usp_o.php Revista USP 118 – Dossiê 2: Antonio Candido e as letras, na Fapesp – Jornal da USP

Arte sobre foto de Cecília Bastos/USP Imagens

Antonio Candido e as Letras,
na Fapesp
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Antonio Dimas

resumo

A Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) foi criada, por lei, em outubro de 1960 e implantada em maio de 1962, sob o governo Carvalho Pinto. Sua função principal é a de estimular, amparar e defender a política científica do estado de São Paulo realizada nos mais diversos setores de produção do conhecimento dentro do território paulista.
Originária da preocupação acadêmica de engenheiros, médicos e biólogos dedicados à pesquisa, a Fapesp desenvolveu-se de modo rápido e eficaz e, pouco tempo depois de sua criação, acolheu a inserção das letras em seu repertório, onde já figuravam as ciências sociais e a história.
Neste artigo, relata-se como se operou essa inserção graças ao empenho de Antonio Candido, da FFCL-USP.

Palavras-chave: Fapesp; Antonio Candido; Instituto de Estudos Brasileiros; Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras; USP.

abstract

The São Paulo Research Foundation (Fapesp) was established by law in October, 1960 and opened in May, 1962 during the term of office of Governor Carvalho Pinto. Its main assignment is to foster, support and defend the science policy of São Paulo State developed in the diverse fields of knowledge production within São Paulo territory.
Born from the academic concern of engineers, physicians and biologists devoted to researching, Fapesp developed quickly and efficiently; and shortly after its foundation it included Letters in its repertoire, of which Social Sciences and History had already been part.
This article tells how such inclusion took place thanks to the efforts of Antonio Candido from FFCL-USP.

Keywords: Fapesp; Antonio Candido; Institute of Brazilian Studies; School of Philosophy, Sciences and Letters; USP.

“Ser aluna de Antonio Candido
imprime caráter”
(Telê Ancona Lopez)

Foi no rescaldo da Segunda Guerra Mundial que surgiu a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, a nossa Fapesp.
Anos depois da criação desse órgão público, destinado ao financiamento da pesquisa no estado de São Paulo, Shozo Motoyama e sua equipe reuniram os documentos fundacionais da Fapesp. Graças a esses pesquisadores experientes em história da ciência, dois volumes essenciais sobre o assunto foram publicados pela própria Fapesp, em 1999: Para uma história da Fapesp: Marcos documentais e Fapesp: Uma história de política científica e tecnológica. É deles que nos valemos para estes dados factuais (Motoyama, Hamburger & Nagamini, 1999; Motoyama, 1999)(1).
Para sermos mais exatos, o primeiro ponto de partida se deu em 1947, quando os engenheiros Adriano Marchini (IPT) e João Luiz Meiller (Poli-USP) apresentaram ao reitor da USP, professor Lineu Prestes, um extenso relatório, que resultava de discussões preliminares entre engenheiros e médicos vinculados àquela universidade. Desta comissão ad hoc faziam parte vários professores, de procedência acadêmica diversa: André Dreyfus (Biologia), Breno Arruda (Direito), Francisco João Humberto Maffei (Engenharia), Francisco Lima de Souto [ou Souza?] Dias (?), Henrique Jorge Guedes (Engenharia), Jayme Cavalcanti (Medicina), Lineu Prestes, Marcelo Damy de Souza Santos (Física), Paulo Guimarães da Fonseca (Engenharia), Renato Locchi (Medicina) e Zeferino Vaz (Veterinária). Este relatório data de 21 de abril de 1947. Seu cerne explicitava-se logo no início, deixando claro o caldo cultural de que nascia:

“A ciência assume função cada vez mais preponderante nos destinos da humanidade.
Na guerra, é a ciência que multiplica e aperfeiçoa os métodos de ataque e de defesa e decide a vitória.
Na paz, é a ciência que orienta a economia e a indústria e faz a grandeza e o bem-estar das nações” (Motoyama, Hamburger & Nagamini, 1999, p. 21).

A travessia dessa massa de informação, com mais de 500 páginas, expõe o resultado de uma vontade coletiva e firme, que não se deixou abater pelos interesses contrariados, nem pela indiferença política, sempre a postos, aliás. Levando-se em conta a extensa argumentação encaminhada por aquela comissão de professores, o que se propunha nesse distante abril de 1947 era a constituição de uma política deliberada, que protegesse e estimulasse uma prática científica sustentável e contínua. Em conduta colegiada, esse grupo dispunha-se a enfrentar os desafios científicos e tecnológicos, que se abriam com o impacto da energia atômica recém-experimentada e com o consequente redesenho de fronteiras, já em esboço depois da vitória aliada. Delinear uma política que não ficasse ao arbítrio dos governantes de ocasião, de um lado. E, de outro, que afrouxasse o regime das cátedras universitárias, hostil à liberdade de pesquisa. Defendia-se nesse extenso documento, assinado por Adriano Marchini e por João Luiz Meiller, coordenadores do grupo, uma prática científica sistemática, respaldada pelo erário público estadual e isenta de caprichos personalistas. Uma quebra de conduta, enfim, em um país onde a ciência era, quase sempre, apanágio de estirpe e, portanto, acessível a poucos.
“De nossos dirigentes e responsáveis pelos vários setores da administração pública, poucos se compenetram suficientemente dos benefícios que a ciência e seus métodos poderiam proporcionar ao País”, alertava esse grupo de trabalho já bem familiarizado com a ciência acadêmica que se produzia no estrangeiro.

“Deles menor número, ainda, reconhece a necessidade de criar e manter, para a pesquisa, ambiente favorável. E como, em nosso país, praticamente não existem senão órgãos oficiais para cuidar da ciência e da pesquisa, fácil é avaliar as dificuldades com que se defrontam nossos poucos cientistas e pesquisadores para conseguirem levar avante sua tarefa e seus ideais, não obstante o ambiente quase sempre desfavorável que os envolve e desestimula. A ação de qualquer laboratório oficial é demasiadamente dependente da maior ou menor compreensão e simpatia de que é alvo nas altas esferas governamentais; e, enquanto os secretários de Estado se sucedem, às vezes num ritmo acelerado, como variam e entre que limites extremos flutuam essa compreensão e essa simpatia! E de como se ressente a continuidade de ação dos técnicos de cada laboratório, arrastados nos altos e baixos das mudanças de executivo!” (Motoyama, Hamburger & Nagamini, 1999, p. 27).

