo trabalhadores rurais, é preciso ter o máximo cuidado nas perguntas. Vale mais motivar a conversa do que exigir uma resposta, porque o homem do povo, no interior, responde sempre afirmativamente e possui verdadeiras antenas para perceber o tipo de resposta mais agradável ao interrogador. É a cortesia humilde do caboclo e do negro, verdadeira armadilha para o pesquisador citadino.
Levando em conta esta e outras circunstâncias, procurei esbater o mais possível a qualidade de investigador, ficando apenas a de viajante curioso. Claro que semelhante precaução não tem tanto sentido no que toca às pessoas esclarecidas do lugar, as quais têm consciência imediata do que se lhes pede.

AS OPINIÕES

No grupo de pessoas cuja opinião sondei a respeito da realização do batuque, verificava-se a ocorrência de duas atitudes principais:
a) aceitação, mais ou menos aberta, indo da relativa indiferença e chegando ao entusiasmo;
b) rejeição, mais ou menos aberta, indo do relativo aborrecimento à mais decidida repulsa.
A aceitação se dava por diversos motivos: satisfação ante a oportunidade de despertar interesse pela cidade; satisfação pela contribuição científica da pesquisa; satisfação pelo “movimento” na vida local; satisfação dos que tiveram oportunidade de batucar para os “professores”.
De outro lado, a repulsa assumia, igualmente, motivos variados: humilhação (“será que não há em Tietê outra coisa para mostrar, além dessa negrada?”), revolta (“é o cúmulo explorar esses pobres negros, fazendo-os de palhaços”), sentimento de insegurança (“daqui a pouco os rapazes de família vão cair no batuque”), preconceito moral (“onde já se viu arranjar oportunidade para negro dar umbigada”; “daqui a pouco vamos ter negrinha deflorada”), preconceito religioso.
Como se vê, a opinião estava, grosso modo, dividida em dois campos, que procuravam, quando em conversa, racionalizar dum modo ou de outro a sua aceitação ou a sua repulsa pela circunstância de se haver promovido, na cidade de Tietê, um batuque quase oficial, patrocinado pela prefeitura, a fim de ser observado por professores de São Paulo.
Os dados foram colhidos por meio de conversas e, por vezes, tocaias indiscretas – nas mesas de bar, atrás de uma esquina, confundido no footing domingueiro, ou no intervalo do cinema –, vindo a seguir o trabalho de classificá-los, a fim de indagar a causa fundamental das diferentes opiniões e suas nuances.

AS CLASSES

Não foi possível, como seria necessário para pesquisa mais ampla e observação mais profunda, proceder ao estudo cuidadoso da estratificação social em Tietê. As conclusões a respeito foram feitas depois de poucos dias de observação e informações de conhecedores dos problemas locais. Penso, todavia, que, para o caso em apreço, o esquema obtido é suficiente.
Em Tietê, podemos distinguir três classes principais:
1a – uma aristocracia ligada geralmente à terra, seja por posse, seja por tradição, de origem brasileira na grande maioria. Mesmo quando as fortunas se fizeram, ou aumentaram, no comércio, os membros desta aristocracia pertencem a família de origem rural. É de notar que várias famílias deixaram inteiramente, ou quase, Tietê, vindo-se estabelecer em São Paulo, com a opulência devida ao café no seu período áureo. Acrescentem-se ao quadro os altos funcionários(2).
2a – uma classe média, na qual se podem distinguir dois estratos:
a) uma camada mais estável, composta de pequenos proprietários, pequenos comerciantes, pequenos fazendeiros, pequenos funcionários, etc.;
b) uma camada ainda em ascensão, quer pela origem muito recente da propriedade ou da função, quer pela dependência de pequenos salários, e ainda muito próxima ao povo.
3a – uma plebe de trabalhadores, com grande porcentagem de negros e mulatos, na qual existiam, ao tempo da pesquisa, alguns ex-escravos (estivemos com, pelo menos, quatro).
No presente trabalho, estas classes serão mencionadas da seguinte maneira, respectivamente: Classes I, II (IIa e IIb) e III.

