usp_o.php Revista USP 118 – Dossiê 4: Convívio com Antonio Candido – Jornal da USP

Arte sobre foto de Francisco Emolo/USP Imagens

Convívio com Antonio Candido – Momentos
 

.João Baptista Borges Pereira

resumo

Este artigo traz um depoimento sobre o convívio e a amizade de João Baptista Borges Pereira, Professor Emérito do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo, com Antonio Candido, desde o primeiro contato que tiveram, em 1955, quando Borges Pereira prestava o vestibular para Ciências Sociais na USP, em que Antonio Candido foi seu examinador para a prova de redação, até a conversa por telefone um dia antes da morte de Candido, em 2017.

Palavras-chave: Antonio Candido; Maria Antonia; Unesp; amizade.

abstract

This article offers a testimonial about the friendship between João Baptista Borges Pereira, Emeritus Professor from the Anthropology Department of the University of São Paulo, and Antonio Candido, since their first contact in 1955 − when Borges Pereira was taking the entrance exam for Social Sciences at USP, and Antonio Candido was the examiner assessing his writing test − up to their conversation over the phone the day before Candido died in 2017.

Keywords: Antonio Candido; Maria Antonia; Unesp; friendship.

1955. Entrei pela porta ampla, toda de ferro e vidro, do prédio da Rua Maria Antonia, logo de manhã, onde iria realizar a prova de redação no vestibular em Ciências Sociais. À minha espera, solidário comigo, andando pelo vasto saguão do prédio, estava Jorge Nagle, meu amigo de infância e colega nos cursos Ginasial e Normal do Instituto de Educação Leônidas do Amaral Vieira de Santa Cruz do Rio Pardo, nossa cidade. Mais do que eu, Nagle estava ansioso para saber o nome do professor que iria me examinar. Disse-lhe o nome, desconhecido de ambos. Nagle foi ver pela janelinha da porta o desconhecido examinador.
Viu o “desconhecido” e foi logo me dizendo: “Trocaram o examinador. Você vai ser examinado pelo Antonio Candido”. Fiquei petrificado. Afinal, Candido, que eu não conhecia pessoalmente, fora professor de minha professora de sociologia do Curso Normal – Adalgiza Araújo de Castro Rangel. Em suas aulas bissemanais ela se baseava em cursos que tivera com Fernando de Azevedo e, principalmente, com Antonio Candido. Ela narrava apaixonadamente em seu curso como eram as aulas de Candido, quais os temas por ele preferidos, quais os seus recursos didáticos. Enfim, ela tecia semanalmente o perfil de um admirável professor ministrando aulas de uma admirável disciplina pela qual me apaixonei. As aulas dessa professora permitiram que eu delineasse Antonio Candido como uma espécie de “mito distante” que eu, então, imaginava nunca iria conhecer. Tudo isso veio à minha memória quando entrei na sala e pude conhecê-lo pessoalmente.
De forma elegante, cumprimentou os candidatos e colocou na lousa o tema da redação – O homem nasce, vive e morre nos braços da sociedade. Perguntei-lhe, um tanto ousadamente: “Professor, o tema pode ser focalizado do ponto de vista da sociologia?”. De pronto, ele me respondeu: “Pode, mas a sua redação será avaliada do ponto de vista literário e sociológico”. Aceitei o desafio, o duplo desafio, e fiquei entre os 11 aprovados naquele vestibular.
Reencontrei Antonio Candido no 2º ano de Ciências Sociais, em curso com duração de dois semestres. O programa tinha como tema central organização social, baseado principalmente na antropologia social inglesa, o que me levou definitivamente para a área de uma antropologia profundamente mesclada à sociologia. A minha professora de sociologia tinha razão: as aulas de Antonio Candido eram admiráveis, não só pela sua didática, mas pela forma aparentemente leve de abordar temas complexos – mais do que isso: às vezes, sem quebrar o seu estilo elegante, ele dedicava tempos finais das aulas para imitar colegas. A classe esperava ansiosa o instante em que ele colocava em cena Roger Bastide, Florestan Fernandes, Egon Schaden, Cruz Costa e, principalmente, Fernando de Azevedo. Foram momentos inesquecíveis de um mestre inesquecível.
Durante essas aulas (1956) ele usava bastante a sua rica experiência de pesquisador do mundo rural paulista. São experiências que estavam em sua tese de doutorado – Os parceiros do Rio Bonito –, publicada em livro quase dez anos depois, que se tornou um clássico de literatura sociológica do Brasil. Ele aproveitava esses instantes de suas aulas para imitar o caipira por ele entrevistado. Lembro-me que a seu pedido recolhi, em minhas férias de julho, modas caipiras do Vale do Paranapanema.