Seria gesto simplista associar de forma mecânica a criação da Fapesp com o término da Segunda Guerra Mundial, dois eventos de natureza diferente e óbvia. Mas não é precipitado, nem ingênuo. Porque a Fapesp surge da preocupação de alguns cientistas de São Paulo, que viam no término da guerra uma oportunidade de ouro para direcionar nossa política científica, sobretudo diante da nova geopolítica que se desenhava no horizonte e que, mais tarde, veio a receber o nome de Guerra Fria. Não que fossem nítidos os contornos do que poderia vir a acontecer, mas as polaridades pulsavam e reações a elas não eram descabidas. Para alguns homens da ciência feita em São Paulo, mormente no território da medicina e da engenharia, era propício o momento, se quiséssemos mesmo dar um passo rumo ao financiamento sistemático da pesquisa acadêmica, distante do alcance todo-poderoso da cátedra, caminho fácil para o personalismo das relações institucionais.
Imbuídos da necessidade de reverter o curso da pesquisa desprovida de política própria ou submetida ao jugo de mandatários acadêmicos, muitos dos quais bem satisfeitos nos postos que ocupavam, esse pequeno grupo de engenheiros e médicos, alguns com experiência já adquirida em estágios acadêmicos na Europa ou nos Estados Unidos, decidiu apostar num projeto que ali se delineava, mas que veio a ser implantado, de modo efetivo, anos depois. Porque foi só em outubro de 1960, no governo Carvalho Pinto, que esses homens tarimbados e maduros viram se transformar em lei o que era mero dispositivo da Constituição paulista. Começava, então, uma nova realidade universitária e científica no estado de São Paulo, propiciada pela inauguração da Fapesp, atenta às urgências contemporâneas.
Implantada em maio de 1962, no junho imediatamente seguinte começariam a ser distribuídos seus benefícios.
Como tentativa de visualizar de forma mais clara os procedimentos internos da Fapesp, fomos além do contato com seus arquivos e consultamos seus cinco primeiros relatórios anuais, que cobrem os anos de 1962, 1963, 1964, 1965 e 1966, acessíveis todos através de http://www.fapesp.br/publicacoes. Por meio deles, a atuação do órgão torna-se mais nítida. E isso ajuda na desconstrução de algumas percepções equivocadas e de alguns mitos que se criaram em torno dessa organização, dentro da comunidade acadêmica paulista e fora dela.
Com base no Relatório Fapesp 1962, ficamos sabendo que 507 projetos foram examinados logo nas primeiras rodadas de avaliação. A setorização de Humanas, então, contava com dois blocos apenas: ciências humanas e sociais/ história e geografia. Das ciências humanas e sociais vieram 34 pedidos; da história e geografia, outros 18. Cada uma delas representava 4% dos pedidos totais (Relatório Fapesp 1962, p. 4). No conjunto, às duas áreas couberam 13,70% do total da verba de 1962 (p. 3). Os pagamentos começaram a ser liberados a partir de 16 junho de 1962 (p. 4).
No entanto, as letras ainda não faziam parte desse pacote. Logo nas primeiras páginas desse relatório, uma anotação curiosa chamou-nos a atenção, pois que tentava explicar as negativas a alguns pedidos. Segundo se lê ali, nos dados referentes à demanda global dos auxílios daquele ano “não estão incluídos os pedidos que não se caracterizavam, sequer levemente, como pesquisa científica, os quais foram em número de sete: um de Engenharia, um de Geografia e História, cinco em Letras” (Relatório Fapesp 1962, p. 3).
Entretanto, entre as páginas desta primeira apresentação de contas da Fapesp, não é difícil surpreender três menções que relativizam a negativa acima, porque apontam-nos elas dois nomes que já começavam a se firmar na área de letras, naquele momento: Jorge Cândido de Sena (1919-78) e José Aderaldo Castello (1921-2011) (Relatório Fapesp 1962, p. 63). Um terceiro nome é mera coincidência: Boris Schnaiderman. Este nome aparece ligado à rubrica “Engenharia” (p. 64), mas segundo Jerusa Pires Ferreira, viúva do tradutor, falecido em maio de 2016, aos 99 anos, trata-se de primo homônimo daquele que introduziu e institucionalizou o russo nas Letras da USP.
Por extenso, o nome de Jorge Cândido de Sena era Jorge Cândido Alves Rodrigues Telles Grilo Raposo de Abreu de Sena, nascido em Lisboa, em 1919. Na vida profissional, ficou conhecido como Jorge de Sena, autor de bibliografia múltipla e invejável. Engenheiro de origem; poeta por fado; professor, tradutor, ficcionista, crítico e ensaísta por adoção; enfático por natureza, Jorge de Sena veio para o Brasil em 1960 e aqui permaneceu lecionando Teoria Literária, entre 1960 e 1965, em Assis e Araraquara, de onde migrou para Madison, Wisconsin. Jorge de Sena faleceu, prematuramente, em Santa Barbara, Califórnia, na condição de professor titular da Universidade da Califórnia. No Relatório 1962 (p. 98), seu nome aparece como Jorge Cândido de Sena, sob a rubrica “Engenharia”, sem maiores detalhes.
Quanto a José Aderaldo Castello, professor titular de Literatura Brasileira na USP e, por longos anos, diretor do Instituto de Estudos Brasileiros e fator de sua consolidação institucional, não há maior explicação para o subsídio recebido, exceto sua vinculação à História da FFCL-USP (Relatório 1962, p. 90). Sua filiação equivocada às Ciências Sociais se deve, talvez, à estreita colaboração que manteve com Eurípedes Simões de Paula, do Departamento de História da FFCL-USP, no sentido de se criar um centro de documentação próprio, o que veio a se concretizar em 1966, por intermédio da Fapesp (Motoyama, 1999, p. 125). É bem verdade que a rubrica relativa a Jorge de Sena e a José Aderaldo Castello é ambígua e diz apenas: “Responsáveis por auxílios”. E mais não diz, se são bolsistas eles mesmos ou tão somente responsáveis por pedidos de auxílio à Fapesp.
De qualquer modo, até onde pôde apurar esta pesquisa nos arquivos da Fapesp, não resta dúvida de que a primeira bolsa oficial para a área de letras foi destinada a Pérola de Carvalho, cujo nome aparece, pela primeira vez, no Relatório Fapesp 1963 (p. 103), sob a rubrica “Ciências Humanas e Sociais/Bolsas” (Relatório Fapesp 1963, pp. 103-4), na companhia de figuras que viriam a se tornar de peso no setor, tais como Bento Prado, Eva Alterman, Oswaldo Porchat, Paul Singer e outros. Em seguida, sob a rubrica “Ciências Humanas e Sociais/Auxílio” (Relatório Fapesp 1963, pp. 108-9) vêm o de outros, já em franca ascensão, tais como Egon Schaden, Fernando Henrique Cardoso, Florestan Fernandes, Francisco Weffort, Heleieth Saffiotti, João Cruz Costa, Luiz Pereira, Maria Izaura Pereira de Queiroz, Oracy Nogueira, Paula Beiguelman e outros.
Em caminho inverso ao da Missão Francesa que nos visitara, nos anos 30, para ajudar na implantação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, idealizada como incubadora de pesquisa, criavam-se agora, 30 anos depois, condições sistemáticas e claras para que fôssemos nos aparelhar, do ponto de vista científico e tecnológico, em instalações acadêmicas da Europa e dos Estados Unidos. Consequência secundária desse gesto, mas nem por isso menor, foi que nosso pendor acadêmico insuflado pela cultura francesa começava a conhecer concorrência séria. Além disso, nosso bacharelismo ornamental começava a sofrer desgaste, ameaçado por um pragmatismo científico a ser alcançado.
Não cabe aqui, é claro, um contraste entre a proposta de criação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, nos anos 30, e o projeto posterior que levaria à criação da Fapesp. Não se pode perder de vista, no entanto, que ambas guardam certa semelhança entre si, como incubadoras potenciais. Mas há diferenças também, oriundas, talvez, do caráter mais pragmático desta em relação àquela. Poucos anos depois de sua criação, pode ser que a despreocupação pelo imediato tenha se avolumado na FFCL-USP, em cujo interior, ainda nos anos 40, se abrigavam as Exatas e Biológicas em surda competição com as Humanidades. A ser admitida esta hipótese, poderíamos também admitir uma outra, consequência necessária daquela: a de que a iniciativa encabeçada por engenheiros e médicos viesse responder a uma necessidade inegável e nova, derivada da realidade social, econômica e tecnológica que se criara com o advento da era atômica, a que não poderíamos ser indiferentes, sob pena de nos tornarmos mais caudatários ainda em matéria de tecnologia. Nas várias entrevistas concedidas a Mariluce Moura para seu precioso Prazer em conhecer, esta mudança de rumo é lugar comum entre nossos cientistas (Moura, 2004).
A leitura pausada dos relatórios anuais da Fapesp é fonte preciosa para avaliarmos a expansão da consciência possível de então e os novos parâmetros cobiçados, bem mais amplos que o comodismo científico e tecnológico em que nos aninhávamos antes, no qual as eventuais novidades eram resultado muito mais da persistência individual do que de iniciativas conjuntas e deliberadas. Era o advento do coletivo realista, que questionava o individualismo romântico.
Nesse sentido, o depoimento breve de Warwick Kerr, o primeiro diretor científico da Fapesp, é sintomático.
Depois de visitar países estrangeiros, onde buscou modelos para a construção de um aparato do Estado destinado à pesquisa científica, aquele geneticista admitia, sem nenhum receio de ser crucificado por sua pregação competitiva:

“Além dessas lições, foram de grande importância os contatos que pudemos estabelecer com as Fundações de Amparo à Pesquisa de seis países estrangeiros ‘desenvolvidos’, especialmente quanto às possibilidades de incrementar intercâmbio de nossos pós-graduados (doutores), com os do Canadá, Inglaterra, Noruega, Suécia, França e os Estados Unidos, os quais estavam ficando fora da cogitação dos nossos pesquisadores. Verificamos, também, a grande importância que países, como a Inglaterra, estão dando para a formação de doutorandos. Assim, de 1961 a 1962, a Inglaterra gastou cinco vezes mais com a graduação de alunos do que de 1955 a 1957 e praticamente em todas as universidades os alunos classificados de primeiro a quinto lugar têm bolsas de doutoramento oferecidas pelas mesmas”(2).