CLASSE E OPINIÃO

Organizado o material obtido, verificava-se que os indivíduos das Classes I e III aceitaram ou, mesmo, aplaudiram, na sua quase totalidade, a realização do batuque. Um ou outro membro opôs restrição, nunca muito veemente. Na Classe II, pelo contrário, localizavam-se quase todos os adversários, dos simplesmente reprovantes aos que protestaram com maior ou menor violência. Entretanto, havia em ambas as subclasses em que dividi a Classe II – IIa e IIb – pessoas que não só aprovaram o batuque, como participaram na sua organização. E observe-se, para finalizar o quadro, que o maior inimigo da festa, inimigo que me recebeu com a maior franqueza, e com ela nada escondeu do seu profundo ressentimento, foi o vigário local, Cônego***.
Este o panorama obtido após a classificação dos dados; a ele resolvi cingir-me, convencido de que daí brotariam conclusões válidas para interpretar as causas sociais do movimento de opinião pública, em Tietê, por ocasião do batuque.
Na Classe I localizavam-se as autoridades locais, os participantes da situação política dominante; as pessoas, portanto, ligadas direta ou indiretamente com a promoção da festa: e aí estaria uma razão para explicar a sua atitude simpática, não fosse a circunstância de também os descendentes políticos da Classe I, mais os indiferentes, terem assumido a mesma atitude(3).
Por outro lado, os batuqueiros, que se exibiram e divertiram (“folgar batuque”, diz-se em Tietê, expressivamente, por batucar), pertenciam, todos, à Classe III, e este poderia ser o motivo da sua simpatia, caso não se houvesse mostrado simpatizantes os membros da mesma classe que não tomaram parte na dança e nem sequer ligaram a ela qualquer importância.
Para a atitude da Classe II, nenhuma explicação evidente à primeira vista. As razões apresentadas pelos seus membros eram várias, como já sugeri acima. As restrições partidas da Classe I, que não registrei diretamente, mas de que tive notícia, se manifestaram fracamente, consistindo sobretudo em estranheza: “O que quererão esses moços de São Paulo com o batuque?”; “Será que batuque serve para alguma coisa?” (eis o tipo de reação mais pronunciada). Na II, pelo contrário, ouvi censuras amargas e observei movimentos acentuados de repulsa, devidos, na maioria, ao sentimento de orgulho local mortificado (“será que não há nada melhor para mostrar em Tietê?”), de dó pelos batuqueiros (“é o cúmulo fazer esses pobres negros de palhaços”), de moral ofendida (“pouca vergonha, ir ver negro dar umbigada”).
A situação começou a se esclarecer quando fiquei sabendo de certas circunstâncias expressivas. Por exemplo, que muitos dos meus informantes haviam “folgado batuque” em tempos passados, quando eram moços e a festa mais frequente nas fazendas e no bairro de Santa Cruz(4). Dois deles falaram dela com certa nostalgia, mas na presença das mães, ou irmãos idosos, mostraram-se confusos. Os mais velhos, sobretudo as mulheres, condenavam fortemente a festa a que fôramos assistir, falando de “pouca vergonha” e “daqui a pouco os rapazes de família vão cair no batuque com as negras”. Numa encantadora família de cor (velha mãe e três filhas), onde fui cordialmente recebido (a cordialidade e a cortesia, aliás, caracterizam, a par da vocação para a caçoada, todas as classes de Tietê), falou-se normalmente da festa; mas tomou-se a precaução de informar que ninguém da casa tinha ido vê-la, e que as moças nunca tinham visto semelhante dança. De duas famílias que tomavam a fresca na calçada e que pude ver e escutar sem ser visto, ouvi incriminações acerbas aos promotores da festa, lembrando todos com desagrado (sobretudo as senhoras) o tempo em que a rapaziada dos sítios “caía no batuque”.
Observações como estas, colhidas em meio ao trabalho de campo, ajudaram a esclarecer e ordenar os dados obtidos. Foram elas que me levaram à evidência de que, para o grosso dos pesquisados, o verdadeiro fator do movimento de opinião devia ser buscado na estratificação social. Daí a necessidade de discriminar as classes sociais de Tietê para explicar as profundas discrepâncias de atitude.
Na definição de uma classe social – para afastar do nosso critério a parcialidade – devemos levar em conta fatores subjetivos e objetivos. Embora nas sociedades modernas a base de uma classe social seja a sua situação econômica, o problema das atitudes de classe e das relações entre elas nos levam a considerar a situação de classe, definida por uma convergência do sentimento de classe, subjetivo, que é a noção que temos da nossa localização neste ou naquele degrau da escala, e da posição social, ou seja, a localização a nós atribuída pelo consenso coletivo; este coincide mais, ou menos, com o nosso sentimento de classe e depende mais, ou menos, da situação econômica. A situação de classe corresponde, de modo geral, ao que os americanos chamam social status. Para fixar as ideias, tracemos o esquema seguinte:

Como ficou dito, nas sociedades modernas predomina, na definição das classes, a situação econômica, que geralmente determina a posição social. A proporção, todavia, entre a influência da situação econômica e da situação social varia de comunidade para comunidade, conforme as condições econômicas e as condições históricas. Numa cidade nova, consistindo principalmente em núcleo de penetração econômica, Marília, por exemplo, ou Mirassol – a estratificação social reflete fielmente a estratificação econômica. Numa cidade velha e economicamente estabilizada, como Tietê, a tradição dá grande reforço aos fatores subjetivos e consensuais, a posição não se subordinando tão estritamente à situação econômica. Daí, nestes casos, a importância da situação social para definir a classe a que pertence o indivíduo, e a dependência em que o sentimento deste se encontra relativamente ao consenso coletivo. Daí, portanto, o valor dado, pelos indivíduos em ascensão, às maneiras, hábitos e atitudes da classe mais elevada. E daí a tenacidade com que se opõem a qualquer vislumbre de confusão deles com o povo. “A ideologia de um dado período é a ideologia das suas classes dominantes”, ensina Marx. Nas sociedades bem estratificadas, em que a tradição alimenta um forte sentimento de classe, como que as classes médias adquirem a consciência exclusivista da aristocracia, guardando ciosamente a sua distância em relação ao povo. Nessas sociedades, a mobilidade vertical sendo menor, por ser menor a evolução material e menos densa a atividade econômica, as barreiras são mais sólidas e a ascensão depende não apenas do prestígio dado pela situação econômica, mas, também, da situação social atribuída pelo consenso coletivo. É o caso de Tietê, ou pelo menos era, há quatro anos. Dividindo a sua população em três classes e duas subclasses, atendi às duas ordens de fatores – subjetivos e objetivos – pelas razões que se verão em seguida.
Nessa sociedade ainda marcada pela tradição, dá-se o fato de pessoas de velha estirpe e más condições financeiras ainda se sentirem pertencer à aristocracia e gozarem, por parte desta, um conceito equivalente, no que respeita à posição. Mas as condições objetivas vão, de fato, impedindo a sua participação na vida da Classe I: falta de recursos para representação social, para participar na alta esfera dos negócios, para viajar, etc. O resultado é que a segunda geração – já nascida e criada em condições mais condizentes com os padrões da Classe II – vai, pouco a pouco, se sentindo membro desta e como tal julgada pela Classe I. Como vemos, embora o fator econômico seja decisivo em última instância, os subjetivos não são desprezíveis. Assim, a Classe I atribuirá a um novo-rico posição social inferior à de uma pessoa pobre de velha estirpe; mas não tarda que as condições objetivas acabem por impor a confirmação do primeiro e a exclusão da descendência do segundo. Interessante, numa comunidade tradicional, como Tietê, é que o sentimento de classe é bastante agudo em ambos – o que ascende e o que decai –, colocados como se acham em conjuntura caracteristicamente dúbia.
Forcemos um pouco a nota e digamos que situação dúbia é a da Classe II em geral, numa cidade tradicionalista, em época de crise e grande mobilidade social, como a nossa. Nesta classe, com efeito, encontramos membros ou filhos de membros da Classe I, em processo de descida, e membros ou filhos de membros da Classe III em processo de ascensão. Quiçá metade da Classe II esteja em tais condições, sendo a outra metade composta de elementos estáveis, ou já em ascensão para a Classe I. Essa composição complexa nos levou a distinguir pelo menos dois estratos na classe média tieteense (IIa e IIb), e o ideal teria sido discriminar os três mencionados; para tanto, porém, não havia elementos seguros.
Assim sendo, é compreensível que os membros de II, originários de I, conservem muitos traços da classe de origem, quando não os exacerbam pelo desejo de evitar serem confundidos com os componentes de extração popular da Classe II. No trabalho de campo, tive alguns indícios disto, mas o que pude observar em larga escala foi o fenômeno simétrico – o exaltado sentimento de classe por parte destes últimos. Sentimento que variava, dentro da Classe II (assim me pareceu), em razão inversa da posição social.
É provável portanto – a ser exato o exposto – que os sentimentos implicados na situação de classe, se não determinaram, pelo menos influíram bastante nos movimentos de opinião; em vista dos dados obtidos no trabalho de campo, não é temerário concluir pela afirmativa. E, diga-se desde já, a chave das atitudes das diferentes classes, em Tietê (em face de acontecimento aparentemente irrelevante, qual seja a realização de um batuque, mas que buliu com certos “estados fortes da consciência coletiva”), deve ser buscada, dentre aqueles sentimentos, no de segurança.