Meu reencontro com Antonio Candido ocorreu em meados de 1957. Após aula com o professor Azis Simão encontrei-o à minha espera no corredor da faculdade, da saudosa “Maria Antonia”. De modo elegante, convidou-me a entrar em sua pequena sala e lá me surpreendeu duplamente: primeiro, ao me oferecer como presente separata de seu projeto A Estrutura da Escola, publicado no Boletim do Centro de Pesquisas Educacionais, no Rio de Janeiro. Era um presente que o professor me fazia como forma de me parabenizar por eu haver, mesmo ainda aluno, conseguido vencer concurso para professores de Sociologia Geral e Educacional das escolas normais do Estado; segundo, por ficar sabendo que o intelectual que conheci como meu professor havia já lecionado Sociologia da Educação por imposição (segundo ele) do então chefe da cadeira, professor Fernando de Azevedo.
Nessa oportunidade nenhum de nós saberia que depois de quatro anos seu projeto seria o grande esquema teórico que me permitiu realizar o mestrado com dados empíricos colhidos da minha experiência como diretor do Ginásio Estadual de Vila Diva, no bairro de Sapopemba, em São Paulo. A tese que tanto deve a Antonio Candido, A escola secundária numa sociedade em mudança, saiu em três edições pela Livraria Pioneira Editora (1969).
Na altura de 1960 compusemos uma leva de professores da USP que foram consolidar os Institutos Isolados, hoje Unesp, recém-criados pelo governador Jânio Quadros. Antonio Candido e eu fomos para o oeste do Estado: ele foi para Assis assumir e estruturar a cadeira de Crítica Literária e eu fui para Presidente Prudente, para assumir a cátedra de Antropologia. Em 1963 estávamos de volta à USP, à “velha” Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, após liberação de verbas pelo governador Carvalho Pinto.
Na USP, embora em departamentos diferentes, mantivemos contato permanente, em especial no Instituto de Estudos Brasileiros, onde compúnhamos o Conselho do IEB com os professores José Aderaldo Castelo, Eduardo Kneese de Mello, Sérgio Buarque de Holanda, entre outros.
Tive, também, a oportunidade de coparticipar com o professor de inúmeras bancas (mestrado, doutorado e livre-docência). Dentre tantas, uma ficou em minha memória. Estávamos examinando uma candidata à livre-docência, que respondia sempre às questões levantadas pelos examinadores de forma quase agressiva. No intervalo, indo do salão nobre à cantina do café, Candido revelou-me estar surpreso com o tom das respostas da candidata que ele conhecia pessoalmente como pessoa muito elegante e educada. Dei-lhe a minha interpretação: a candidata não obtivera nota 10 em seu doutorado, talvez isso a tenha colocado numa espécie de defesa. Nesse momento, tive a grande e surpreendente revelação de Candido: “Se não conseguir tirar 10 fosse motivo de atitudes grosseiras, então eu teria virado a mesa no meu doutorado [Os parceiros do Rio Bonito]”. E completou: “Eu nunca obtive um 10 em minha vida”. Confesso que fiquei perplexo com a confissão do mestre, pois Os parceiros do Rio Bonito era e é, ainda hoje, modelo de tese que se tornou um clássico, pelos dados de pesquisa e pelas reflexões ensaísticas em sociologia. Ainda perplexo com a revelação, quis saber do meu permanente professor o porquê dessa nota. Ele me respondeu tranquilamente: “Foi o professor Roger Bastide o responsável. Ele me disse que não saberia dizer se a minha tese era de sociologia ou de antropologia. Por essa alegada ambiguidade teórica me deu 9”.
Depois de aposentar-se, o professor Candido raramente ia à FFLCH. Para manter contato com o mestre passei a lhe telefonar semanalmente, em geral, às quartas-feiras. Vez ou outra ia à sua casa para visitá-lo pessoalmente. Num desses telefonemas ele me surpreendeu ao pedir-me que na primeira oportunidade o acompanhasse a um culto dominical da Igreja Presbiteriana Independente, com uma exigência: que o pastor não fizesse qualquer referência à sua presença na igreja. Foi então que ele me contou sua convivência inesquecível com uma professora protestante do Colégio Mackenzie, em que ele foi aluno, lá em Poços de Caldas. Essa professora ensinou-o a orar, orientou-o a ler, se possível, diariamente a Bíblia e o familiarizou com hinos que ela cantarolava com frequência. Combinamos, então, algo que nunca realizamos por múltiplas razões.
A última vez que lhe telefonei foi na quarta-feira, dia 10 de maio de 2017, à tarde. Emocionado, ele me consolou pela morte recente de Valéria, minha filha caçula. Lembro-me de suas últimas palavras: “O filho sepultar o pai é doloroso, mas nada comparável a um pai sepultar uma filha, experiência pela qual nunca passei. Nunca poderia imaginar que você fosse passar por isso. Incrível. Sua filha jovem se foi e eu aqui me aguentando nos meus 98 anos”.
No dia seguinte, o meu professor morreu inesperadamente.

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JOÃO BAPTISTA BORGES PEREIRA é Professor Emérito da Universidade de São Paulo, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie e autor de, entre outros, Italianos no mundo rural paulista (Edusp).

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