No entanto, longe de adotar o que pudesse parecer política concentracionária em torno das exatas ou biológicas, a Fapesp, em sua conduta flexível, abriu espaço para a história e a geografia já no ano de 1962, o primeiro de sua atuação. Em 1966, dotações significativas foram votadas para a criação de um Arquivo de Fotografias Aéreas e para o estabelecimento de um Centro de Documentação Histórica, ambos sediados na FFCL-USP, sob o argumento genérico de que “as antíteses pesquisa técnica x pesquisa humanística e pesquisa básica x pesquisa aplicada são mais artificiais que reais” (Relatório Fapesp 1996, p. 12). De certa forma, pode-se compreender essas duas dotações iniciais como destinadas a setores suscetíveis a um mínimo de mensuração ou de datação. Dotações destinadas a projeto com materialidade numérica e até mesmo estratégica, enfim. Porque a cautela rondava e prudência, nas primeiras iniciativas, era recomendável. Nesse sentido, as palavras do segundo diretor científico da Fapesp, William Saad Hossne, são elucidativas: “Quanto às ciências humanas e sociais, não se pode dizer que seja uma questão bem definida na Fundação. Alguns depoimentos relatam discussões sobre financiar ou não pesquisas na área, mesmo assim foi bastante expressivo o auxílio para simpósios, publicações e para vinda de professores estrangeiros” (Motoyama, 1999, p. 124).
Padece a verdade se dissermos que as Humanidades sofreram discriminação inicial, faça-se justiça(3). Elas constam desde os primeiros relatórios anuais da Fapesp e receberam auxílio de pronto. Em muitas páginas do Relatório Fapesp 1962, o primeiro da série, encontramos seguidas referências a destinações orçamentárias encaminhadas para as ciências sociais e para a dupla sigla história-geografia, rubrica inicial, que foi desdobrada mais tarde. E não foram apenas subsídios individuais. Entre as instituições paulistas beneficiadas e dedicadas às Humanidades, esse Relatório 1962 menciona o Centro Regional de Pesquisas Educacionais, a Fundação Getúlio Vargas, a FFCL Sagrado Coração de Jesus/Bauru, as FFCLs de Araraquara/Marília/Presidente Prudente/Rio Claro/São José do Rio Preto/Sorocaba, a Faculdade de Direito/USP e a PUC-SP. O que importa salientar, aqui, é que as Humanidades não ficaram ao relento nesta etapa em que as atenções se voltavam, com prioridade e alto grau de profissionalismo, para uma política de construção de política científica no Estado.
Foi nesse contexto de mudanças, ditadas por forças externas e por necessidades internas, que se apresentou a figura de Antonio Candido, disposto a dar nova feição ao cenário da pesquisa historiográfica em letras, carente de ares novos.
Mas de modo mineiro, como era de seu feitio e gosto.

* * *

Calçado pela extensa militância na crítica literária em jornais paulistanos, que já vinha dos anos 40, e autorizado por bibliografia própria, em que os dois volumes de sua Formação da literatura brasileira (1959) eram a ponta mais alta, o fato é que Antonio Candido se credenciava para pleitear recursos públicos com vistas à remodelação, em surdina, da metodologia de nossa historiografia literária. Entre prefácios, rodapés, orelhas, artigos, entrevistas, apresentações, depoimentos, etc., Vinicius Dantas (2002), em sua exemplar Bibliografia de Antonio Candido, consigna a este intelectual pleno a quantia de exatos 799 itens produzidos entre 1934 e 2001. Desses 799, salvo engano de aritmética, 304 foram escritos entre 1934 e 1961, ano este que antecede a aceitação de seu primeiro pleito junto à Fapesp, em favor de Pérola de Carvalho, inscrita pelo Processo 63/0018-6 R.
Confiante nessa produção e por ela sancionado, criava-se, pois, o momento adequado para a elevação de patamar técnico no setor, incentivado a se socorrer de fontes primárias de agora em diante. Emergia, pois, uma tentativa de se conciliar o texto literário e seu contexto, sem arranhões recíprocos nem especulações abusadas.
Como esforço abrangente de apreensão do fenômeno literário brasileiro, ora no plano da criação, ora no plano da crítica, os resultados de monta tinham surgido, anos antes, entre 1952 e 1959. Parece que ansiávamos por avaliações críticas de amplo alcance, nesse terreno.
Em 1952, Wilson Martins publicara A crítica literária no Brasil, balanço mais recente do gênero, salvo engano. Mesmo reconhecendo “o risco das graves imperfeições”, por causa da inexistência prévia de “um levantamento bibliográfico perfeito” (Martins, 1952, p. 20), este ensaio de sistematização histórica e crítica foi distinguido com prêmio. Sua segunda edição, em 1983, ganhou acréscimo considerável. O que havia surgido como volume único, tornou-se dois, nesta edição.
Entre 1955-59, foi a vez de Afrânio Coutinho coordenar e publicar seus quatro volumes originais sobre A literatura no Brasil, balanço coletivo que reunia nossos críticos de maior relevo no momento, em esforço conjunto para avaliar nossa produção desde os tempos coloniais até o Modernismo.
Em outubro de 1956, o jornal O Estado de S. Paulo publicava o número inaugural daquele que viria a ser um dos suplementos literários de maior repercussão nacional, dirigido por Decio de Almeida Prado e idealizado por Antonio Candido(4). Ao longo de seus quase dez anos de existência, muita informação nova sobre literatura brasileira circulou por ele, sem mencionar, é claro, o que se publicava sobre literatura europeia, norte-americana e hispano-americana.
Uma confluência de fatores favoráveis dava ensejo, pois, a grandes modificações que visavam à criação e à transmissão da informação de cunho literário.
E é exatamente nessa década de 50 que acontece o ingresso formal de Antonio Candido no ensino superior de literatura. É no final dessa década que se dá sua guinada definitiva da sociologia para a literatura. Com a criação da Faculdade de Letras em Assis, em 1957, no governo Jânio Quadros, abria-se essa oportunidade. Com a descentralização do ensino superior em São Paulo, criava-se para ele uma porta que lhe permitiria abandonar a docência da sociologia. Como ele próprio haveria de admitir em maio de 1974, quando de seu concurso para professor titular de Teoria Literária e Literatura Comparada da FFLCH-USP, dava-se, “a partir de 1958, [sua] opção final pela Literatura, como professor universitário contratado pela recente Faculdade de Assis”(5). Em 2001, ao ser entrevistado por Heloísa Pontes para a Revista Brasileira de Ciências Sociais, o próprio Antonio Candido se encarregaria de contextualizar melhor esta mudança de rumo:

“Foi quando um amigo meu, José Quirino Ribeiro, a par dos meus problemas, sugeriu a Antônio Soares Amora que me convidasse para ensinar literatura brasileira na faculdade que este ia dirigir em Assis, uma das três que o governo do Estado estava criando no interior. Amora me convidou no fim de 1957, eu aceitei e comecei a participar no primeiro semestre de 1958 das sessões de organização da nova faculdade, no Instituto de Estudos Portugueses. Ela começaria a funcionar em 1959, mas se instalaria em 58, com alguns professores que dariam cursos preparatórios para o vestibular” (Pontes, 2001, p. 28).

Em doutoramento dedicado aos liames entre crítica literária e ciências sociais em Antonio Candido, Rodrigo M. Ramassote explica: “Os dois anos passados em Assis demarcaram uma nítida transição entre as etapas da trajetória acadêmica de Candido”. De acordo com Ramassote, essa mudança, mais do que apenas geográfica, foi também estratégica de um ponto de vista profissional, porque permitiria a Antonio Candido alcançar o “respaldo acadêmico necessário para legitimar a condição de professor e pesquisador da área de letras”. E, em apoio a seu argumento, Ramassote recupera ainda trecho curto de entrevista que Antonio Candido concedera a Gilberto Velho e Yonne Leite, em 1993: “[…] tal fato [a mudança de área docente] não passou despercebido aos olhos de Candido: ‘Foi bom passar dois anos fora da USP. Quando voltei, no começo de 1961, as pessoas já estavam habituadas à minha nova condição’” (Ramassote, 2013, p. 160).
É também naquele Memorial de seu concurso para professor titular de Teoria Literária e Literatura Comparada na USP que Antonio Candido expunha, de modo transparente e à guisa de balanço provisório de carreira, sua visão retrospectiva sobre princípios relativos à abordagem do texto literário:

“O esforço básico tem sido, desde que as posições teóricas e a prática adquiriram certa maturidade, reconhecer três momentos válidos na atividade crítica: enfoque do texto em sua autonomia relativa; consideração dos elementos de personalidade e sociedade; tentativa de estudar estes, não como enquadramento ou causa, mas como constituintes da estrutura. O candidato tem passado pelos três, com inclinação crescente pelo último, que parece permitir o tratamento específico do texto, enquanto sistema que se pode abordar em si mesmo, permitindo ao mesmo tempo manter o interesse pelos aspectos pessoais e sociais, quando for o caso”(6).