Para a Classe I, colocada no alto da pirâmide social, habituada a mandar, composta em boa maioria de famílias tradicionais, viajada, separada por grande distância social da Classe III e mesmo da Classe II –, o batuque foi um acontecimento sem maiores consequências. O seu prestígio, a sua situação de classe estavam e permaneceram infinitamente acima dos negros batuqueiros, em grande parte filhos e netos de escravos seus.
A Classe III, onde se recrutam os batuqueiros, colocada no mais baixo degrau da escala, em nada, igualmente, poderia ser afetada, por tratar-se de um acontecimento inserido na sua tradição, principalmente no que se refere aos negros e mulatos. Os que não participavam de batuques, ainda assim em nada poderiam ver comprometida a sua situação, mesmo que, pelo contágio do exemplo, neles viessem a participar: a Classe III não podia perder uma situação que já era a mais baixa possível.
Para a Classe II a situação não era tão simples. Os que se ligavam, ainda remotamente, à Classe I, não desejariam ver o prestígio local, e portanto o seu, comprometido por práticas plebeias. E muito menos os membros de origem popular, que, no esforço da ascensão, tudo fazem para romper os ligamentos com um passado mais ou menos próximo. Mesmo os que pertencem à parte mais estável da Classe II não poderiam sentir-se bem, porque se o filho de um fazendeiro de velha estirpe não corre o risco de ser confundido com a plebe (e portanto de perder a posição social), ainda que participe dos seus usos, outro tanto não se dá com o filho dum sitiante italiano ou de um comerciante remediado. Em vista do que ficou exposto atrás – quando foi abordado o critério de definição das classes –, qualquer concessão desta ordem, por parte da pequena burguesia, pode alterar a sua situação social, porque mesmo que o sentimento permaneça intacto, pode haver uma queda da posição, dependente como é esta do consenso coletivo. As famílias pequeno-burguesas (mesmo as economicamente salvaguardadas de confusão com a Classe III) viam no batuque dois perigos: 1º – o de se pensar que a cidade de Tietê era uma cidade atrasada, cheia de negros vagabundos: ao contrário da Classe I, os membros da Classe II não se sentem tão acima do povo, e portanto, daquilo que se possa achar do povo; 2º – de constituir atrativo para os seus filhos; estes não desgostariam de dançar com as negras e mulatas, mas os pais temem, mais que tudo, confundir-se novamente, ou finalmente, com a plebe. De todas as classes, portanto, a II foi aquela cujos sentimentos de segurança se viram mais ameaçados pelo batuque – vindo este trazer ameaça, embora leve, ao sentimento de respeitabilidade com que ela procurava impor-se no conceito coletivo.
Um dos casos observados permite fixar as ideias a respeito, e nem por ser, talvez, uma exceção deixa de ser expressivo. Trata-se de uma família da Classe II, bastante modesta, composta de mãe, filha, genro e netos. A mãe, septuagenária encantadora, com a cordialidade e o humour peculiares a Tietê, trazia, pelos quatro costados, nomes dos mais ilustres na história paulista. Falou-me de tios e primos, titulares, milionários, gente de prol na capital do Estado; no que respeita o batuque, nada objetou. Achou muito natural, estranhando apenas, alegremente, que gente culta se interessasse por aquela brincadeira de negro. A filha, de meia-idade, reagiu de maneira oposta, não apenas tratando o visitante com frieza, como demonstrando evidente irritação quanto à festa e à presença dos universitários. É que a mãe, ainda ligada à Classe I pela comunidade da tradição, do casamento e, provavelmente, de um perdido nível econômico, ainda sentia mais ou menos intacto o seu sentimento de classe e, talvez, a posição social, graças à consideração dispensada pelos membros da sua classe de origem. Já a filha, casada na Classe II, com filhos plenamente integrados nela, não pertencia mais ao mesmo universo, não podia sentir a mesma segurança e, daí, a sua reação, típica da classe a que agora pertencia.
Analisando mais a fundo a reação dos membros da Classe II, chegaremos à conclusão de que ela importava numa atitude contra a Classe III. Mesmo quando racionalizavam o seu sentimento, assumindo atitude de proteção (“coitados dos pretos”; “explorar esses coitados”, etc.), estavam, com a sua reprovação, contra o batuque, procurando criar uma barreira contra o perigo de confundir-se uma classe e outra; guardando-se, mais ou menos arrepiados sob a simpatia aparente, do contato perigoso com a classe imediatamente inferior.