O arremate do parágrafo, na sua síntese exemplar, escancarava possibilidades que haveriam de modificar a essência dos estudos literários no Brasil, sem que se afrontasse a integridade do texto, nem o amputasse da realidade social, reduzindo-o a uma entidade autista.
A partir da segunda metade dos anos 50, portanto, a contribuição bibliográfica de Antonio Candido já não era de somenos, nem era acanhada sua atuação na área. Superada sua pendularidade inicial entre a sociologia e a literatura, é nos anos iniciais da década de 60 que Antonio Candido sente-se credenciado o suficiente para seus primeiros pleitos junto à Fapesp. Não bastasse sua bibliografia, na segunda metade dos anos 50, incrementara-se sua docência na área de literatura, quando, mal voltando de Assis, tornou-se ele professor interino de Teoria Geral da Literatura na FFCL-USP, por proposta de Antônio Soares Amora.
Em 24 de junho de 1959, em longo arrazoado, Soares Amora, professor titular de Literatura Portuguesa da FFCL, propunha a criação de uma “Cadeira de Teoria Geral da Literatura”. Entre os seis motivos substanciais, elencados com clareza, o de número 4 esclarecia bem essa necessidade: “Considerando que não existe na Secção de Letras desta Faculdade uma cadeira em que se estudem e se exponham, de forma sistemática, as teorias da literatura, da estética, crítica e história literária, para uma constante revisão de ideias e valores, e reconstrução, à luz das pesquisas mais recentes, de uma ‘teoria geral da literatura’”(7).
Uma vez institucionalizado em disciplina inaugural na USP, Antonio Candido acrescentava rumo paralelo à sua atuação em sala de aula e voltava-se para nova empreitada: apoiar muito de perto a criação do Instituto de Estudos Brasileiros, proposto por Sérgio Buarque de Holanda em junho de 1962. Na Reitoria da USP, Ulhôa Cintra, que já se mostrara uma das molas propulsoras da Fapesp, acolheu com tanto entusiasmo a iniciativa, a ponto de autorizar “a regulamentação do IEB antes do encerramento de sua gestão”, o que se daria em maio de 1963 (Caldeira, 2002, p. 60)(8), pouco tempo depois da iniciativa de Sérgio Buarque, portanto.
Nas reuniões preparatórias para a criação do Instituto de Estudos Brasileiros, Antonio Candido chegou mesmo a sugerir a criação de um núcleo duro, composto de história do Brasil, literatura brasileira, geografia do Brasil e etnografia brasileira, conforme se pode ver através da eficaz documentação reunida a respeito por João Ricardo de Castro Caldeira.
Uma vez instalado o IEB em 10 de outubro de 1962 (Caldeira, 2002, p. 58), preocuparam-se seus dirigentes em abastecê-lo de acervos bibliográficos e documentais, motivação primeira para sua criação. Como lembra Maria Odila da Silva Dias, em passagem que lhe atribui João Ricardo de Castro Caldeira, era o momento adequado para implementar e transferir, na prática, a longa experiência de Sérgio Buarque de Holanda com arquivos nacionais e estrangeiros (Caldeira, 2002, p. 54).
De modo sucinto, o que Antonio Candido propunha era o exame direto de documentação arquivística em benefício da literatura brasileira, assim como vinha fazendo Sérgio Buarque de Holanda no campo da história do Brasil. Com pincelada rápida, certeira e carregada de humor, bem ao gosto do retratado, Francisco de Assis Barbosa desenhou a figura daquele pesquisador aturado e afeito às fontes: “Rato de livraria, de sebos e agências importadoras de jornais e revistas especializadas, nada de importante escapava àquele rapaz alourado, magriço e alto, desajeitado e displicente, um tanto estabanado, que o uso do monóculo tornava ainda mais extravagante”. Esse era Sérgio Buarque, habitué de arquivos, dentro e fora do Brasil, incansável nessa função de vasculhar fontes primárias. Mas não só. Numa de suas habituais formulações sucintas, Antonio Candido retrata-o assim: “Desde muito moço aproveitou ao máximo as leituras e acumulou um saber que espantava os amigos. Sobretudo porque a sua curiosidade era dirigida igualmente ao passado e ao presente, à inovação e à tradição, com o dom contraditório de se apaixonar tanto pela minúcia quanto pelo conjunto”(9).
Não era muito diferente disso o comportamento investigatório que Antonio Candido apregoava. Descontado o estouvamento pessoal do seu velho amigo historiador, cujo bom humor era notório e surpreendente, o modelo que se preconizava, então, clamava pela junção eficaz dos ingredientes microscópicos que dormitam nas origens do texto poético com o resultado literário final, fosse de que natureza fosse, culto ou popular, elevado ou não. A busca era no sentido daquilo que o modelara, que o fizera como tal; daquilo com que fora constituído num determinado momento e espaço; da sua eventual progênie. Um dia, quando forem disponibilizadas suas anotações de trabalho, hoje em processamento técnico no IEB, fartos elementos emergirão a esse respeito.
Se em outubro de 1962 materializava-se o Instituto de Estudos Brasileiros da USP, três meses depois, no comecinho de 1963, materializava-se o primeiro pleito vitorioso de letras junto à Fapesp(10). Com data precisa de 8 de janeiro de 1963, Antonio Candido entrava com pedido de bolsa em favor de Pérola de Carvalho. Meticulosa, essa profissional formada em Letras pela USP e experiente assessora editorial pretendia investigar e esclarecer as conexões precisas entre Machado de Assis (1839-1908) e dois outros ficcionistas europeus: o inglês Laurence Sterne (1713-68) e o francês Xavier de Maistre (1763-1852) (Processo Fapesp 63/0018-6 R)(11).
Dado o pioneirismo da instituição e da proposta, o processo acima não dispõe, é claro, de alguns requisitos formais que foram se sobrepondo com o tempo. Ou, pelo menos, não os exibe entre suas páginas. No meio delas, no entanto, o que mais importa são as três páginas de “Observações do Professor Orientador” e as outras três da candidata à bolsa.
Na sua concisão habitual e indiferente ao tecnicismo empolado de muitos, Antonio Candido propunha uma tarefa de pesquisa como quem estivesse conversando na beira do fogão. Sem tecnicismos nem terminologia áspera, sua proposta é clara desde o início, o que não disfarça, no entanto, o fôlego nem o pique necessários. A citação é longa, mas necessária. Perdoem-me.

“Como é sabido, Machado de Assis continua a ser considerado o nosso maior escritor. Mas a seu respeito perduram hábitos críticos e eruditos que já não auxiliam, antes prejudicam a marcha dos estudos. A pesquisa a que se propõe a Licenciada Pérola de Carvalho representa um esforço para superar perspectivas tradicionais e esclarecer a sua obra (não a sua personalidade) sob uma luz diferente. Ela tenciona atacar de frente o que se pode chamar de ‘mistério machadiano’ – isto é, o problema da brusca mudança de rumos que, pela altura dos 40 anos, transformou um escritor de boa qualidade num escritor genial. Houve realmente esta brusca metamorfose? Teve causas que se possam determinar? Uma das respostas possíveis é a tentativa de analisar o fato através da revolução técnica e temática verificada na sua obra àquela altura; e isto, segundo a própria deixa do escritor, que no prefácio do ‘Braz Cubas’ se refere à adoção da ‘maneira difusa de um Sterne ou um Xavier de Maistre’.
Há de fato influência? Pode ser comprovada documentalmente e no plano das semelhanças internas? É possível averiguá-la através da sua repercussão em toda a economia da obra? Eis os pontos centrais da investigação projetada, que se desdobra nos tópicos expostos pela candidata” (Processo Fapesp 63/0018-6 R).