O GRUPO INTELECTUAL

Indiquemos com a letra P (pró) as pessoas que aprovaram a realização do batuque, e com a letra X as que se manifestaram contra. Imaginemos que cada classe social de Tietê seja composta respectivamente de 4, 8 e 12 pessoas; teremos o seguinte esquema, proporcional ao número de pessoas estudadas:

Classe I –
P. P. P. P.
Classe II –
IIa. X. X. X. P.
IIb. X. X. X. P.
Classe III –
P. P. P. P. P. P. P. P. P. P. P. P.

Como sabemos que os descontentes se encontram na Classe II, o que nos fere a atenção no presente esquema é a presença, na referida classe, de algumas pessoas que aprovaram o batuque. De fato, uma parcela dos seus componentes, entrevistados ou observados pelo autor, reagiu simpaticamente. Ora, excluído um caso ou outro, esta parcela era constituída de intelectuais: jornalistas, estudantes e, sobretudo, professoras da Escola Normal e do Ginásio local. Mais ainda: foram intelectuais desta classe que orientaram e organizaram a festa. Junto deles a nossa missão encontrou a maior simpatia e sem eles teria sido difícil uma compreensão apreciável do batuque.
Assim, temos que os intelectuais da Classe II não participaram da animosidade dos outros membros da sua classe, mas se uniram, de certo modo, na aceitação, às demais classes. Parece, pois, que o critério da estratificação não serve para explicar semelhante ocorrência. Procuremos, pois, outra saída.
Se encararmos as classes sociais de um ponto de vista idealmente estático, ignorando, por um momento, o movimento incessante da mobilidade vertical que as está sempre compondo e recompondo, poderemos dizer que elas nos dão uma visão horizontal da sociedade. Dispõem-se à maneira de camadas horizontais superpostas.
Mas se encararmos os grupos ocupacionais em vez das classes, veremos que muitos deles – a maioria mesmo – nos oferecem da sociedade uma visão vertical. No grupo dos advogados e dos médicos, por exemplo, há elementos de todas as classes da sociedade, de tal forma que, se quisermos estabelecer uma imagem gráfica destes grupos, teremos que figurar uma coluna, correndo de alto a baixo a escala social. Além do sentimento de classe, temos que considerar um sentimento de grupo, criando relações e reações além das de classe, mais gerais. Para o caso de Tietê, é preciso levar em conta este último a fim de compreender atitudes aparentemente contraditórias.
Do ponto de vista da situação de classe, os intelectuais de Tietê funcionavam normalmente como os demais membros da sua classe respectiva; mas na apreciação de uma conjuntura que apelava sobretudo para o seu esclarecimento e a sua cultura, formavam, ideologicamente, um todo autônomo, funcionando enquanto grupo diferenciado das classes, cortando-as verticalmente. Lembremos que esses intelectuais não formavam, propriamente, grupo ocupacional, havendo entre eles professores, advogados, estudantes, artistas, etc. Formavam, como os intelectuais de todos os lugares, um grupo digamos ideológico, unido pelo trato das coisas do espírito e o sentimento de participarem nalguma coisa comum – a vida intelectual. Quando a conjuntura apela para essa base comum, eles funcionam em bloco mais ou menos homogêneo, mas quando vai ao ponto de comprometer, a fundo, as próprias bases das classes, nem sempre se mantém a comunhão ideológica.
Em Tietê, como vimos, os intelectuais das Classes I e II (IIa e IIb) se manifestaram, ante o batuque, como bloco unido, acima dos sentimentos de classe. A segurança que os da Classe II sentiam enquanto intelectuais foi mais forte que o pequeno abalo provocado pelo batuque – e que atingiu os demais membros da classe. Isto não quer dizer que em todas as situações da vida cotidiana se dê o mesmo. No caso em apreço, a aprovação do advogado A, membro da Classe I, se baseava em motivos análogos aos do professor B, da subclasse IIa, ou do estudante C, da subclasse IIb; nesta circunstância, pois, A estava mais próximo de B e de C que do coronel D, membro da sua própria classe, e assim por diante. No entanto, para as questões mais ligadas à manutenção da posição social – casamento, vida social, etc. –, cada um se acomodaria melhor com os membros da classe respectiva, mesmo sentindo pouca comunhão intelectual em relação a eles.
Deste modo, a análise da opinião, em Tietê, por ocasião do batuque por nós presenciado, mostra que ela se ordenou conforme dois eixos: um horizontal, segundo as camadas de estratificação social; outro vertical, segundo um grupo, o dos intelectuais, cuja unidade de pontos de vista, no caso, se sobrepôs às injunções de classe. Se a pesquisa fosse aprofundada, e a ocasião escolhida mais decisiva sobre os movimentos da opinião, veríamos, provavelmente, a insuficiência do esquema traçado. Diante duma comoção realmente profunda da consciência coletiva, poderíamos discriminar o entrecruzamento das reações na Classe II, por exemplo, dentro da qual agiriam com mais nitidez os interesses dos grupos ocupacionais, confessionais, etc. A presente tentativa de “instantâneo sociológico” vale apenas como amostra relativamente simples de mecanismos bem mais complexos.