Com essa linguagem despojada começava a se pôr em pé uma empreitada investigatória que duraria anos e arrebanharia contingente expressivo de jovens, muitos dos quais vieram a ocupar posições docentes nas universidades de São Paulo e dos estados vizinhos, imbuídos de novas perspectivas de ensino e de pesquisa. Operava-se profunda modificação nos padrões da pesquisa historiográfica brasileira, não mais contente com a mera compilação bibliográfica, nem com o predomínio exclusivo do livro consagrado e muito menos ainda com a interpretação subjetiva, por mais consubstanciada que fosse. Começava um tempo de corrida aos arquivos e às fontes primárias, lição que herdávamos de Sérgio Buarque de Holanda e de Antonio Candido. Afinal de contas, era de Sérgio Buarque que vinha este alerta: “Não sou contra a ensaística ou a interpretação, mesmo hoje. Mas a pesquisa deve ser rigorosa e exaustiva. Senão, o resultado são apenas elucubrações às vezes brilhantes, mas desvinculadas da realidade” (Nogueira, 1988, p. 21).
Nesses primeiros anos da década de 60, numa ponta, atuava Antonio Candido; em outra, José Aderaldo Castello, com seu projeto em torno de revistas literárias, desenvolvido no IEB, a partir dos anos 70(12).
Em parceria fecunda e harmoniosa, sem prevenções recíprocas nem reservas ideológicas, José Aderaldo Castello e Antonio Candido conduziam suas disciplinas de modo hábil, delas resultando soberba orientação temática para os estudos de literatura brasileira na USP. Não fosse isso suficiente, sustentaram os dois consonância perfeita na condução dos primeiros pleitos da área junto à Fapesp, nos momentos em que Antonio Candido afastou-se para dar aulas na Sorbonne (1964-66) e em Yale (1968).
Sobre essa colaboração, Leila V. B. Gouvea colheu depoimento sereno, no qual Aderaldo Castello acentuou essa sintonia, entre outras menções:

“Houve sempre um entrosamento perfeito, entre nós e nossas cadeiras. Discutíamos os programas de um lado e de outro, para que não houvesse choques nem repetição. Se um autor era importante para uma cadeira, era importante para a outra. E havia um relacionamento harmonioso, perfeito. As duas cadeiras funcionaram assim passo a passo, paralelamente, sem conflito, sem atrito, sem competição, numa perfeita colaboração recíproca”(13).

Isso porque, em notável esforço transdisciplinar, o objetivo era apenas um: o da representação literária do Brasil como chave para o conhecimento do país. Ou, como admitiu o próprio Aderaldo Castello: “[…] não importava se um autor era considerado português ou não. Mas, se ele escreveu sobre o Brasil, era preciso ver até que ponto isto que escreveu se projetou através do tempo e contribuiu com um subsídio fundamental para um enriquecimento literário nosso através do tempo. Esse foi mais ou menos nosso critério e nossa visão do período colonial” (Gouvea, 2009, p. 258), eventualmente desdobrável para outros tempos, acrescentamos.
Basta percorrermos algumas páginas dos primeiros relatórios de letras da Fapesp para se ter uma ideia dessa transformação, que se dava no plano institucional e docente. Bastam os primeiros pareceres de avaliação para se confirmar essa mudança de rumos metodológicos. Basta essa visão de conjunto para podermos avaliar a extraordinária sintonia que se dava entre as disciplinas de Literatura Brasileira e Teoria Literária. Mas não só. Sintonia que se dava também entre a universidade e a fundação que se criava para impulsionar a pesquisa em nosso estado.
Dos projetos que vieram logo depois daquele de Pérola de Carvalho, em torno de Machado de Assis, encarregaram-se Maria Helena Grembecki, Nites T. Feres e Therezinha Aparecida Jardim Porto, que, mais tarde, tornou-se especialista do Acervo Mário de Andrade e sua mais persistente estudiosa, sob o nome de Telê Porto Ancona Lopez. Graças ao pioneirismo, à dedicação e à competência dessas quatro pesquisadoras, as Letras tiveram entrada auspiciosa naquele órgão estadual. Inaugurado com Machado de Assis, a continuidade ficaria assegurada através de Mário de Andrade e dessas três pesquisadoras. Em breve tempo, um arco literário firme e forte estabelecia-se, com duas figuras decisivas do nosso processo de modernização literária, em cada ponta: Machado e Mário, os dois MAs. Duas pontas que nos garantem a inserção no melhor da tradição literária periférica, mas relativamente autônoma.

* * *

Em 30 de abril de 1963, Pérola de Carvalho assinava o primeiro Termo de Outorga de bolsa concedida à área de letras pela Fapesp (Processo 63/0018-6 R). Na ocasião, o presidente do Conselho Superior era Ulhôa Cintra; o diretor presidente daquele órgão era Jayme Cavalcanti; o diretor administrativo era Celso Antonio Bandeira de Mello; e o diretor científico, setor-chave para a concessão, era Warwick Kerr.
Claro que isso não se fez de modo tranquilo e descarregado. Dadas as raízes acadêmicas da Fapesp, era natural que houvesse interesses contraditórios e rotas de colisão, perfeitamente cabíveis no arcabouço de uma compreensão possível. Letras encaixava-se nas ciências ou não? Como mensurar a literatura? Como despi-la de sua subjetividade indesmentível e palpável? Como fazer vista grossa para sua contingência histórica? Como se investiga, a sério, um assunto sem pipetas nem provetas?
Em livro indispensável sobre os 40 anos da Fapesp, Amélia Império Hamburger recolheu inúmeros depoimentos acerca daquela casa, tomados por ela ou por colegas de ofício (Hamburger, 2004). É a história da instituição vista por dentro. É documento polifônico. Sua grande riqueza nasce exatamente das vozes que se enroscam e se misturam, vindas de tempos diferentes e de espaços distintos, algumas contundentes, outras nem tanto; algumas modestas, outras nem tanto. Vêm de áreas científicas diferentes entre si também, mas – e isto é importante! – que se agregam para construir balanço histórico de qualidade, a despeito de seu forte timbre individual. Timbre de etnias diversas, como deixa transparecer, em arroubo de entusiasmo, o depoimento de Plínio de Arruda Sampaio: “Vou dizer que [a Fapesp] era um orgulho paulista, mas era um orgulho paulista do Vanzolini, que é italiano, do Tamura, que é filho de japonês, do Jorge Ori, que é japonês, do Jatene, que é libanês” (Hamburger, 2004, p. 518). São testemunhos ora pomposos, ora descontraídos, mas convergentes sempre, porque o que interessa é a recuperação discursiva de um esforço coletivo. Entre estes sobressai-se um, deveras saboroso, porque marcado por forte gestualidade italiana – presumimos – e porque brota de alguém habituado com a dura disciplina do laboratório e a ilusória indisciplina da vida boêmia. É de Paulo Vanzolini esse depoimento, no qual se divisa a medida desse impasse momentâneo e desafiador entre as ciências e as humanidades daqueles primórdios. Perguntado sobre os primeiros momentos de vida da Fapesp, revela esse zoólogo que cultivava cobras e canções:

“A Fapesp começou muito bem, mas houve problemas muito sérios. Por exemplo: O Kerr era contra as humanidades, uma questão de filosofia geral que deve, entretanto, ser bem-entendida. Um dia me falou: ‘Nêgo. Apareceu um cara querendo dinheiro para estudar sabe o quê? Grego’. Falei: ‘E daí?’. Ele: ‘Grego! Nêgo’. Não entrava na cabeça dele. O Warwick é um tecnocrata dos mais duros. O Cintra colocou as humanidades. Com o peso da autoridade dele, com sua grande cultura geral, chamou-o e disse: ‘Vai, vai ter’. Foi um embate, e o Warwick foi ótimo. Houve esse problema conceitual. Não quero dar uma expressão falsa do Warwick. Ele tinha essa ideia e isso era um conceito. Mas na hora em que Fapesp resolveu que iria ajudar também as humanidades, ele entrou nisso com a maior seriedade, não boicotou, nem sabotou. Ele é um sujeito de muito bom caráter, extremamente sério” (Hamburger, 2004, p. 496).

Por mais anedótico que pareça, este episódio revela elasticidade mental, vontade deliberada de modernização intelectual e suspensão de preconceitos aleatórios. Trata-se de declaração que só enobrece a instituição e seus pares, capazes de flexibilizarem suas posições, revendo-as em benefício de política intelectual mais ampla. Não custa lembrar também que vivíamos, naquele momento, um estado de liquefação civil, pois que o Golpe de 64 era recente e o cenário, como se sabe, não era nem um pouco favorável à inteligência.
Warwick Kerr foi o primeiro diretor científico da Fapesp nesse momento extremamente delicado de nossa vida acadêmica. Sua diretoria, como revela a própria designação, era e é fulcral na política intrínseca daquela organização. É para ela que convergem os projetos e é dela que saem eles, aprovados ou reprovados. É nela que se define o perfil do órgão, sua razão de ser, sua identidade primeira e última. A Diretoria Científica é a peneira final, de trama apertada e fina. Foi nessa diretoria, portanto, que se decidiu, poucos meses antes do nosso abafamento acadêmico prolongado, que as letras deveriam ser acolhidas.
Em abril de 1963, como dissemos acima, Antonio Candido plantava seu padrão naquele território. Em dezembro de 1964, Warwick Kerr demitia-se da Diretoria Científica, movido por outros interesses, também acadêmicos. Foi, portanto, na sua gestão, louve-se isso, que fomos acolhidos. Na gestão de alguém que se espantava com a possibilidade de ver uma horda de estranhos helenos entrando naquele prédio. De helenos ou de seus descendentes, próximos ou remotos.
Como projeto inaugural da área, a proposta era a de se estudar nossa literatura, mesmo sabendo-a “galho secundário da portuguesa”. Porque, se não o fizermos, lembrara o criador dessa imagem, poucos anos antes, “ninguém o fará por nós” (Candido, 1959, vol. 1).
Consciente dessa necessidade, posta com humildade estudada, mas trançada com fios de ligeira e justa tintura nacionalista, o que Antonio Candido propunha, enfim, era a admissão e a dignificação de uma fatia real de nossa cultura, mesmo que pouco suscetível à mensuração convencional. Formulada em termos de aparência despretensiosa e coloquial, sua proposta, no entanto, acenava com objetivos ambiciosos, uma vez que punha em campo um escritor brasileiro de primeira grandeza em suas vinculações literárias com duas fontes que são gabarito da cultura ocidental: a inglesa e a francesa. Combinar Machado de Assis com Laurence Sterne e com Xavier de Maistre exigia envergadura técnica e disposição física, mormente se levarmos em conta as condições materiais de nosso equipamento público encarregado da preservação histórica, ainda insatisfatório até hoje, em muitos casos.
Nessa proposta triangular, ficava implícito que não se tratava de submeter o brasileiro à esfera da influência estrangeira, como era vezo habitual, mas, sim, o de avaliá-lo no concerto de uma tendência literária despregada de territorialidade nacional estrita. No interior dessa proposta, no entanto, esboçava-se um paradoxo: o estudo do nacional, porém dentro de contornos transnacionais. Sem apego à doença do autor ou à sua origem humilde, como era de praxe na perspectiva autocomplacente de então. Ou então, o que é pior, explicar a excelência machadiana como possível descontração momentânea do cerco racista, que o constrangia, ou como retaliação discreta do escritor a essa moldura estreita.
Pérola de Carvalho ficou encarregada dessa tarefa primeira. Licenciada em neolatinas pela USP no final dos anos 40 e inscrita no programa de doutoramento da Literatura Brasileira, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, no começo dos anos 60; tradutora profissional vinculada a editora importante naquele momento, na qual viria a traduzir Umberto Eco (Apocalípticos e integrados, 1970; A estrutura ausente, 1971), anos mais tarde, Pérola de Carvalho era fluente em francês e espanhol e demonstrava “grande aptidão para os trabalhos de pesquisa literária”, segundo atestado assinado por Antônio Soares Amora, catedrático de Literatura Portuguesa na FFCL-USP, na ocasião (Processo Fapesp 630018-6 R).
Protocolos e formalidades à parte, a verdade é que seu projeto ressumava maturidade intelectual e segurança textual. É inviável transcrevê-lo na íntegra, embora fosse este o desejo. Mas alguns parágrafos podem bem dar o teor de sua intenção, que não só faz balanço do “estado da arte” da crítica machadiana, carente de novo patamar, como indica caminhos ainda hoje em andamento.
Seus dois parágrafos iniciais delimitam a questão e os três seguintes definem o perímetro dentro do qual se movimentará a pesquisa, que… infelizmente não resultou em livro, por razões ainda insondáveis.
Logo no começo, a proponente afirmava:

“A pesquisa projetada tenciona determinar, com o maior rigor histórico possível, aliado a um exame minucioso dos textos, em que medida e por que forma a influência de Laurence Sterne e Xavier de Maistre teria atuado na transformação técnica e temática verificada na obra novelística de Machado de Assis a partir de seu romance Memórias póstumas de Brás Cubas (1880). A essa transformação, convém frisar, devemos o fenômeno machadiano em nossa literatura.
Tais influências, embora afirmadas, nunca foram, todavia, investigadas segundo métodos rigorosos; daí a necessidade de passarmos do estado atual de sugestões para a pesquisa sistemática, procedendo a um trabalho comparativo de base que abrange quatro literaturas em três idiomas e um período histórico de século e meio aproximadamente” (Processo Fapesp 63-0018-6 R).