RELIGIÃO

Como ficou dito, partiram do vigário local as invectivas mais acerbas contra a realização do batuque. Segundo ele, as danças de negro estavam caindo no esquecimento e a nossa curiosidade malsã poderia despertar a sua vitalidade adormecida. Disse que havia conseguido melhorar as condições morais dos negros de Tietê e, graças à sua atividade, não havia mais defloramentos, bastardias e uniões ilegais (fui informado, em seguida, que o otimismo do vigário era excessivo). O batuque poderia perturbar o equilíbrio penosamente obtido e abrir um período de relaxamento moral, ponteado de novos batuques. Esboçou um anátema contra os organizadores da festa e contra nós, da universidade, que “nos divertíramos” à custa dos pobres negros.
Em seguida à longa palestra, procurando eu mostrar o interesse puramente científico da nossa viagem (o que ele rebatia tenazmente), terminou o cônego por afirmar que um batuque discreto, de pretos adultos(6) sem alarde, fora da cidade, apenas para nós e algumas pessoas, não teria sido maléfico nem lhe despertaria a reprovação (“até eu ia ver”). Mas ficássemos avisados que ante outra tentativa daquelas ele, do púlpito, levantaria o povo contra nós. Como se vê, o vigário não era contra o batuque em si: o que temia era o escândalo, para falar linguagem eclesiástica. Via o perigo das suas ordens serem transgredidas e diminuída a sua autoridade.
Procurei ouvir a opinião de pessoas ligadas à Igreja mas não fui feliz; geralmente desviavam o assunto, e assim pude verificar que muitas pessoas da Classe II estavam aborrecidas com o batuque por motivos diferentes dos do vigário, enquanto excelentes católicos da Classe I permaneciam na sua atitude de simpatia, sem partilhar, também, da reprovação eclesiástica. Reprovação que veio, portanto, confirmar a interpretação proposta, de que as reações eram guiadas pelo sentimento de segurança – sendo diferentemente atingidos, é claro, os interesses da Igreja e os da Classe II.
Ouvi o presbítero da Igreja Presbiteriana e mais uma família da mesma confissão: enquanto protestantes, não opunham ao batuque senão os motivos gerais – disse-me o presbítero – com que as autoridades protestantes se opõem a qualquer divertimento profano. Mas, no caso, esta oposição não chegou a se manifestar.
A título de curiosidade, note-se que o vigário andava, na ocasião, turrando com pretos e brancos de todas as classes, pretendendo que as moças não frequentassem bailes e, como é natural, encontrando resistências e criando tensões. A atmosfera era quase de luta. Pouco antes do batuque, havia negado comunhão a toda a Confraria de São Benedito (composta de pessoas de cor), porque membros dela tinham dançado no Carnaval em desobediência ao que havia determinado. Tinha igualmente proibido que fossem batucar, e provavelmente grande parte do seu aborrecimento provinha das transgressões verificadas. No batuque, aliás, anotei várias referências, magoadas ou jocosas, ao pastor severo. Uma das modas, por exemplo, dizia (não estou seguro de haver registrado corretamente o último verso):

“Sinhô vigário,
Nóis nun gosta de candonga,
O baile pá sê bão
Há de tá dançando a conga”.

E numa das suas tiradas o cantador Paulo de Lima observou:

“O vigário dessa comarca
Diz que está numa arrelia”.

CONCLUSÕES

1 – A opinião pública de Tietê, em relação ao batuque ali realizado em maio de 1943 (promovido pela prefeitura e assistido por uma missão universitária), estava estreitamente ligada à classe social dos indivíduos estudados.
2 – A reação dependia do sentimento de segurança, não atingido nas Classes I e III, mas sim na II e na ação eclesiástica. Reagiram contra, portanto, as classes, grupos e indivíduos ameaçados no seu prestígio, social ou moral.
3 – Dado o fato de a pequena crise ter afetado, não a base econômica, mas a situação de classe, o sentimento de segurança era relativo ao sentimento de classe e à posição social.
4 – Os intelectuais funcionaram, na conjuntura, como grupo autônomo, desligado das classes por que se distribuíam os seus membros.


Eexto publicado originalmente em Sociologia – Revista Didática e Científica, vol. IX, n. 2, 1947. Foi mantida a formatação bibliográfica do original.