Para atingir esse propósito, a candidata à bolsa se propunha uma série de tarefas intermediárias, convergentes todas para um close reading bem menos ortodoxo e, por conseguinte, mais sedutor. Nessa sua abordagem herdada do New Criticism, não haveria de faltar elementos de avaliação histórica e cultural, acréscimos oportunos que flexibilizassem e enriquecessem a leitura textual, o que sempre foi do gosto do seu orientador. Nessa conduta crítica, garantia a candidata, seriam ainda incluídos outros itens ligados à “construção novelística, à escolha de temas, à elaboração estilística, à consciência artesanal, ao tempo e à integração cultural” (Processo Fapesp 63-0018-6 R).
Ia muito além da conhecida e repisada crítica machadiana a contribuição dessa pesquisa sobre um escritor, que já nos enxertara na esfera da maturidade ficcional, de modo incomum. Era a vez, agora, de o retomarmos em suas vinculações europeias de maneira crítica, sistemática, verificável e concreta. Era um modo de estancar o subjetivismo e a intuição crítica por meio de instrumentos documentais, embora esse caminho, sabemos disso todos os que lidam nessa área, não seja recurso infalível por si só. Por outro lado, deslocava-se o foco preferencial da crítica: em vez do ciúme que macerava um dos personagens machadianos, acabrunhado na sua integridade masculina corroída, instalavam-se hipóteses cautelosas sobre a construção mesma daquele modelo de narrativa, tão divergente do nosso bom-mocismo realista.
Precavido, mas determinado a “superar perspectivas tradicionais”, o orientador apostava na sua candidata, mas não prometia nada a curto prazo. Antes, pelo contrário. É “uma tarefa árdua e longa, que não se poderia confiar a um neófito, mesmo de talento”, advertia ele. Por meio dessa cautela estratégica, Antonio Candido apostava suas fichas no projeto e na candidata, ao mesmo tempo em que se acercava, de modo cuidadoso, da instituição, já adivinhando, talvez, alguma resistência da parte dos médicos e engenheiros que compunham aquele núcleo inicial da Fapesp. Sua tática era a de conquistá-los, não a de afrontá-los. Isso nunca foi de seu perfil. “Trabalho de formiguinha”, como gostava de dizer. De formiguinha mineira, diríamos nós.
Delimitado o campo de ação, garantida a retaguarda metodológica e assegurado o orientador, cabia, então, à candidata – dotada de “perfeita honestidade intelectual”, segundo se lê na carta que a recomenda e que é assinada por ele – a tarefa de inaugurar mais um duto de atuação naquele órgão jovem, onde ainda circulavam acadêmicos ressabiados diante da novidade.
No caso deste pleito inaugural das letras, os pareceres são bem indicativos de certa inquietação e de certa indecisão perante o fato novo. Houve os que não hesitaram, assim como houve os que titubearam. Houve até quem se mostrasse reticente diante do primeiro relatório e pedisse dispensa, sob alegação de insegurança e de desconforto, compreensíveis se nos lembrarmos de que se tratava de situação inusitada. O despacho interno de um dos funcionários, relativo ao encaminhamento da primeira pesquisa, permite-nos entrever essa hesitação. No meio destes papéis quebradiços que tratam dos vínculos entre Machado de Assis/Laurence Sterne/Xavier de Maistre, depara-se, de repente, com uma nota, escrita provavelmente por um funcionário, na qual se lê que o dr. X “julgou-se prejudicado para julgar o pedido, uma vez que trata-se [sic] de literatura (não é pesquisa)”.
O fato novo apanhava de surpresa alguns assessores – raros, muito raros ainda na área de Humanidades – que não se sentiam à vontade no desempenho da tarefa e eram escrupulosos o suficiente para admiti-lo.
Os quatro relatórios massudos apresentados por Pérola de Carvalho, ao longo de seus três anos de pesquisa, poderiam muito bem ser editados tal como estão, dados sua qualidade e seu alcance, caso houvesse ocasião propícia. São modelares. Dotadas de uma perspicácia e de um tino investigatório incomum, suas tantas páginas vão muito além dos atuais procedimentos institucionalizados, que primam pela assepsia e pelo comedimento factual, em nome de uma suposta objetividade. Seus relatórios desbravam caminhos até então pouco palmilhados de modo sistemático e público. O primeiro deles, por exemplo, datado de abril de 1963, põe o dedo, de chofre, na ferida delicada, que pouco mudou ao longo de todos estes anos, sobretudo nos arquivos distantes dos centros urbanos mais densos. Já no primeiro parágrafo, a pesquisadora aponta para a indigência infraestrutural desses acervos, vistos muito mais como depósitos de descarte de papéis inúteis ou como cabides de emprego de apaniguados políticos do que como abrigo dinâmico de nossa trajetória social e cultural. De modo franco, Pérola de Carvalho vai direto ao ponto, em tom de falso desalento: “Tentar, através de um levantamento de dados históricos, comprovar e precisar influências na evolução estrutural de um escritor não é, sem dúvida alguma, tarefa das mais suaves. A pobreza e a desorganização de nossas fontes de informação são o primeiro e sério obstáculo com que depara o pesquisador entusiasta” (Relatório Fapesp 630018-6 R).
Dobrado o desânimo, no entanto, reage a pesquisadora de forma imediata, declarando que os “obstáculos existem para serem transpostos. E quando faltam catálogos ou fichários, força é realizar levantamentos. Foi sobretudo o que ocorreu nas nossas hemerotecas, onde, por falta absoluta de relações cronológicas, tivemos de fazer o tombamento dos jornais e revistas aí existentes dentro do período focalizado (1760-1880)”, datas que indicam as primeiras edições, respectivamente, de Tristram Shandy e de Memórias póstumas de Brás Cubas, dois limites cronológicos de seu projeto ambicioso. E vencida esta dificuldade primeira, cabia-lhe enfrentar uma segunda: o isolacionismo do escritor carioca, pouco dado a expansões pessoais e muito econômico, quase avaro, em matéria de anotações bibliográficas.
A meticulosidade e o empenho caracterizam esses relatórios, que vieram a provocar o endosso caloroso de seus pareceristas, os primeiros a deporem a favor da área nova. A bolsista, ao longo de todos eles – quatro relatórios para sermos precisos –, dá conta de suas leituras ficcionais, históricas e críticas, mas detém-se, sobretudo, no trabalho insano de vasculhar, limpar e catalogar material hemerográfico, atribuição que se impôs dado o vazio que encontrou a respeito. Em suma: sua pesquisa começava da estaca zero, sem o apoio prévio de repertórios organizados por bibliotecários peritos em classificação, uma especialização profissional de remoto interesse naquela época, mas nem por isso urgente nos dias de hoje. No seu segundo relatório, esta lacuna infraestrutural é exposta sem disfarce nenhum: “A catalogação hemerográfica que procedemos em diversas bibliotecas cariocas, ainda que restrita a um período de 120 anos de imprensa, procurou, de certa forma, sanar uma deficiência dessas instituições, que não possuem – nenhuma delas – índices cronológicos dos periódicos aí existentes, anteriores a 1880” (Processo Fapesp 64/005-4 R).
Tais relatórios estão recolhidos nos quatro processos Fapesp dedicados a esta pesquisa em torno de Machado de Assis: 63-0018-6 R; 64-0005-4 R; 65-0005-7 R; 66-0006-6 R. Na sua continuidade interna, podem ser recolhidas as pistas que a pesquisadora mais perseguiu, depois que organizou, minimamente, o arcabouço hemerográfico.
Dona de uma redação impecável e cristalina, Pérola de Carvalho produziu relatórios exemplares e com vida própria. Nem mesmo o acréscimo de áridos índices técnicos, necessários no caso, é capaz de perturbar o andamento da informação generosa. Seu fluxo é contínuo e didático, sem ser rasteiro. É, antes, persuasivo e bem calibrado.
Com tais qualidades, é natural que se criassem expectativas sobre a publicação de um texto crítico final, que, infelizmente, nunca veio, já dissemos isso. E, por certo, foram essas mesmas qualidades que despertaram, talvez, a admiração de seus pareceristas, até mesmo dos mais contidos.
Por outro lado, não parece incômodo observar, ainda em torno desta proposta inaugural, que seus fiadores não fossem oriundos da área de letras. Em vez de nos perguntarmos sobre quem poderiam ter sido os que lhe deram aval, especulação fácil de suscitar hipóteses delicadas, parece mais pertinente verificar os que se dispuseram a fazê-lo, bem como refletir sobre o conteúdo desses pareceres, a qualidade argumentativa deles, desde o mais seco até o mais entusiasmado.
É uma pena, mas é compreensível, aceitável e respeitável a política de sigilo que cerca os pareceres em torno dos processos. Não se discute o acerto dessa decisão amparada por lei federal. Mas não se pode deixar de especular se o acesso a eles e a disponibilização pública da identidade de quem os assina não poderiam configurar com maior precisão a idoneidade do órgão público, desde que respeitado um determinado limite de tempo retroativo. Muitos desses pareceres contribuem para reforçar a idoneidade daquele órgão ou para configurar melhor o desenvolvimento, não necessariamente linear, de nossa mentalidade científica, objetivo inegável da história da ciência.
Faz parte do pacto institucional o sigilo sobre os pareceristas. É de praxe. Praxe que se respeita sob pena de incorrermos no desrespeito descabido, que afronta. No entanto, por outro lado, o teor positivo de alguns dos pareceres não apenas dignifica a instituição, como também enobrece seu autor e, de forma indireta, adere ao bolsista, conferindo-lhe honra acadêmica, mesmo que silenciosa.
No caso deste processo pioneiro na área de letras, os pareceres, mesmo os comedidos, revelam um entusiasmo crítico que – não fosse contraditória a expressão – poderia ser traduzido, de forma rasteira, por sejam bem-vindos! Nas entrelinhas desse processo e nas reentrâncias dos demais que vieram em seguida, a serem considerados em outra oportunidade, não é difícil perceber que a acolhida favorável aos pleitos de letras se deve exatamente às suas qualidades técnicas, temáticas e metodológicas. No tom fortemente receptivo insinuam-se, aqui e ali, termos ou frases que autorizam essa percepção, ainda que um deles reconheça a morosidade que caracteriza esse tipo de pesquisa, seja porque nossos acervos públicos (sem falar dos privados…) ainda fossem precários em matéria de infraestrutura e não estivessem habituados com esse tipo de demanda, seja porque estivesse em construção um padrão novo na área. De forma aleatória, deparamos com frases como “novas técnicas de pesquisa”; “dedicadíssimo esforço e irrepreensível metodologia”; “escrupuloso capricho”; “serviço prestado às nossas letras”; “zelo e dedicação exemplares”; “cuidado na observação dos menores indícios sobre o assunto”; “esforço mais meritório para as nossas letras”; “muita utilidade científica”; “acurado levantamento das fontes de informação necessárias”, etc.
De um deles, historiador de prestígio já assentado e que se desculpa por não ser da área, vem o reconhecimento pela amplitude da pesquisa, capaz de fazer emergir “opulento material” para futuros pesquisadores. De um outro, jovem egresso das ciências sociais, vem o entusiasmo que louva o desprendimento de uma bolsista que se dispõe ao trabalho braçal de levantamento de dados básicos, a despeito da elevada competência que demonstra para reflexões mais arrojadas (Processo Fapesp 64/0005-4 R). De um sociólogo mineiro, especialista em sociologia da industrialização, veio uma sentença clara e conclusiva, em abril de 1963: “É meu parecer que deve ser atendido este pedido de bolsa. O projeto revela maturidade e está muito bem feito. A meu ver, não há dúvida de que se trata de pesquisa, embora no campo das letras, e de boa qualidade. As proposições de estudo, os métodos e os dados a se utilizar acham-se bem claros e precisos na mente da solicitante. Deve ser atendido. Nota final: 10 (dez)” (Processo Fapesp 63/0018-6 R).
Foram, sem dúvida nenhuma, auspiciosas as primeiras reações a essa bolsista que, junto com seu orientador, inauguravam ambos um caminho novo dentro de uma instituição estadual de apoio à pesquisa. Parecia aberto um caminho, que seria, logo em seguida, ocupado por outro projeto não menos ambicioso e a ser posto em prática em torno do acervo de Mário de Andrade, em vias de ser incorporado à Universidade de São Paulo, graças, mais uma vez, à sintonia fina entre Antonio Candido e José Aderaldo Castello. Nem bem cumprida esta etapa inicial, viria uma segunda, já em plena gestação, mas que não cabe aqui, por enquanto, sob pena de nos alongarmos demais. Dela, damos apenas indícios, no entanto.
Assegurada, com êxito, esta bolsa de Pérola de Carvalho, em abril de 1963, Antonio Candido, já no início de 1964, punha em marcha, junto à Fapesp, o projeto de transferir o acervo de Mário de Andrade para a USP. Sua ofensiva, não fosse o termo inapropriado para tamanho cavalheiro, se dava em duas frentes: junto à Fapesp, primeiro, e junto ao IEB, depois. Naquela, em carta dirigida a Warwick Kerr; nesta, em ofício de 3 de outubro de 1966, revela-se José Aderaldo Castello, mais uma vez, como seu parceiro em iniciativa de tal quilate.
Na carta endereçada a Warwick Kerr, diretor científico da Fapesp, Antonio Candido ponderava, em 28 de janeiro de 1964:

“Por uma série de circunstâncias, encontra-se ainda reunida, na própria casa em que viveu, e quase 20 anos depois de sua morte, todo o acervo de Mário de Andrade: biblioteca, coleções de arte, manuscritos, fichários, etc. Dada a importância deste grande escritor na literatura, nas artes, na política cultural, no pensamento estético do Brasil contemporâneo, tenciono orientar para o estudo da sua obra variada e rica o maior número possível de jovens, que por ela se interessarem, a fim de que a Universidade coopere na pesquisa de um aspecto vivo e importante da nossa civilização” (Processo Fapesp 64/0054-5 R).