NOTAS

Sobre Tietê e o seu batuque, consultar-se-ão com proveito os trabalhos do historiador Benedito Pires de Almeida, publicados na imprensa local e paulistana, na Revista do Arquivo e no Boletim do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Do maestro Afonso Dias há uma interessante monografia não impressa, que consultei em cópia datilografada, sobre “O batuque”. Finalmente, na tese de doutoramento da professora Lavínia Costa Vilela existe uma descrição do batuque por nós presenciado em Tietê (a tese ainda não foi impressa, e por isso não a pude consultar).

(1) A primeira moda de saudação, no batuque, dizia:
“Oi meu bem,
Nóis devemo agradecê,
Oi meu bem,
O prefeito da cidade;
Oi meu bem,
Deixou nóis adiverti
Oi meu bem,
Cum toda sinceridade,
Oi meu bem,
Nóis devemo agradecê”.

(2). Não tenho dúvida que semelhante aristocracia predomine e dê o tom em Tietê, mas não pude verificar acuradamente a sua composição. Assim, por exemplo, estou informado que, de alguns anos a esta parte, elementos novos, italianos e sobretudo filhos de italianos, conseguiram certa proeminência social. Mas até que ponto entram na composição desta classe, não averiguei.

Segundo informou o professor Menênio de Campos Lobato, catedrático de Sociologia da Escola Normal de Tietê, ao professor Emílio Willems (de quem recebi a informação), os italianos e ítalo-brasileiros começaram a ter prestígio de uns 20 anos para cá, tendo sido a política a sua via de ascensão social. Aliás, é frequente, no Estado de São Paulo, a política desempenhar tal função, sancionando uma preeminência que, enquanto é apenas econômica ou cultural, custa muito mais a ser reconhecida.

Os que conhecem a zona da Baixa-Mogiana sabem que o Partido Democrático, mas sobretudo, sob o governo Armando Salles, o Partido Constitucionalista, serviram, em muitas cidades, de via de ascensão para os ítalo-brasileiros, até então tolhidos pelo conservantismo e o espírito de casta da aristocracia rural perrepista. Um estudo de outras zonas provavelmente mostraria ocorrências análogas. (Note-se que o primeiro ministro ítalo-brasileiro que houve no Brasil foi, se não estou enganado, o sr. Vicente Rao, saído das fileiras daqueles partidos.)

Lembremos, entre parênteses, que as atuais eleições elevaram às Câmaras federal e estadual os primeiros deputados sírio-brasileiros, para os quais se abriram todos os partidos mas, especialmente, o Partido Social Progressista. Os candidatos nipo-brasileiros não tiveram ainda grande sucesso.

(3) Assim como notei, em vários membros da Classe I, simpatia protetora pelos seus negros, registrei, da parte destes, afetuoso reconhecimento pelos maiorais que os deixavam folgar. Uma das modas do batuque foi a seguinte:
“Seu Legarinho pá prefeito,
O Tietê tá endereitando,
A espadilha tá na mesa,
Sete copa tá jogando”.
Os batuqueiros se referiam ao sr. Olegário Bueno de Camargo Penteado, “seu Olegarinho”, fazendeiro, chefe político e, na ocasião, prefeito municipal de Tietê. Note-se a imagem para significar prestígio, importância, faculdade de decisão, vazada em valores do jogo do truco.

(4) Esse bairro, habitado por gente bem pobre, na maioria de cor, foi o quartel-general do batuque, e ainda lá existe o terreiro em que se dançava outrora, e onde ainda se dança, nas raríssimas vezes em que o fazem. Visitei-o minuciosamente, entrevistando velhos batuqueiros, guiado pelo meu distinto colega professor Afonso Dias, catedrático de Música da Escola Normal de Tietê e principal orientador da festa. O historiador Benedito Pires de Almeida tem mais de um estudo sobre o velho bairro. Veja-se, por exemplo, a separata recente da Revista do Arquivo, vol. CVII: “Festas e tradições de Tietê”.

(5) Daqui por diante, as expressões situação de classe, sentimento de classe e posição de classe serão empregadas segundo a definição que acaba de ser tentada.

(6) Precaução inútil: o batuque só é dançado por adultos, na quase totalidade gente madura e, mesmo, macróbia.