Em seguida, era a vez de dirigir-se ele a José Aderaldo Castello, diretor, então, do IEB. Nessa carta, datada de 3 de outubro de 1966, Antonio Candido permitia-se sugerir a criação de um “Centro de Estudos sobre o Modernismo”, no interior do IEB. Junto com a sugestão, vinha a lembrança de que o Conselho do IEB poderia estudar

“a possibilidade de incorporar ao seu patrimônio o magnífico acervo constituído em vida por esse eminente escritor e homem público [Mário de Andrade], composto de biblioteca com cerca de 15.000 ou 16.000 volumes, arquivo e fichários, preciosas coleções de desenhos, gravuras, imagens, ex-votos, quadros e esculturas. O conjunto se encontra ainda intacto e zelosamente custodiado por sua família na própria casa em que residiu, constituindo um elemento inestimável para o estudo não apenas da formação do líder do Modernismo, mas de todo este movimento. Lá se encontram amostras dos traços que definiram a fisionomia espiritual de ambos – desde os folhetos populares e os ex-votos ingênuos até as revistas francesas de vanguarda e as edições originais dos surrealistas, ao lado da obra de grandes artistas europeus e brasileiros, como Picasso, Lhote, Derain, Portinari, Di Cavalcanti, Segall, Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Guignard, etc.” (Processo IEB 67.1.107.31.8, p. 9)(14).

Por força de seu acervo de inegável importância e quase na mão, Mário de Andrade estava prestes a se mudar da Barra Funda para o Butantã. Do seu aconchego doméstico e privado transferia-se ele para um domicílio institucional e público, pronto para ser multiplicado segundo as leis da boa república e patrocinado por dois professores de alta envergadura e competência acadêmica, indiferentes a holofotes: Antonio Candido e José Aderaldo Castello. Nessa conjuntura, irmanavam-se ambos para alçar, nas palavras de Antonio Candido, “a pesquisa humanística, no Brasil, ao nível já alcançado pela pesquisa nas ciências físicas e biológicas” (Processo Fapesp 64/0054-5 R).
Por intermédio deles firmava-se, portanto, um padrão de pesquisa em historiografia literária e confirmava-se o papel crucial do Instituto de Estudos Brasileiros no desempenho de sua tarefa maior: a de concentrar acervos documentais e bibliográficos que interessam à cultura brasileira; a de processá-los, de um ponto de vista técnico; e a de disponibilizá-los para os estudiosos, assim que possível.
Em linguagem menos engravatada, Telê Porto Ancona Lopez dá conta melhor dessa mudança de padrão, em carta imaginária para Mário de Andrade, quando lhe conta que

“Sorte, sorte mesmo, Mário, foi seu acervo ter ficado na Universidade de São Paulo, onde serve a todos, organizado com rigor, dentro de um instituto interdisciplinar de pesquisa. Sorte é modo de dizer, pois esse paradeiro deve-se, de fato, à consciência da importância que v. e seu acervo têm para todos nós, brasileiros. Essa consciência estava em Antonio Candido – amigo chegado seu – e José Aderaldo Castello, diretor do Instituto de Estudos Brasileiros – crítico e professor de Literatura Brasileira” (Lopez, 1993, p. 81).

Juntavam-se, pois, nesta semeadura de fartos frutos, a Universidade de São Paulo e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, a nossa Fapesp.


ANTONIO DIMAS
é professor titular de Literatura Brasileira da Universidade de São Paulo e autor de, entre outros, Bilac, o jornalista (Edusp).



(1)
O segundo volume contou com a colaboração de Amélia Império Hamburger, Francisco Assis de Queiroz, Lincoln Taira, Marilda Nagamini e Walkiria Costa F. Chassot. Adalberto Carvalho e Silva elaborou balanço técnico importante sobre os anos iniciais da Fapesp, disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40141996000300009. Um outro livro imprescindível sobre a trajetória da Fapesp é o de Mônica Teixeira: Circa 62 – A ciência paulista nos primórdios da Fapesp (2015). Esta obra foi-me indicada pelo prof. dr. Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da Fapesp, a quem agradeço. Nesta reconstituição histórica daquele órgão estadual ficam claras as tensões internas dos grupos acadêmicos, bem como as paixões ideológicas ou metodológicas que também movem os cientistas. É, portanto, uma história bem mais vibrante.

(2) Os relatórios anuais da Fapesp, como este, podem ser encontrados em http://www.fapesp.br/publicacoes. Esta citação de W. Kerr, retirei-a do Relatório Fapesp 1962, p. 24.

(3) Esse embate entre as ciências “duras” e as humanidades pode ser entrevisto em algumas páginas do livro de Amélia Hamburger (2004, pp. 428, 479, 496, 502).

(4) Marilene Weinhardt (1987) elaborou estudo pontual sobre este suplemento.

(5) Esse Memorial, que me foi fornecido em 1991, a meu pedido, por José Aldo Pasquarelli, ex-assistente acadêmico da FFLCH, está contido no Processo 227/74. A citação retirei-a das fls. 8.

(6) Arquivo da FFLCH, Memorial para o Concurso…, Processo 227/74, fls. 9.

(7) Arquivo da FFLCH-USP, Processo 59.1.16676.1.7, fls. 3. Agradeço à sra. Maria da Luz de Freitas Obata, chefe do Serviço de Expediente da FFLCH-USP, a localização desse processo.

(8) Foi desse livro preciso e bem documentado que retirei parte substancial das informações primeiras sobre o IEB.

(9) Estas breves linhas sobre Sérgio Buarque de Holanda foram retiradas de: Nogueira (1988, pp. 30 e 19, respectivamente).

(10) Depoimento de Antonio Candido sobre essa etapa inicial está na revista Pesquisa Fapesp (2002). Desse depoimento destaco: “[…] penso que a Fapesp teve papel importante na mudança dos hábitos mentais e na própria concepção do trabalho universitário”.

(11) Todo este trabalho de investigação junto aos arquivos da Fapesp só foi possível graças à compreensão, ao empenho e à gentileza do presidente do seu Conselho Superior, prof. dr. Celso Lafer, entre 2007 e 2015, e prontamente secundado por Rodrigo Leme, secretário da Presidência, e por Max Frauendorf, responsável pelos arquivos. Sem essa ajuda prestimosa e ágil, teríamos ficado no terreno das hipóteses e das especulações, não necessariamente férteis.

(12) Sobre esse projeto, José Aderaldo Castello deixou depoimento em prefácio a Lanterna Verde e o Modernismo (Napoli, 1970)

(13) Este depoimento colhido por Leila V. B. Gouvea sobre a parceria Antonio Candido e José Aderaldo Castello está em Literatura e Sociedade (Gouvea, 2009, p. 261). Disponível em: http://www.revistas.usp.br/ls/article/view/25099

(14) O acesso a este arquivo do IEB, devo-o à competência técnica e profissional de Elisabete Ribas, chefe do setor daquele instituto


Bibliografia

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MOTOYAMA, Shozo; HAMBURGER, Amélia I.; NAGAMINI, Marilda (orgs.). Para uma história da Fapesp: marcos documentais. São Paulo, Fapesp, 1999.


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NAPOLI, Rosélis Oliveira de. Lanterna Verde e o Modernismo. São Paulo, IEB, 1970.


NOGUEIRA, Arlinda Rocha (org.). Sérgio Buarque de Holanda: vida e obra. São Paulo,
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